12/05/10

O desertor

O desertor
A divulgação, por parte do cidadão Manuel Alegre de Melo Duarte, dos dados constantes do seu registo militar, tem contornos deploráveis que não podem ser ocultos do exame público. Essa publicitação, feita no site www.manualalegre.com, destina-se a demonstrar que o candidato presidencial «não tem nada a esconder, ao contrário dos cobardes que espalham calúnias a coberto do anonimato e contra os quais não deixará de agir judicialmente» e a provar que «cumpriu o serviço militar, nomeadamente em África e em situações de combate». Mas contém implícito um julgamento da maior gravidade em termos históricos e democráticos: a «acusação» que corre é a de que Alegre terá sido desertor do exército português, variando os boatos apenas ao colocarem o momento da deserção antes da mobilização para África ou já no teatro de guerra angolano. Trata-se de uma questão tornada agora sensível mas que não deveria sê-lo, e é estranho ser um candidato da esquerda, e um resistente ao regime derrotado no 25 de Abril de 1974, a abordá-la desta forma.

O número de desertores e de refractários foi sempre muito grande durante a Guerra Colonial, crescendo de forma constante ao longo dos treze anos do conflito, como o revelam os dados divulgados em 1988 pelo próprio Estado-Maior Exército: em 1961 a percentagem de faltosos foi de 11,6%, em 62 subira já para 12,8%, em 1963 atingia os 15,6%, em 1964 subia para 16,5%, entre 1965 e 1968 rondaria os 19%, e entre 70 e 72 andou sempre muito perto dos 21%. Naturalmente, a motivação para «fugir à guerra» ou para abandoná-la a determinado momento, foi sempre diversa. Mas tenha sido ela concretizada por motivos abertamente políticos, por condicionantes de natureza económica ou por actos do domínio da objecção de consciência, tratou-se sempre de uma escolha determinada por uma guerra injusta, como tal legitimadora das mais diversas formas de resistência. De entre elas, a deserção.

Para além disso, a chamada «deserção política», aquela da qual Alegre tem sido acusado e da qual se serve periodicamente a direita para tecer insinuações de «cobardia», representou para muitos milhares de jovens um acto de bravura, uma vez que os condenou ao duro exílio, à prisão, ou, por vezes, à clandestinidade. Em qualquer dos casos a uma existência muito difícil, que sabiam ser inevitável em função do seu gesto arriscado e definitivo. Desertar era resistir, tal como, de forma diferenciada mas constante, defendia publicamente a larga maioria da oposição ao Estado Novo, da qual Alegre fez parte e foi importante símbolo. Declarações desta natureza, no mínimo ambíguas, deixam no ar uma desconsideração da coragem de desertar da Guerra Colonial que pode trazer uns quantos votos do eleitorado «viril» mas é pouco digna de um resistente. São inaceitáveis e ofensivas para muitos portugueses vivos ou mortos. E nada têm a ver com o respeito devido à larga maioria daqueles que fizeram a difícil guerra por escolha ou incapacidade para a recusarem.

Uma declaração de interesses necessária: fui desertor do exército colonial por razões políticas – forçado a algum tempo de clandestinidade, mas reintegrado nas fileiras em Dezembro de 1974 – e, se não se multiplicarem circunstâncias que me levem a mudar de azimute, conto votar em Manuel Alegre na próxima eleição presidencial.

Adenda: um post lateral

Publicado também em A Terceira Noite

13 comentários:

André Carapinha disse...

O meu pai, João Carapinha, foi, com o maior orgulho, desertor dessa guerra horrível e mais tarde oficial do MFA no pós-25, dito isto: não estou nada de acordo com a sua abordagem, mais papista que o Bento. Nunca esteve em questão aqui a opinião do Alegre quanto aos desertores da Guerra Colonial. Apenas, e mais uma vez, um boato soez destinado a diminuí-lo aos olhos da realpolitik. Se o cidadão Manuel Alegre combateu na guerra, isso faz parte da sua história pessoal tanto como se isso não tivesse acontecido. Com certeza que eu entendo os mecanismos psico-sociais que subjazem a essa insinuação, o maior dos quais o facto de poder ser, ou não, um qualificado "chefe das Forças Armadas". Seja. Mas se o cidadão Manuel Alegre de facto cumpriu o serviço militar, pelo menos que isso sirva para não o diminuir.

Antóinio Miragaia disse...

Este post é lamentável e faço minhas as palavras do comentador anterior. A única coisa que se lê na página de MA é:
“Manuel Alegre de Melo Duarte cumpriu o serviço militar, nomeadamente em África e em situações de combate. Não tem nada a esconder, ao contrário dos cobardes que espalham calúnias a coberto do anonimato e contra os quais não deixará de agir judicialmente.”

Em parte alguma é condenado quem desertou! É a palavra “calúnias” que o choca? Mentir propositadamente é uma calúnia e é disso que se trata.

Declaração de interesses: não votei MA em 2006, mas considero que agora há que reunir todos os esforços possíveis à esquerda para tirar Cavaco de Belém. Mas com eleitores como RB, será cada vez mais difícil.

Miguel Serras Pereira disse...

António Miragaia,

explique-me lá, por favor, por que é que o voto do Rui Bebiano vale menos do que os outros, e, em vez de facilitar um bom resultado de MA, o torna mais difícil. E já agora, é só o voto do nosso via-factuante que causa dificuldades, por si próprio - ou causa-as por se inscrever num tipo mais geral de voto com efeitos aritméticos perversos?

Saudações anti-militaristas

msp

António Miragaia disse...

O voto de RB não vale menos nem mais, “se não mudar de azimute”, mas a sua argumentação que é fruto de uma leitura enviesada ou apressada de um texto presta um mau serviço.

Rui Bebiano disse...

Meus caros, não há leitura enviesada alguma. O que está implícito nesta posição do candidato, perfeitamente desnecessária, é a recorrente sintomatologia marialva de Manuel Alegre. Poder-me-á alguém explicar por que outro motivo isto é revelado com tanto destaque? Para que serve? Não quero dizer que Alegre seja «contra os desertores» - se o pensasse, jamais votaria nele - mas ao tomar uma atitude pública desta natureza, de certa forma dá argumentos a quem não gosta deles. Podem crer que ainda há muita gente desta por aí (a começar pela instituição militar, obviamente).

Rui Bebiano disse...

Já agora: lendo-se o meu post com alguma atenção percebe-se que ele não é «contra Alegre», mas sim contra o seu lado (a meu ver) algo lamentável. E contra a desvalorização pública do acto político de resistência que foi a deserção ou que era a objecção de consciência em relação ao serviço militar obrigatório.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Rui e demais interlocutores

"Neste país em diminutivo / Respeitinho é que é preciso", dizia o Alexandre O'Neill. Parece-me que este "respeitinho" continua a infectar para além do suportável, com o seu espírito de vassalagem, muitos lugares de onde deveria ser eliminado à partida. O que nos faz falta é acabar com culto dos "grandes vultos", do "amor da Pátria", dos "feitos heróicos", e dar poder à malta. A democracia não visa a "protecção dos mais fracos", mas acabar com a "fraqueza" dos relegados para uma cidadania de segunda, destruindo o poder hierárquico e abrindo caminho à sua participação igualitária no exercício do poder.

msp

Jorge Pinto disse...

Até há pouco tempo, julgava que o M Alegre tinha desertado (certamente induzido, achava até que tinha tido um problema em África com um superior e desertara quando soubera que a PIDE viria para o prender). E, por esse facto, invejara-lhe a coragem.
Soube depois que tal não seria verdade. Ok, tudo bem.
Agora vejo que considera esse epíteto calunioso. Ora abóbora, ó Alegre!

António Miragaia disse...

Insistem em que não interpretar o texto correctamente e perceber o que está em causa. Felizmente há quem o faça:
http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1567565&seccao=Ferreira%20Fernandes&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

António Cardoso disse...

A reacção de Manuel Alegre só mostra que considera desonroso desertar do exército colonial português. Senão, dizia não desertei, porque fui preso, mas se o tivesse feito, seria um acto muito honroso. É preciso olhar ao contexto. Para a direita, hoje hegemónica na comunicação social e em tudo, os heróis são os que se distinguiram na guerra colonial ou seja mataram mais e melhor os povos das colónias, enquanto os desertores foram traidores à Pátria.
Alegre não quer nada com esse honroso nome de "desertor", ele lá sabe porquê. Agora estranho que pessoas que desertaram vão votar num homem destes. Claro, dirão que foi um deslize, não se explicou bem. A verdade é que isto é o resultado lógico do nacionalismo balofo de Manuel Alegre. Para esse produto, que serve muito bem para tapar uma retórica oca, já demos, dispensa-se o Alegre.

António Marquês disse...

Acredito que terá sido um dilema para Alegre decidir-se a fazer a declaração que se discute. Claro que venceu a parte dele que gosta de se mostrar, de dizer "eu estou aqui". Mas o mais grave, para um homem que é de esquerda (e nisso não tenho dúvidas) é que ele se viu obrigado a responder a uma provocação "direita" para não perder votos do centro. Não era necessário tanto. Mas como diz bem RB, alegre gosta disto - quando foi da sua saída de deputado (quase empurrado), não teria sido mais bonito tê-lo feito uns anos antes, dando lugar aos mais novos, em vez de se ter como imprescindível?
Para rematar, apesar de tudo, também votarei Alegre.

Rui Bebiano disse...

Não quero repetir o argumento, mas uma pessoa com os actuais objectivos políticos do MA deve saber que, nas funções para as quais se candidata, conta tudo o que diz e tudo o que não diz. Ao dizer o que disse, desdisse o que outros pensavam ser a sua posição (também pensei durante muito tempo que ele tinha sido desertor). Mais valia ter ficado calado...

(100% de acordo. Miguel. Que raio de coisa isto de se armarem em Afonsos! De Albuquerque, já que o Costa se atirou de um «americano» abaixo só porque ouviu o rebentamento de um pneu.)

Ana Cristina Leonardo disse...

a parte que não percebi: vão votar no alegre?!!!