23/05/10

Diz-me de onde vens, dir-te-ei quem és...



Estive hoje no ”carnaval das culturas” que está a decorrer este fim de semana em Berlim e não resisto a deixar aqui umas notas sobre multiculturalismo e diferença.


Antes de mais – e para não ser acusado de cinzentismo –, apresso-me a dizer que este festival é – tendo em conta o modo como é vivido por quem nele participa, mais do que pelo princípio “multicultural” que o rege –, é, dizia, um evento realmente popular, com um ambiente excelente, por onde passam pessoas de todo o tipo, pessoas que vêm conviver, passear, dançar, beber, ou simplesmente passar algum tempo sentadas ou deitadas nos relvados... Mas isto, enfim, é Kreuzberg (o bairro em que decorre o festival) – e Berlim é uma cidade por que é difícil não se apaixonar, apesar ou, provavelmente, em virtude das suas contradições. Mas estas ficarão para outro post.

Contudo. A pergunta a que é difícil escapar, quanto ao princípio deste e de outros festivais multiculturais com o mesmo perfil, é a de saber se, ao fim e ao cabo, não se andará perto de uma espécie de “racismo positivo”, por outras palavras, se uma tal exibição – sobretudo no cortejo – da diferença, do estrangeiro, do exótico, não encerra o perigo de um fetichismo das identidades culturais que dogmatiza as diferenças, encerrando os membros desta ou daquela cultura num estereótipo. Além disso, referindo-me a estas bandas, também faria sentido interrogar-se sobre o que a “celebração da diversidade étnica e cultural” permite que não se debata acerca de Berlim.

Em todo o caso, e para não me limitar a uma espécie de “sim, mas/não, mas” talvez faça sentido distinguir, na discussão do multiculturalismo – e, em particular, no que toca ao conceito de diferença – três planos: o das práticas, o discursivo e o filosófico...



Em síntese (notas curtas, para continuar a pensar): ao nível das práticas – que é também o do dia-a-dia, dos gestos, das (con)vivências e, também, das lutas – só faz sentido que se valorize a diferença cultural (ao mesmo tempo que se luta pela igualdade política). O mesmo se passa num plano filosófico, em que a diferença (ou o “não-idêntico”, se nos recordarmos de Adorno em vez de de Deleuze) é, por assim dizer o “a pensar” – resistindo ao princípio totalitário da identidade e do (ou de um certo) universal. Mas há, também, o plano discursivo em que a “diferença” se pode ver absorvida ideologicamente. É, por isso, indispensável detectar e criticar a instrumentalização do ideário multicultural – e, neste ponto, remeto para o que aqui têm escrito nomeadamente o Miguel Serras Pereira e o Pedro Viana – uma preocupação que eu resumiria dizendo que importa distinguir a “diferença” do seu emprego em discursos de afirmação – mais ou menos violenta, mais ou menos explícita, mais ou menos perigosa – daqueles que, no fundo, não acreditam nela...

Enfim, é a velha história do bébé e da água do banho que, aplicada alegoricamente ao meu dia de hoje, me dá alento para não considerar contraditório ter escrevinhado umas notas para este post refestelado num relvado da Blücherplatz com uma cerveja nas mãos.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Camarada João Pedro,
solicitado pela tua sugestão de "notas curtas, para continuar a pensar", dei por mim a perguntar-me, como se to perguntasse a ti, se não poderíamos voltar ao kairos do teu post anterior, entendendo-o como descoberta criadora (poiética), ou como descoberta que é também criação, da ocasião que faz diferença… Iniciativa alternativa que cria a sua própria oportunidade, recriando, enquanto ponto de partida da alternativa, as condições predeterminadas da sucessão.
Marx dizia que os humanos fazem a história, mas a partir de circunstâncias determinadas, que circunscreveriam esse fazer e as suas possibilidades. Mas o mais importante aqui seria antes assumir o fazer como acção de (re)fazer ou (re)criar as circunstâncias determinadas como condições de criação (de (liberdade de criação e de criação de liberdade). O que nos levaria do mesmo modo a assumir alternativamente as "circunstâncias determinadas" de partida como persistência - ou "eficiência histórica" actual, ainda que aprisionada pela inércia do instituído - de um fazer-ser anterior, também ele, para além do "condicionado" ou (pre)determinado, criador das suas próprias determinações, das suas próprias condições de fazer determinante.

À mesa de trabalho, invejando o teu relvado, e com um abraço

miguel (sp)

João Pedro Cachopo disse...

Penso que sim, caro Miguel, que algo como uma “descoberta criadora” estará em causa no “kairos” – decisivo é, por isso, esse misto de actividade e passividade, de consciência e inconsciência, de poder desejar, sem poder ter podido prever o que sucede "diferentemente".

Decisivo é que ao referires o “kairos” alargues a questão da diferença à temporalidade, ao passo que a diferença, como é pensada pelo multiculturalismo, diz respeito, à partida, à espacialidade (às diferenças culturais que são também geográficas). Uma e outra estão, em todo caso, ligadas (a diferença cultural remete, como é óbvio, para uma profundidade histórica). No entanto, o enfoque na temporalidade da diferença convoca outras questões em termos políticos.

Da tua referência a Marx – à concepção materialista da “negação determinada” (um fazer história contra/ao encontro das circunstâncias) – retinha também do que escreves que o fazer (que é também um desfazer) só pode sê-lo radicalmente se o for também das suas próprias condições ([re]fazer / [re]criar). Numa palavra, a perspectiva de uma mudança radical do que é (da realidade dada) depende de uma crítica das condições do poder ser. Outra coisa não seria pensar.

Nem sempre é fácil expressar com rigor estas ideias em tão curto espaço, mas vamos tentando.

Um abraço!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Pedro,
ontem, ao comentar num post, outro que o camarada Ricardo Noronha escrevra, vieram-me à memória estes versos de Antonio Machado.
Aqui tos deixo, à laia de bom-dia, porque iluminam muito do que dissemos, na medida em que a metáfora do "caminho" é propícia à reflexão que propuseste sobre o kairos e da sua "localização" flutuante, no que não é só sujeito nem só objecto, mas o "tecido conjuntivo" (Merleau-Ponty) a partir do qual se diferenciam, por um lado, e que, por outro, resulta no "caminho" criado pelo corpo-a-corpo do terreno e do andar.
Mas aqui ficam as palavras de Machado:

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

E um abraço para ti

miguel sp