27/11/10

Quando a verdade perturba uma boa história


O Zé Neves escreveu um post sobre a reportagem assinada por Paulo Moura no jornal Público, na sequência da manifestação realizada no dia 19 de Novembro. Paulo Moura veio à caixa de comentários ameaçar com um processo judicial quem o apelidasse de mentiroso, mas entretanto parece ter mudado de ideias. Diz-nos agora que nos limitamos a censurar o seu «estilo» e que ninguém pode pôr em causa a veracidade das fontes anónimas a que tem acesso. 
Como qualquer pessoa compreenderá, um jornalista pode escrever praticamente tudo o que lhe apetecer à boleia de semelhante argumento. Seria aliás possível afirmar - de acordo com informações providenciadas por alguém que o conhecesse bem mas que preferisse reservar o seu anonimato - que  Paulo Moura nunca escreveu uma notícia verídica na sua carreira de jornalista. Não se trata aqui  por isso de uma questão de estilo, como se falar de jornalismo fosse equivalente a falar de literatura. Quando começa a projectar cenários plausíveis, mas cuja veracidade é incapaz de comprovar, o jornalista entra automaticamente no terreno da ficção. Mais ainda quando apresenta a plausibilidade como se ela equivalesse à realidade.
Foi isso mesmo que fez Moura na sua reportagem, como tem feito Valentina Marcelino no Diário de Notícias - a construção de uma ficção policial assente nos mais óbvios lugares comuns de uma estratégia de criminalização preventiva de movimentos e pessoas com determinadas posições políticas.
Quando nos informa de que existia um «plano» por parte de indivíduos «violentos» de «provocar os polícias, na esperança de que estes ripostassem indiscriminadamente contra a manifestação», estará realmente Paulo Moura à espera que acreditemos que semelhante «plano» lhe seria revelado para que ele o escrevesse no seu jornal? Ou que estes «elementos cujo objectivo era de facto provocar a violência» considerariam irrelevante a revelação de uma estratégia desta natureza? Não se dará Paulo Moura conta de que este suposto «plano» é a  calúnia mais frequentemente empregue pela polícia contra anarquistas ? De que a sua reportagem foi já escrita, milhares de vezes, desde o século XIX?

Um outro exemplo de que tudo isto se passou sobretudo na sua imaginação é o uso de um advérbio de modo. Diz-nos ele que «Um cenário de a polícia a carregar sobre os velhos militantes do PCP era provavelmente o sonho mais selvagem dos elementos anarquistas». Notem bem.: «Provavelmente». Com um acesso tão exclusivo a fontes tão comprometidas com um «plano», Paulo Moura admite ainda desconhecer qual seria o «sonho mais selvagem dos elementos anarquistas»? 
O corolário lógico de toda esta operação é o que se segue: «O Corpo de Intervenção da PSP decidiu não correr riscos. Cercou num cordão feito de corpos maciços, escudos, capacetes e cassetetes o grupo da terceira manifestação e desceu assim com eles a avenida»
Fica tudo absolutamente claro, como quando jornalistas afirmam que «a polícia foi obrigada a intervir» neste ou naquele bairro «problemático». Havia um «plano» ao qual Paulo Moura teve acesso, do qual ninguém naquela manifestação havia sido informado, mas que o Corpo de Intervenção antecipou, previu e calculou, preferindo «não correr riscos». E assim se compreende porque razão estiveram algumas centenas de pessoas sequestradas durante horas pela polícia, ao abrigo de qualquer simulacro de legalidade. Foi para seu próprio bem.

É bem verdade que durante semanas foi prometida à imprensa a deslocação a Portugal de pessoas extremamente perigosas, daquelas capazes de tudo e cujas inconfessáveis intenções justificariam um estado de excepção, uma espécie de lei marcial, com todo o tipo de limitações às liberdades e garantias que o Estado de Direito deve respeitar. Após tamanha expectativa, tudo o que fosse menos do que um motim nas ruas de Lisboa pareceria aquém da promessa. Este filme perderia todo o interesse sem «elementos violentos» e «sonhos selvagens». Foram necessários alguns efeitos especiais e o jornalista do Público revelou-se capaz de manejar os mais espectaculares.
As qualidades de semelhante jornalismo são bem conhecidas, assim um pouco como as «reflexões» de José Manuel Anes acerca do tema da segurança. Ambas conferem à actuação policial toda a amplitude de que ela necessita para defender a ordem pública e privada, os que nos governam e os que nos querem governar, quem aqui nos conduziu e quem pretende levar as coisas um pouco mais longe. Paulo Moura pôs no papel tudo aquilo que convinha ao Comando da PSP após aquela gloriosa operação policial. Nada faltou à sua história, a não ser o rigor e o respeito pela verdade. Tanto basta para que dele se possa afirmar tratar-se de um contador de histórias com carteira de jornalista, um mercenário de bloco de notas em punho, um caluniador profissional e um assalariado do regime.


2 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Grande Camarada Ricardo,
pontos muito bem postos nos precisos ii.
O que se passa é que o Moura e o Anes raciocinam assim: se não há um plano, poderia haver; se os anarquistas desta feita, não têm plano, poderão tê-lo - portanto, seria irresponsável não agir por antecipação. E dar-lhes ,agora que estão desprevenidos, com força na cabeça, preventivamente: só se perdem as que caem no chão.
Isto lembra histórias antigas. A daqueles católicos que conquistaram a cidade de Béziers e que, não sabendo distinguir os cátaros que perseguiam dos seus outros habitantes, resolveram matá-los a todos, deixando a Deus o cuidado de reconhecer os inocentes. Ou os exames de consciência sob custódia policial dos extintos regimes do Leste da Europa, tendo por desfecho a imposição aos penitentes de confessarem sabotagens, atentados, actos de espionagem que não tinham cometido, mas poderiam (objectivamente) e deveriam (subjectivamente) ter praticado dada a sua oposição íntima ao regime ( movidos pelo "sonho mais selvagem" que Paulo Moura não teria tido dificuldade em ler no seu inconsciente).

Abraço para ti

miguel sp

Anónimo disse...

Ricardo, acho incrível teres seduzido o Paulo Moura, teres ido para a cama com ele, teres-te feito passado por uma chapeleira, embora com menos buço e depois teres dito que ele era mau na cama. Não se faz.