23/05/10

Viagem a Cunhal

Do livro de Carlos Brito com as suas memórias de camaradagem com Álvaro Cunhal (*) pode dizer-se, quanto à sua oportunidade, que é um livro necessário, constituindo, a meu ver, a mais importante novidade editorial dos últimos tempos em termos políticos e historiográficos.

Cunhal e o seu mito, inseparáveis num dos políticos mais brilhantes e influentes do século XX português, marcando profundamente a sociedade, a política e a cultura portuguesa até os tempos actuais, já tinham idolatria servida e penetrada em doses maciças; marcas de amor, ódio, simplificações e preconceitos; testemunhos de seguidores, adversários e dissidentes; olhares curiosos e fascinados “ de dentro” e “de fora”; uma biografia incompleta elaborada, com coragem, mérito e insuficiências, por um seu estudioso (José Pacheco Pereira) que sempre navegou em águas políticas diferentes das do líder comunista; reedições dos seus textos. Mas faltava algo importante e sintético sobre Cunhal, sobretudo uma visão que, ajudando a desfazer o mistério, contornando o carisma, nos permitisse aproximarmo-nos do revolucionário e da pessoa. Ou seja, o revolucionário enquanto pessoa e a pessoa enquanto revolucionário, únicas fórmulas aparentemente bipolares aplicáveis no único caminho para se chegar a Cunhal além do seu mito. O que, nas circunstâncias particulares de um dirigente comunista, é objectivo difícil de atingir, quase uma impossibilidade, sobretudo porque o silêncio e o mistério fazem parte do menu respiratório do fluxo orgânico do “centralismo democrático”. Porque abundando aqueles a quem a deificação de Cunhal serve ainda hoje como “prova de vida (política)” e sendo muito poucos os que tiveram acesso ao seu círculo íntimo (pessoal e partidário), era reduzida a probabilidade de “o culto cair na rua”, ou seja, descompor-se pela exposição dos contornos e das contradições através da sua acessibilidade via humanização.

Poucas pessoas além de Carlos Brito tinham condições para escrever e editar “um livro que faltava sobre Cunhal”. Não só porque o conheceu muito bem e durante um longo período (de 1967 a 2000), partilhou com Cunhal, na comunhão possível e permitida numa organização fortemente estanque e hierarquizada, as maiores responsabilidades políticas e partidárias, no período da clandestinidade, no período revolucionário e na fase de ocaso e decadência do PCP. Mas porque, nunca tendo sido um dissidente ou adversário de Cunhal, pela sua independência intelectual e pelo seu inconformismo político, tendo sofrido na pele a marginalização (e o castigo) do aparelho que se aproveitou da decadência de Cunhal, tinha as condições favoráveis a uma apreciação do líder desaparecido com distância, rigor e equilíbrio, sem culto nem preconceito. Ainda escrevendo e analisando bem, possuindo um bom suporte documental e factual, a memória política e partidária só pode agradecer a Carlos Brito a coragem de, com a maior decência, ter decidido ajudar a romper o véu sobre Cunhal e o seu mito, esse manto de omertà que inibe os que vivem e viveram o comunismo da sua exposição pública (e, afinal, do conhecimento do essencial, no orgânico, na ideologia e nos jogos de poder, por parte da esmagadora maioria dos seus militantes, simpatizantes e eleitores). Como nem Brito nem qualquer outro conheceram "todo o Cunhal" (a sua compartimentação integrava a que era aplicada às tarefas do partido), ele só não alcançou esse impossível. Mas uma aproximação ao real é sempre melhor que um mito em processos múltiplos de reprodução, deificação e demonização. E Carlos Brito deu o contributo que podia dar para que o Cunhal que vai passando á história se aproxime de uma figura humana, real, deste mundo, mas sempre excepcional e única.

Engana-se quem pense que o livro de Carlos Brito sobre Cunhal é um ajuste de contas ou sequer uma biografia deste. Diferente disso, ele é um livro de uma viagem política “a dois”, de Brito e Cunhal, dois camaradas próximos e diferentes, em que Brito, que tantas vezes foi avaliado e posto à prova por Cunhal, retribui ao seu dirigente máximo desaparecido um olhar de apreciação e levantamento dos pontos brilhantes e pontos negros que recheiam a carreira de um dos políticos portugueses mais influentes de sempre. E que, paralelamente, é uma revisitação do combate clandestino do PCP, da caminhada revolucionária e da decadência do PCP (esta fase já vivida em progressivo afastamento de trincheiras). O que dá ao livro um alcance suplementar, o da retrospectiva histórica e política sobre o passado de luta e decadência do PCP, sempre com a marca tutelar de Cunhal, o líder, o “Grande Irmão”. Depois, sempre importante em obras deste género, o estilo coloquial adoptado por Carlos Brito nesta obra faz dela um livro de leitura empolgante e fascinante.

[Penso que o importante, para quem se interessa pelas questões da história portuguesa contemporânea, do comunismo, do PCP e de Cunhal, é que leia este livro de Carlos Brito. Como a edição é muito recente, deixarei passar algum tempo até voltar a ele. Ou seja, ao Cunhal que nos é apresentado por Carlos Brito.]

(*) – “Álvaro Cunhal, Sete Fôlegos do Combatente – Memórias”, Carlos Brito, Edições Nelson de Matos

(também publicado aqui)

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