O post abaixo do Zé Nuno Matos revela
um aspecto essencial no funcionamento do capitalismo: a transformação da força
de trabalho numa mercadoria produtora de valor económico e que oscila de acordo
com as necessidades de investimento (ou de desinvestimento) das empresas. Dito
de uma maneira mais simples, a transformação dos trabalhadores num instrumento
descartável e totalmente disponível para as necessidades das empresas.
E esse é
um aspecto que tanto ocorre em empresas financeiras como em qualquer outro tipo
de empresa. Por isso, o mesmo mecanismo opera tanto no sector financeiro como nos sectores industriais
ou dos serviços. Neste sentido, quando alguém – e tanto
à esquerda como na direita mais extrema não têm sido poucos… – critica
unicamente a gula da banca, mas deixa incólume este mecanismo fundamental que o
Zé Nuno muitíssimo bem enunciou, isso significa muito simplesmente que não há
qualquer crítica de fundo ao capitalismo nem ao modo como se estrutura a vida
em sociedade nos últimos 200 anos.
Para muito boa gente pode não parecer, mas
são bem mais importantes o relato e a condenação da transformação da vida das
pessoas num instrumento de valorização (ou desvalorização) do capital, do que
discutir as reformas antecipadas dos políticos, ou a perda da soberania
nacional (*). Não é só todo um mundo de diferença entre a crítica global ao
capitalismo e a crítica a formas muito particulares de capitalismo. É o
projecto político e de humanidade que se defende: enquanto a crítica à
exploração económica implica a ruptura com a subordinação do conjunto dos
governados a uma camada ínfima de governantes, a circunscrição da crítica à
“finança”, à “corrupção”, à “ocupação estrangeira/alemã” ou à vida dos
políticos só serve para viver na ilusão de que a exploração e a opressão podem
ser mais palatáveis.
Ver o desemprego, a precariedade, as
dificuldades quotidianas das vidas de todos os trabalhadores como o resultado
da prática estrutural de uma classe social capitalista implica a necessidade de
uma alteração estrutural de todo o modo de produção do viver social contemporâneo.
Pelo contrário, colocar a esperança na resolução do desemprego e da
precariedade laboral na esperança da substituição de umas elites de gestores por outras
pretensamente menos corruptas só servirá para relançar e renovar todo o mesmo
circuito de injustiças e de opressões.
Por conseguinte, efeitos tão
concretos, tão dramáticos e tão profundos na vida dos trabalhadores como o
desemprego ou a precariedade são derivados de uma realidade estrutural e
supra-individual que só é abstracta e pretensamente etérea para os que praticam
a preguiça intelectual. E para os que ainda aspiram a ser parte de uma elite –
vermelha, laranja, rosa, castanha ou incolor – de gestores que mantenha o edifício de pé.
Alterar fachadas não muda os
alicerces.
(*) Não deixa de ser sintomática e mesmo patética a resposta (ou, para ser mais correcto, a ausência de respostas) que a esquerda tem desenvolvido a propósito do nervo central do capitalismo acima descrito. Enquanto a esquerda anda preocupada com a perda da soberania e com a cedência de poder aos «novos colonialistas», as empresas continuam impunemente a fazer o que bem lhes apetece no plano em que a contemporaneidade se decide: nas relações de trabalho, no emprego, na transformação da vida das pessoas no que melhor lhes aprouver. A soberania hoje está acima de tudo nas empresas. Enquanto não for contestada, os capitalistas continuarão completamente confortáveis no desenvolvimento das suas práticas económicas de alocação das vidas dos trabalhadores às necessidades de valorização do capital.
14 comentários:
Meu caro JVA,
Vou ler o resto do post com atenção e, tenho absoluta certeza de la encontrar, como sempre, considerações de bom senso.
Antes disso, porém, não vou deixar passar "a transformação da força de trabalho numa mercadoria produtora de valor económico", sobretudo vindo de um economista humanista...
Por favor, emende la isso. Escolha a ordem das palavras, tire as que quiser, ponha outras. Mas assim é que não pode ser com certeza.
E desculpe estas minhas bizarrias de clérigo, mas a obrigação de rigor é tanto maior quando temos, como no seu caso, coisas interessantes e importantes para dizer.
Pronto, ja acabou o sermão (hoje é domingo, como sabemos)...
Abraço
Caríssimo,
é evidente que eu não defendo a transformação da força de trabalho numa mercadoria. Pelo contrário, o texto é uma crítica a esse nervo central do capitalismo. O início do texto a que se refere é meramente para identificar esse processo social.
Abraço
Caro JVA,
Vou insistir um bocadito porque julgo que o meu reparo vai completamente no sentido daquilo que v. diz no resto do post.
Repare que em boa teoria economica capitalista, a frase que v. escreveu e que eu citei ("O post ... revela um aspecto essencial no funcionamento do capitalismo: a transformação da força de trabalho numa mercadoria produtora de valor económico") não faz qualquer sentido. Nem as mercadorias são produtoras de valor, nem é apropriado dizer-se que a força de trabalho se transforma em mercadoria.
Em teoria economica classica, o valor deriva sempre do trabalho (do trabalho e da raridade, mas esta ultima apenas é uma modalidade do primeiro, uma vez que o seu valor deriva do facto de o bem "raro" não ser acessivel sem trabalho).
Este principio fundamental desde, pelo menos, D. Ricardo, nunca foi posto em causa, que eu saiba, pelos economistas. Estes apontaram que nem todo o trabalho cria valor, o que é insofismavel, mas (que eu saiba) nunca negaram, ou refutaram, a teoria segundo a qual o valor é fundamentalmente criado pelo trabalho.
Parecendo que não, este ponto é central para medir a justeza daquilo que v. diz no resto do post.
Com efeito, aquilo que as tendências demagogicas actuais ocultam, ou esquecem, é que o capitalismo REPRESENTA UM PROGRESSO. Não nos podemos satisfazer com ele, como é obvio, mas não podemos esquecer que em muitos aspectos ele representa, de facto, um progresso. Nomeadamente em relação a uma organização social e politica que aceitava perfeitamente, e sem quaisquer escrupulos, que o trabalhador pudesse ser considerado como uma coisa, ou como uma mercadoria.
(cont.)
(continuação)
O capitalismo deve ser combatido a partir das suas contradições internas. O facto de reconhecer que o valor advém do trabalho, e ao mesmo tempo de aceitar um sistema em que a força de trabalho pode ser totalmente alienada, com o que isto implica em termos de reificação do trabalhador, é com toda a certeza a contradição principal do capitalismo. Por isso é racional, e justo, esperar que ele caia pela mão do homem a quem ele reconhece liberdade no papel, tirando-lha com a outra em nome do respeito da propriedade.
Mas este combate não pode ser feito, como v. sublinha muito bem, esquecendo o facto de que o capitalismo é o sistema economico que acompanha, e favorece, o acesso das massas trabalhadoras às liberdades e à igualdade formais, em contraposição a um mundo arcaico em que elas eram consideradas meros instrumentos, e em que so acediam à cidadania quando devidamente integradas em corporações submetidas ao monarca, ou pior ainda permaneciam sem voz, atadas à terra do senhor.
O capitalismo foi também o que permitiu acelerar de forma decisiva a internacionalização da economia. Aqui também, ha que sublinhar o que esse mecanismo trouxe como progressos importantes, antes de ir analisar quais são as suas contradições e como podemos combatê-las. Nesse aspecto também, podemos dizer que o pior inimigo da esquerda, é o combate arcaico em nome das "nações".
O caso português é emblematico. A dificuldade actual nasce, em grande parte, do facto de os mecanismos capitalistas terem podido, até hoje, trazer imediatamente aos trabalhadores beneficios importantes, tão importantes que a grande maioria das pessoas não estara provavelmente capaz de medir o seu valor real e de o comparar com outros (educação, saude, justiça, serviços publicos diversos) que lhe pedem hoje para abandonar em nome do "crescimento economico". A esquerda perdida dos demagogos apega-se à ideia peregrina de que esses beneficios são zero e que as pessoas viveriam muito melhor se erguêssemos trincheiras em redor de um castiço "Portugal dos pequeninos". Esqueceram-se de que isso foi o que tivemos durante 48 anos : meia saridinha por labrego e uma casta ao serviço de um Estado forte lutando, pretensamente, pela lei e pela grei...
Portanto inteiramente de acordo com a sua conclusão "alterar fachadas não muda alicerces".
Mas vejo nela mais uma razão de corrigir a primeira frase. Os alicerces devem, tanto quanto possivel, assentar em terra firme...
Abraços democraticos
Caros João (Viegas) e João (Valente Aguiar):
o reparo "estilístico" do JV levanta uma ou várias questões de fundo e acaba por pôr em evidência, a meu ver, algumas das insuficiências ou "servidões ideológicas" responsáveis por uma antinomia maior do próprio marxismo (pensamento de Marx incluído).
1. Com efeito, através da instituição de um mercado do trabalho, o capitalismo pretende reduzir a força de trabalho a uma mercadoria, por um lado, e, por outro, dar crédito a um critério de repartição desigual, que seria o da retribuição de cada um segundo o seu contributo para a produção.
2. No entanto - e Marx viu-o algumas vezes, ao mesmo tempo que noutras ocasiões o ocultou por meio da sua teoria económica -, a repartição do produto, o preço da força de trabalho, é, em última análise, resultado da relação de forças entre o trabalhador e o capitalista no quadro de um conflito permanente cujas paradas são, de resto, mais largas, incluindo a organização do processo de produção, e, em última análise, a própria direcção do conjunto da actividade económica. E, seja como for, o capitalismo nunca conseguiu, até mais ver, reduzir a força de trabalho a uma mercadoria, sendo que, se um dia o conseguisse, se transformaria numa "sociedade de escravos industriais" ou de "servos", deixando de ser o salariato que, sob formas diversas, conhecemos.
3. O outro aspecto decisivo que aqui só posso indicar, associado à concepção da força de trabalho como mercadoria, diz respeito ao critério segundo o qual, tanto aos olhos do capitalista, como em boa parte nos termos da concepção de Marx, a remuneração de cada um é (capitalismo) ou deve (marxismo) fazer-se de acordo com a sua contribuição para a criação de riqueza (entendida como produção de mercadorias). A este propósito seria necessário compreender como a contribuição de cada um para a produção e, mais geralmente, para a produtividade ou condições produtivas de uma sociedade é rigorosamente incalculável, o que significa que, por um lado, a fracção repartida a cada um, longe de reflectir o seu contributo para a produção ou a sua produtividade, é determinada por relações de força mais ou menos cristalizadas, e que, por outro, a alternativa a este critério de repartição não pode ser descoberta numa fórmula que respeite mais do que a actual a "verdade" da contribuição produtiva de cada um (critério marxista para a sociedade de transição). A alternativa aqui seria, como reiterou sempre Castoriadis ao abordar o problema, a democratização radical dos "salários" e rendimentos, bem como do mercado de bens de consumo, a par da abolição do "mercado de trabalho" e da destruição da representação da força de trabalho como mercadoria.
Forte abraço para ambos
miguel (sp)
Obrigado por pegar no meu ponto, caro Miguel.
Como v. diz "o capitalismo nunca conseguiu, até mais ver, reduzir a força de trabalho a uma mercadoria, sendo que, se um dia o conseguisse, se transformaria numa "sociedade de escravos industriais" ou de "servos", deixando de ser o salariato que, sob formas diversas, conhecemos".
Eu diria mesmo que o capitalismo (o pensamento economico liberal) nunca se atreveu a admitir esse objectivo, embora o funcionamento das regras do mercado, como teorizado por ele, conduza às consequências que sabemos.
Ai precisamente é que jaz a contradição que permite combatê-lo com sucesso. Eu acho que o Marx ja tinha visto a falha, mas concordo que ele proprio permanece muitas vezes preso à suas consequências (embora as critique).
Abraços. O que me fez reagir é sobretudo "uma mercadoria produtiva de valor economico".
Abraços
Mas, caríssimo João Viegas, não são os trabalhadores quem produzem valor? Ora, a determinação dos salários dos trabalhadores sofre dois impactos fundamentais.
Um é relativamente idêntico ao de qualquer mercadoria: o valor da força de trabalho é, tendencialmente, (sublinho o tendencialmente) tanto mais elevado quanto mais elevadas as qualificações, com a ressalva de que essas qualificações são efectivamente aplicadas na função profissional que desempenha. E, gostemos ou não, a força de trabalho é uma mercadoria. Basta lembrar que os salários tendem (sublinho novamente o carácter tendencial) a nunca fugir muito da evolução da produtividade. E basta lembrar que todas as reivindicações laborais dos últimos 200 anos muito raramente defenderam enormes aumentos salariais. Descontando a inflação, muito raramente as reivindicações ultrapassaram os 10 ou 20% de aumentos salariais. A excepção verificava-se quase exclusivamente em contextos igualmente excepcionais: rupturas revolucionárias. Isso significa que o valor salarial tem uma componente estrutural que comporta sempre uma grande inércia. E que essa componente estrutural é, do meu ponto de vista, corolário da transformação da força de trabalho numa mercadoria.
O segundo impacto já foi aflorado na parte final e reporta ao dinamismo que os trabalhadores imputam às lutas sociais. Por outras palavras, quando questionam aspectos da sua existência enquanto vendedores da sua força de trabalho e lutam quer por melhorias salariais, quer mesmo por uma profunda transformação social. Esse dinamismo das lutas sociais não diz respeito apenas às suas reivindicações mas, quando derrotadas, são também o motor de desenvolvimento da produtividade no capitalismo. Em suma, quando ocorrem lutas sociais que não conseguem alterar duravelmente as relações sociais, e quando a única forma de contornar essas lutas passou por um aumento salarial (seja ele directo ou indirecto), os capitalistas são obrigados a inovar tecnologicamente e a remodelar os quadros de organização das empresas. E aqui contam tanto a concorrência entre empresas como a pressão das lutas sociais. Mas se se ver a questão a fundo estas têm uma importância ainda maior do que a concorrência pois elas fornecem todo um novo paradigma de reorganização das relações de trabalho. Ou seja, se as lutas não conseguem imprimir a difusão de todo um novo modelo de relações sociais isso significa que elas são incorporadas na própria orgânica da economia capitalista. Ou seja, amplia as próprias dinâmicas de expansão da mercadorização. Por exemplo, e sem me querer alongar, o toyotismo e a transnacionalização das operações produtivas (deslocalizações, subcontratações, novas relações entre filiais e sedes das empresas, etc.) resultam em boa medida das pressões que a onda internacional das lutas do período 1968-75 colocou.
(cont.)
(cont.)
E isto leva-me a contestar a questão que colocaram de que a transformação da força de trabalho numa mercadoria (e que produz valor - de outro modo não haveria exploração económica...) levaria a uma "sociedade de escravos industriais". Por um lado, se, para mim, é evidente que a força de trabalho é uma mercadoria, isso não quer dizer que nela apenas jogam os efeitos estruturais da economia capitalista. Como procurei abordar no parágrafo anterior, os trabalhadores têm uma existência dupla no capitalismo: na maioria do tempo, produzem novas mercadorias; nos casos em que conseguem desencadear lutas sociais, alavancam-se enquanto força social e enquanto possível sujeito transformador, inclusive do próprio capitalismo. Portanto, a transformação da força de trabalho numa mercadoria nunca é plena e total (tenho dúvidas que alguma coisa o seja em sociedade, mas penso que se percebe onde quero chegar). Mas, por outro lado, a transformação da força de trabalho numa mercadoria não só nunca foi tão bem-sucedida como hoje (nunca tantas profissões foram assalariadas), como ela se tem expandido a crescentes áreas. Aliás, existe ampla literatura da especialidade relativa à mensurabilidade da produtividade do trabalho intelectual/imaterial/whatever. Coincidente com esta difusão da mercadorização das tarefas profissionais intelectuais ocorreu com o toyotismo uma profunda remodelação dos quadros mentais dos trabalhadores nesses sectores. Aí não só o trabalho assalariado é visto como uma fonte de satisfação muito superior à de qualquer outra forma de trabalho na contemporaneidade, como a transformação das actividades laborais em novas aplicações de negócio são percebidas por milhões de trabalhadores como o seu objectivo profissional. Um segmento da força de trabalho nos países desenvolvidos na ordem dos 15 a 20% desenvolve uma identificação individual e colectiva com os objectivos das empresas num grau nunca visto na história do capitalismo. Aqui não estou a tecer qualquer tipo de consideração subjectiva ou pessoal mas a constatar um processo objectivo. Em suma, nos sectores de ponta do capitalismo tem sido perfeitamente compatível avançar a mercadorização e a satisfação dos trabalhadores mais qualificados (e mais explorados em termos de volume de mais-valia produzida) crescer.
A história acabará aí? Claro que não.
Abraço!
João
Caro (João Valente Aguiar):
todo teu esforço argumentativo seria suficiente para demonstrar que a força de trabalho ou não é uma mercadoria ou é uma mercadoria sui generis. Mas, enfim, os meus três pontos mantêm-se: 1. a determinação do salário efectivamente pago ou recebido resulta fundamentalmente de uma relação de forças (na empresa e à escala global da economia considerada) - ou seja, a luta de classes instaura uma indeterminação radical no funcionamento do sistema económico. A única lei que a este propósito se poderia estabelecer é qualquer coisa como, enquanto não há contestação radical das relações sociais de produção, o capitalista quer pagar menos e o assalariado quer receber mais pelo trabalho - o que, em função das relações de força, pode dar lugar a várias formações de compromisso, entre as quais se conta a da "sociedade salarial" na acepção de Robert Castel, que limitam e enquadram institucionalmente a natureza idealmente contratual do salariato. 2. A ideia de que é calculável ou identificável o contributo de cada um ou cada conjunto para a produção, a produtividade e as suas condições é uma ficção e uma racionalização das relações hierárquicas de comando da economia política do capitalismo. 3. As consequências a tirar são que é a democratização da economia e do mercado a via de qualquer ruptura não regressiva com o capitalismo.
Bom, sobre este último ponto estaremos tu e eu, e suponho que também o nosso amigo João Viegas, essencialmente de acordo. E, neste momento, é isso o fundamental.
Abraço para ti e para o João Viegas
miguel(sp)
Ola caros,
Receio não ter sido suficientemente claro. A minha duvida/objecção é muito mais simples e basica :
O trabalho é a unica fonte do valor e não existe valor economico que não radique no trabalho. Isto é o que diz a economia classica, muito antes de Marx (desde David Ricardo e, antes dele, de Locke). Marx apenas retoma a doutrina classica e reflecte a partir dela.
De acordo com essa teoria classica o valor de uma mercadoria equivale ao trabalho nela depositado, ou mais exactamente ao trabalho que um agente economico pensa ser necessario para aceder a ela (simplificando um pouco).
Mas uma mercadoria não "produz" valor algum por si. A unica coisa que produz valor é o trabalho.
Logo, ha uma contradição, perfeitamente insanavel, no modo de produção capitalista, quando este admite a alienação (compra, ou locação, tanto faz) da força de trabalho do trabalhador, o que equivale a uma reificação ou, mais propriamente, a uma transformação do trabalhador (fonte do trabalho que cria valor) em mero instrumento de trabalho (mercadoria, que não cria, por si, valor algum)...
Esta contradição não é tão diferente hoje do que era no tempo de Marx. Hoje, como ontem, aceitamos, em nome da propriedade, reificar a unica coisa que produz valor economico. Isto é uma contradição total, porque a doxa aceita, ja, a ideia de que o valor advém do trabalho.
Mas esta contradição é propria de uma fase avançada da organização social, onde se aceita, a partir de um postulado igualitarista (ainda que formal) que os homens são iguais e que é precisamente este dado essencial que lhes permite estabelecer um sistema de trocas tendo no trabalho um valor comum.
Não devemos nunca esquecer que existem formas tradicionais e arcaicas de conceber as coisas que ficam aquém deste patamar, para as quais a desigualdade entre os homens é natural, como é natural que alguns sejam utilizados por outros como meros instrumentos.
Isto não é o que diz a doutrina economica classica, que constitui o substrato do capitalismo.
Não sei se consegui ser mais claro. Paciência...
Abraços
Caro Miguel,
sobre o ponto 1. Creio que a quantificação articula-se com as lutas sociais. Ou seja, a possibilidade de se quantificar a produtividade do trabalho decorre obviamente de uma dinâmica de classes e de uma dinâmica de total e absoluto controlo dos capitalistas sobre os trabalhadores. Uma coisa não impede a outra. Pelo contrário é da capacidade para se passar constantemente de um plano para o outro que permite que o capitalismo se amplie. Não por acaso, a esquerda oficial tem tido aqui um papel fundamental na revitalização de diferentes formas de capitalismo. Como procurarei demonstrar num artigo que estou a terminar, seja pela via capitalista de Estado (URSS, etc.) seja pela actual via toyotista (Brasil de Dilma e Lula e China pós-maoista), a esquerda teve um papel absolutamente crucial na readequação de aspectos das lutas dos trabalhadores para expandir as dinâmicas da mercadorização da força de trabalho. Creio que a postura mais correcta é a da articulação entre as duas dinâmicas. Para sermos simplistas, a luta de classes é isto e não as declarações do Cavaco contra as manifs da CGTP.
Sobre a quantificação em si. Ela existe e é aplicável a quase todas as categorias profissionais existentes. Desde o número de papers, aulas, orientações, factores de impacto, etc. dos investigadores até às quantificações de actos médicos, tempo dos procedimentos, etc. tudo isso existe e é bem real. Que ela é expressão de relações sociais que a determinam, totalmente de acordo como disse no ponto acima.
sobre o ponto 3, totalmente de acordo e o post versa precisamente isso.
Um abraço!
Caros,
acho que por vias distintas e, com algumas diferenças, chegamos a pontos relativamente comuns. Creio que independentemente de diferenças semânticas e conceptuais já valeu imensamente a pena este interessantíssimo debate.
Evidentemente, um debate que prosseguirá e que espero sinceramente que prossiga. Aliás, gostaria de propor ao João Viegas que se tiver disponibilidade de escrever um breve texto sobre o assunto, ou sobre quaisquer aspectos deste assunto, esteja à vontade de nos enviar e nós teremos todo o gosto em publicar.
Um abraço fraterno
João
Caros, Estamos, de facto, a dizer a mesma coisa no essencial.
Por deformação profissional de advogado, eu acredito que se combate melhor o adversario quando percebemos de onde lhe vem a sua força.
Neste sentido, convém compreender de forma muito clara o que é o capitalismo. Não so no que ele tem de negativo, mas também no que ele tem de positivo. Neste ponto fundamental é que a esquerda folclorica falha redondamente.
A contradição que sublinho - e que a maioria dos economistas prefere esquecer, ou aceitar como um dado inquestionavel - leva-nos ao ponto nevralgico do capitalismo. A reificação da força de trabalho não pode ser justificada dentro do sistema. Das duas uma : ou significa que, marginalmente, não existe nenhuma criação de valor, de forma que todo o sistema "economico" deixa de fazer sentido, ou significa que o sistema assenta estruturalmente sobre o logro e sobre o roubo...
Esta contradição existe porque o capitalismo reconhece, talvez pela primeira vez, a teoria do valor trabalho, que é solidaria de uma moral igualitaria. Ainda hoje os liberais se reclamam dela. Reparem que eles não dizem : "é normal a reificação do trabalhador", mas antes, o que é muito diferente, "devemos confiar no funcionamento do mercado porque ele é o que mais eficazmente dignifica e retribui o trabalho".
Como o Miguel sabe, considero que é fundamental reflectirmos sobre as categorias morais em causa ao mudarmos de paradigma, por exemplo quando passamos da locatio operis ao moderno "contrato de trabalho". Um exemplo emblematico é o Dom Quixote, que se recusa a assalariar Sancho Pança, pois vê nisso uma indignidade... A partir desta obra genial, contemporânea da aurora do capitalismo, é perfeitamente possivel vermos como categorias morais fundamentais mudaram, e reflectir sobre as consequências.
Vou tentar escrever um breve texto, mais claro, sobre o assunto. Mas isso requer tempo, portanto não prometo nada de imediato.
Abraços
Marx bem se distinguiu da vulgata marxista e leninista ao não tornar a economia como a consagração suprema do imaginário politico e social dominante. Creio bem que o excelente João Viegas está bem avisado e atento, não se coibindo de reflectir a densidade da noção de reificação, tão cara e estimulante para George Lukacs e Castoriadis.A propósito , Castoriadis assinala que, a dominação ( dogmática e universal...) do valor e da realidade central da Economia- inviabiliza não só a democracia participativa como também a autonomia; desaparecem porque,frisa,o sistema lógico da economia não aceitará senão " só pequenas liberdades toleradas " e o " perigo do totalitarismo " pode surgir de um governo ( mundial?, questiona) criado para suplantar a deriva de uma catástrofe ecológica estimulada pela expansão ilimitada da produção e do consumo. Salut! Niet
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