IRACUNDOS
De nós, os iracundos, que sabe quem prospera à custa dos infernos?
Sobre nós, os salvadores profissionais do mundo mentem muito. E
contudo, se o Rei dos Judeus correu com os vendilhões do templo
(excelso exemplo!), sermos filhos da ira será defeito?
Há quem nos creia indignos de chegar aos infernos.
Há quem nos considere meros proletários do berro.
E contudo, se os nossos berros são de bicho ou de fera,
com que direito nos proíbem o puro prazer da nossa ira?
Diante da mentira, a nossa ira só pode irar-se mais ainda
e desatar às dentadas de tanta ira acumulada.
Se não nos irarmos, espigam-nos picos na cara.
Se não nos irarmos, abrem-se fendas nas nossas faces.
Se não nos irarmos, espinhos de ferro esguicham-nos das pernas.
A cobardia não aprecia os nossos uivos, os nossos gritos
diante dos seus dentes medrosos, dos seus olhos vazios,
do pescoço em parafuso das suas mentes retorcidas.
Mas nem assim desistimos do nosso justo direito à ira.
COLÉRICOS
Nós, os coléricos, temos a nossa própria honra.
Sempre levámos a sério as ameaças dos livros sagrados.
Sempre acreditámos que a cólera decidiria deste nosso lugar.
Escolhemos, apesar disso, a grande recusa, dispostos a tudo.
Ou foi ela a escolher-nos, dá no mesmo.
Mostrámos aos doutores de todas as igrejas que desprezamos as ameaças deles.
Mostrámos aos donos do mundo o teor da nossa fúria.
Mostrámos aos timoratos que o medo é curável.
Mostrámos ao nosso medo que não o tememos.
Nenhum de nós aqui tem medo. Medo de quê?
Dos homens de cornos e olhos de mocho?
Dos grandes lagartos de línguas longas?
Dos que têm enguias e cobras na boca?
Dos que têm lábios de patas de polvo?
Dos dragões que vomitam fogo?
Dos venenos? Dos monstros?
A nossa cólera foi a nossa força.
Almeida Faria , 2009.
Nota Explicativa: Logo a seguir à divulgação pública do texto Cidadãos pela Laicidade, recebi do meu velho amigo Almeida Faria um mail do qual transcrevo aqui o essencial:
(…) Já assinei o excelente texto contra este sinistro papa e contra este sinistro governo ainda mais papista que o papa.
Em tempos colaborei no PNETliteratura com versos (a que não chamo poemas) defendendo os malditos de Dante.
Aqui segue um deles, em defesa da nossa IRA JUSTA (…)
Lida a bela "defesa da nossa IRA JUSTA", agradeci ao Almeida Faria o seu apoio e o envio que o acompanhava, pedindo-lhe descaradamente autorização para publicar os "versos … defendendo os malditos de Dante" como expressão de apoio à campanha pela laicidade democrática acabada de lançar. Com a rara generosidade que é seu timbre, o Almeida Faria, autorizando a publicação, somou à primeira defesa dos malditos ("iracundos"), uma segunda (a dos "coléricos"), explicando-me que "Os versos são de 2009, devem estar ainda no PNETliteratura e fazem parte de um projecto a publicar com desenhos do Tiago Manuel". Recomendava-me, a seguir, que das duas composições que me enviava do Guia dos Infernos, título do conjunto a publicar a que aquelas pertencem : Entre Iracundos e Coléricos, escolhe o menos mau.
E, se são demasiado parecidos, a culpa não é minha, é do católico Dante. Já nesse tempo a Igreja incitava mesmo os melhores à submissão.
Na impossibilidade óbvia de aceder a este pedido e incapaz de me decidir a favor da "melhor" das duas leituras de Dante por escrita própria que o Almeida Faria me propunha, optei por escolher as duas. Que aqui ficam publicadas. Escuso de acrescentar a que ponto esta colaboração é uma honra que responsabiliza o Vias, ao mesmo tempo que um apoio que reitera a oportunidade e a importância da campanha pela laicidade democrática em curso. Terei de deixar por agora a indicação de alguma pistas da "leitura bem feita", como na esteira de Péguy lhe chamaria Steiner, que a obra do Almeida Faria merece. Mas não posso terminar esta adenda sem lhe enviar daqui o abraço grande de sempre.
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