11/05/10
O Papa Bento e a Teoria da História
por
Zé Neves
Eu nem me queria chatear muito com isto do papa, até porque sou um adepto de grandes eventos e temo parecer como aqueles "amarelos" que estão sempre a refilar contra as manifs da CGTP. Mas o ponto da situação é este: estou numa sala de aulas, na Avenida de Berna, diante da Igreja que fica ao lado do sítio onde o Papa Bento está a repousar. Na sala de aula estão quarenta pessoas que se esforçam por abstrair de um concerto de sinos que dura há já cerca de 30' e que é suposto saudar o Papa ou sei lá eu mais o quê. O teste é de Teoria da História e uma das questões anda em torno da famigerada astúcia da Razão...Se eu soubesse, não tinha ido por aqui...
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9 comentários:
Ora, caríssimo Zé Neves, é, sem dúvida, um grande intérprete da história que nos visita e que nos interpela a invocar a glória á humanidade. Talvez a humanidade de hoje possa ser benzida pela astúcia da razão e contrarie, assim, porventura, o andamento sintético rumo ao vazio.
Caro Justiniano,
você surpreende sempre o meu limitado racionalismo de incréu. Ainda há dias,intervinha à boleia das extravagâncias catastrofistas de um post que li noutro blogue, citando o Apocalipse e João, e recuperando para a causa da fé as fulminações mais temperamentais do que politicamente articuladas do autor comentado. Hoje, tal como Hegel viu o Espírito montado num cavalo branco, você adivinha a astúcia da Razão na figura branca ainda que sem cavalo de Bento XVI e convida-nos a colher nela a hegeliana rosa do triunfo do Espírito de entre os espinhos emaranhaddos do presente. Confesso, no entanto, que a minha perplexidade maior é suscitada pelo "andamento sintético" que só a bentização dos costumes, da política, das artes e - porque não? - do próprio Zé Neves (que se recusa, ao que consta, a incluir Ratzinger entre os autores que recomenda à juventude, talvez visando, qual novo Sócrates aos seus olhos de crente, corrompê-la) nos permitirá evitar.
Há, no entanto, qualquer coisa que você não quer explicitar, talvez por astúcia de catequista, embora transpareça em cada palavra sua e até no espaço entre elas: a condenação teológica da democracia e da filosofia não teologicamente esclarecida que o esplendor peculiar da sua verdade última requer.
E, por fim, uma dúvida: não dispondo das graças de estado especiais do Sumo Pontífice, cujo repouso o santo som dos sinos suavemente embala, não lhe parece falta de caridade para com os pobres estudantes e outros cidadãos das redondezas da Igreja de Fátima pô-los a tocar da maneira que o Zé Neves reporta, por uma vez com tanta sobriedade e ponderação, que nem parece um ateu?
Agradecendo antecipadamente a sua atenção
msp
se eu me dedicasse à história contemporânea, caro zé neves, que não à medieval, iria fazer uma tese sobre o embuste de Fátima; já era tempo de alguém se dedicar isso, ponha lá um dos seus alunos a fazê-lo, porque teorias ovniológicas também não colam
Ora, meu caro MSP, longe de mim qualquer proselitismo presbítero, que não passo de um leigo liberal, isto porque encalhado nesta "inexorável" realidade (sem qualquer cedencia ao materialismo histórico). Como já tinhamos em tempos acudido a esta questão - a República e a virtude - há, no entanto, no seu comentário, que bem considero, uma achega profunda "a condenação teológica da democracia e da filosofia não teologicamente esclarecida que o esplendor peculiar da sua verdade última requer." E eu estou em crer que o caríssimo MSP parte do individualismo (autonomia) democrático para a Republica, mas ainda assim, questiono. Como será possível fazer ceder o princípio Republicano e a legitimação liberal ao princípio democrático. Ora vejamos o seguinte, meu caro MSP, em consonancia com a nossa Constituição da República. Partindo do jusracionalismo e do jusnaturalismo oposemos limites materias à novação daquele texto, ou seja, relemo-lo como uma espécie de verdade última que nos convoca, sempre, à redenção (ao fim e início). Ao absoluto da dignidade da pessoa humana.
A observar o limite aos limites quer da razão prosaica do materialismo quer do historicismo. É a consciencia do dever ser.
Deste modo, e equiparando, a linguagem "evangilizadora" é uma constante do nosso discurso legitimador.
Um bem haja para si e para o Zé Neves.
Meu caro Justiniano,
não tenho a certeza de ter compreendido bem o seu comentário. Mas o ponto que você identifica como decisivo bate certo:"a condenação teológica da democracia e da filosofia não teologicamente esclarecida que o esplendor peculiar da sua verdade última requer".
Que posso acrescentar? A "democracia", a "autonomia", o "absoluto da pessoa humana", não são prescrições, momentos ou passos necessários de uma razão ou ordem de determinações que é e permanece sempre idêntica a si própria antes e depois de qualquer acontecimento. São criações que - como o poema, segundo G. Steiner - podiam não ter sido: não têm precedentes que sejam suas razões suficientes, embora talvez tenham tido, por vezes, condições necessárias. A ideia de direitos individuais ou colectivos, a ideia de "escravo", de "súbdito" ou de "cidadão", a ideia de um Iavé ex machina, etc. não reproduzem, copiam ou representam uma realidade ou modelo anterior, nem uma ordem final(izada) que as preceda lógica ou cronologicamente. Mas reconhecermo-nos como criadores - ou seja seres históricos que se fazem a partir do que os fez e não necessariamente segundo o que os fez (dizer que somos históricos é dizer que nenhum conceito ou ordem de determinações nos contém por completo, dizi algures Gadamer) -, reconhecermo-nos como criadores/fazedores, que fazem com que o ser que são e o ser em que se inscrevem seja a cada vez diferente e nunca simplesmente idêntico a si próprio; reconhecermo-nos como tal significa assumirmos também a responsabilidade pelas nossas criações e decidirmos ou ajuizarmos sobre elas. A razão e a democracia não têm fundamento último, e não precisam de o ter para que a nossa opção por elas se justifique. É porque pensamos que a palavra e o diálogo são preferíveis à violência ou à imposição hierárquica (não ontologicamente mais "reais" ou "verdadeiros", mas mais convenientes e adequados como critérios de uma vida boa), e é porque pensamos que, sendo autores das nossas próprias leis e instituições, preferimos as condições que a democracia cria para a sua decisão, que escolhemos a razão e a democracia como critérios de juízo e avaliação das criações humanas. É na origem que a liberdade política tem um pacto com a morte ou pressupõe a renúncia à imortalidade (da lei) divina ou de qualquer solo firme último. A ideia de casta e a sociedade de castas não são menos criação do que a ideia de cidadania e a sua parcial institucionalização em Atenas. Mas só aos olhos do cidadão e da filosofia, não aos da crença na naturalidade ou origem sobre-humana da ordem de uma sociedade de castas. É precisamente a renúncia à determinação última da ordem humana por uma lei exterior ao fazer humano que abre a possibilidade da deliberação e da escolha nas instituições da cidade e, por conseguinte, na consciência de cada cidadão. E é isso que, no fundo, é insuportável para a autoridade religiosa, pelo menos na medida em que queira ser consciência do poder político: é que a presença da democracia, do projecto democrático, obriga a religião a dar conta e razão da lei que propõe ou estipula. Daí os exercícios bizarros a que hoje assistimos de tentar justificar os conteúdos da revelação em termos de boas razões, e a insistência, por exemplo, do actual papa em ditar limites ao livre exame democrático ou à interrogação filosófica.
Poderia - deveria - continuar, mas por aqui me fico, para não encher demasiado as caixas de comentários deste post do Zé Neves.
Cordialmente
msp
Eu também ouvi. Quer dizer, ao fim de cinco minutos ouvia sobretudo os meus dentes a ranger.
O mais impressionante? O concerto era absolutamente pindérico.
Haja (mais) Deus (que cu).
ou como uma tocadela de sinos dá cabo da razão nuns míseros 30 minutos... a complexidade do mundo não cabe em nenhuma Teoria é o que é - por muito astuta que ela seja
Meu caro MSP,
Desculpe-me a falta de clareza do meu anterior comentário.
Apenas disse, queria dizer, que os limites ao princípio democrático se devem fundamentar na metafísica valorativa e na auto-legitimação da dignidade da pessoa humana como princípio hetero-determinante a toda a construção jurídica. Esta limitação à razão “democrática” é a reserva material do absoluto que expressa a nossa Constituição da República (limites materiais de revisão).
Mas acompanho-o “A razão e a democracia não têm fundamento último, e não precisam de o ter para que a nossa opção por elas se justifique” em algum utilitarismo racional. Assim como dizer que o direito de propriedade não tem um fundamento último em si e que se justifica plenamente, e simplesmente, como o modo mais eficiente de domínio e exploração económica das coisas.
Não me movo contra o princípio democrático mas apenas contra a usurpação democrática que levará, inevitavelmente, à deterioração do princípio Republicano e Liberal.
A questão, como a minha humilde e reduzida ciência me permite colocar, é que, aqui chegados, deveremos saber distinguir a contingência das condições do hipotético daquilo que é absoluto, dever ser, que ganha consciência de si, e prezar cada um destes, à sua medida. Ou, à laia de Rorty, dizer que a razão pode-nos levar a abandonar o constrangimento da consciência como fonte de obrigações morais que nos trouxeram até às sociedades democráticas modernas, de, per saltum, eliminar degraus de uma longa escada como se o resultado fosse coisa evidente. Tal constitui um erro de concepção sobre a edificação humana.
Nenhuma sociedade liberal democrática ou projecto de participação democrática poderá persistir sem observar as reservas aos limites da acção ou sem metafísica valorativa de legitimação (ou mesmo alguma ortodoxia). Daqui resulta “Que posso acrescentar? A "democracia", a "autonomia", o "absoluto da pessoa humana", não são prescrições, momentos ou passos necessários de uma razão ou ordem de determinações que é e permanece sempre idêntica a si própria antes e depois de qualquer acontecimento. São criações que - como o poema, segundo G. Steiner - podiam não ter sido: não têm precedentes que sejam suas razões suficientes, embora talvez tenham tido, por vezes, condições necessárias. A ideia de direitos individuais ou colectivos, a ideia de "escravo", de "súbdito" ou de "cidadão", a ideia de um Iavé ex machina, etc. não reproduzem, copiam ou representam uma realidade ou modelo anterior, nem uma ordem final(izada) que as preceda lógica ou cronologicamente”. Fora somente a democracia, meu caro MSP, e estaria plenamente de acordo. Mas a autonomia, o livre arbítrio, a identidade, enfim a dignidade da pessoa humana, não são criações que podiam não ter sido, serão o espírito absoluto – o fim em si mesmo – critério e horizonte de toda a construção.
Um bem-haja cordial, Justiniano
Caro Justiniano,
deixando de lado a questão dos regimes de propriedade, apenas uma observação Você escreve: "a autonomia, o livre arbítrio, a identidade, enfim a dignidade da pessoa humana, não são criações que podiam não ter sido, serão o espírito absoluto – o fim em si mesmo – critério e horizonte de toda a construção".
Ora, eu admito que haja boas razões para os considerarmos como "critério e horizonte de toda a construção". Mas "espírito absoluto"? Realidades que preexistem a si próprias, independentemente da criação humana? Eu diria antes que são "criações humanas", criações históricas, que podiam não ter sido, mas que, uma vez criadas, recriam o que as criou ou foi paisagem da sua criação. Podemos achar, depois - quer dizer hoje -, que uma vida deixa de ser digna de ser vivida sem vontade de autonomia, consciência da margem de livre-arbítrio que informa os actos de cada um, em condições de escravidão, etc. Mas a vida não foi feita, não aconteceu, para nós, tendo-nos como fim. Embora dizer isto, e dizer que nunca a poderemos julgar de fora, NÃO seja dizer que não podemos e devemos julgar as formas de vida que nos damos. Os próprios critérios superiores por que nos governamos, e por que estamos dispostos a jogar a vida, são obra nossa, nossa construção do que nos transcende. Podemos e devemos, a meu ver, em certas condições preferir não ser nada a ser menos do que aquilo que nos criámos ou fizemos ser, a partir do que nos criou e fez ser. Mas não precisamos de espírito absoluto nem de ser que colmate o sem-fundo do tempo para o fazermos.
Abrç
msp
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