18/05/10

Une pas si belle indifférence

Num post intitulado Em que o Autor fala da Fé, de tê-la e de não tê-la, publicado no Janelas, JPB discorre sobre a fé e o fenómeno religioso, declarando a irritação que causa ao seu espírito tolerante o espectáculo dos que, por "combaterem a religião com tanto fervor, estão a despertar gente para ela: algo que motiva tanto ódio deve afinal ter qualquer coisa de bom. Estão a fazer mais por aquilo que querem contrariar do que séculos de proselitismo. São ateus, graças a Deus".
Curioso argumento, que não deixa de lembrar os conselhos dos que nos diziam que atacar frontalmente a ditadura era reforçá-la e favorecer o seu endurecimento. E também devia ser evidente para JPB que, se não vivemos hoje num Estado confessional, se não temos, nesta região do mundo, de ver os livros e opiniões que circulam submetidos à aprovação de uma mesa censória sacerdotal, se a Igreja de Roma tem visto frustradas as suas pretensões de manter a sua doutrina como fonte de normas jurídicas positivas, isso só foi possível como desfecho de combates prolongados e duríssimos, e não através do indiferentismo que, no fundo, o seu texto nos recomenda. O qual, de resto, seria objecto de pronta repressão pelo braço secular noutras épocas.
Mas a pérola argumentativa fica guardada para o remate do post, quando JPB escreve: "De resto, invejo quem tem fé. Se um dia ela me chegar, não o lamentarei". Quanto à inveja de quem tem fé, podemos deplorar a fraqueza de mortais que nos torna vulneráveis a essa tentação, e por isso sabemos do que se trata. Mas dizer alguém que, se um dia tiver fé, não o lamentará, ou eu me engano muito, ou é mais ou menos o mesmo que dizer: "quando respito bem, não respiro mal", "não me sinto mal quando experimento bem-estar", "as dúvidas tiram-me a certeza" ou "as insónias perturbam-me o sono". Ergo, enquanto JPB não nos mostrar um crente que preferisse não ter fé a tê-la, que, continuando crente, lamente acreditar naquilo em que acredita, teremos de concluir que 1) não é só no campo dos críticos da religião que " há gente que cai na pura palermice"; e 2) que, se entre os indiferentistas - nostálgicos embora da fé que fantasiam ser a dos carvoeiros felizes - "há os mais sérios e estruturados", os "poucos resistem ao exagero", JPB não se conta entre eles.

2 comentários:

Joana Lopes disse...

Miguel,
Leste com atenção todo o post do jpb? Tiveste a preocupação de colocar o que pões em evidência no contexto global? Não me parece.

É-se especialmente sensível quando se tem um grande apreço pelo autor de um texto que se vê molecularmente criticado? É bem possível e é o meu caso.

Miguel Serras Pereira disse...

Cara Joana,
talvez me tenha irritado, sobretudo, o tom desprendido e condescendente, de sábio acima das paixões humanas que obnubilam os cérebros alheios, do post. Mas li-o com atenção, e dei até por outras afirmações tão sumárias como a daquele tipo que não acreditava na alma porque nunca a encontrara na ponta do bisturi.
Por exemplo: o que é que significa dizer que não se tem nada contra a religião, mas só contra certos actos que se praticam em seu nome? Não são alguns desses actos prescrições religiosas propriamente ditas? "Guardar castidade em pensamentos, palavras e obras", punir o adultério e a blasfémia com a morte, acreditar na Imaculada Conceição e na transubstanciação, coroar os reis aqui e estipular o governo directo dos chefes dos fiéis ali - nada disto são aspectos exteriores da religião ou prescrições que se fazem em seu nome: são prescrições religiosas, práticas da religião. Se o que JPB quer dizer, é que propõe que a fé se purifique de tudo isto, ou que o fenómeno da fé excede tudo isto, podendo e devendo dispensá-lo, então deveria dizer qualquer coisa como: temos o direito de crer em Deus, até de falar dele, mas não em seu nome, como se ele nos tivesse mandatado para governar ou dizer quem o deve fazer, encarragando a religião de nos dar a lei fundamental ou de legitimar as leis. Então, sim, estaria a falar de uma fé - eventualmente cristã - que teria tudo contra uma religião como o catolicismo romano tal como foi praticado ao longo dos últimos séculos. Uma fé que veria, talvez, como Simone Weil, uma purificação no ateísmo - e que, na medida em que agisse sobre ele como cidadão, tenderia a levá-lo a apoiar os que reclamam a secularização do espaço público formal de exercício do poder político e o reconhecimento de qualquer magistratura (para-)governamental à religião.
Esperando parecer menos culpado de molecularismo aos teus olhos e à tua sempre benéfica orientação espiritual, agradeço-te teres-me obrigado a explicar melhor as razões meta-humorais que, apesar de tudo, creio que informam o meu post.
Com um abraço

miguel (sp)