27/05/10

Nenhum motivo para fazer festas (1)


No Cinco Dias continua a escrever-se acerca da concentração anti-capitalista agendada para o próximo Sábado. Infelizmente, e uma vez trocadas ideias com a fracção lúcida daquele blog, a coisa viu-se agora transferida para a ala psiquiátrica. O registo delirante do costume não surpreende, mas uma vez que o António Figueira e o João Aguiar, pessoas respeitáveis, resolveram subscrever um pedaço de prosa reaccionária, apetece-me dedicar alguns apontamentos ao assunto.
Comecemos pela fama de Carlos Vidal, que se estreou no 5 Dias com um longo post de louvor a Debord e desde então não pára de o insultar. Esta espécie de «aproximação» aos autores do pensamento radical é aliás uma pedra de toque deste professor universitário, que refere agora «os pequeno-burgueses do costume» com aquele concentrado de estupidez próprio de quem não pára um segundo para se ver ao espelho. Importa dizer que, embora se esgote em referências e citações a tudo o que lhe pareça ser profundo e subversivo,  os textos que recebem a sua assinatura caracterizam-se pelo mais profundo e obtuso conformismo político, temperado aqui e ali por algumas referências estetizantes. Isto, evidentemente, quando não está ocupado a escrever como um agente do SIS. 
Ao afirmar que "os oprimidos não têm nenhum motivo para fazer festas" revela-nos toda a boçalidade de que é capaz. Vidal cita Debord porque ouviu dizer algures que se trataria da melhor prosa do século XX, mas mostra-se incapaz de extrair dessa prosa um vestígio, por pequeno que seja, de inteligência. E nem por acaso, referindo-se a uma experiência histórica que terminou de forma dramática, escreveu Debord sobre a Comuna de Paris, que aquela "foi a maior festa do século XIX." E como nem sequer faltou a referência ao Maio de 68, importa notar que sobre o assunto escreveu o mesmo Debord que "foi evidentemente a rejeição do trabalho alienado; e foi por isso a festa, o jogo, a presença real das homens e do tempo."
Do mesmo modo, a referência à «imitação reverencial» do passado é outra imbecilidade que só traz ao de cima a sua incapacidade de dialogar com uma tradição teórica da qual se reivindica insistentemente. O presente pode actualizar o passado, retirar dele os materiais de que necessita, apropriar-se da história para realizar as suas próprias tarefas. E não é preciso ter lido Walter Benjamim para perceber o conteúdo fundamental deste pressuposto - todas as revoluções sociais da modernidade citaram abundantemente o passado e retiraram das anteriores experiências revolucionárias  ensinamentos, contributos, soluções. Mas isso são tudo coisas demasiado aborrecidas para quem se limita a declamar e reproduzir lugares comuns sobre o kitsch e a vanguarda. Os acontecimentos de 68 continuam a ser algo difícil de digerir para quem está tão bem instalado na sua própria irrelevância, e por isso o incómodo perante um texto que agita o seu espectro. Sim, uma greve geral selvagem pode voltar a acontecer e um novo ciclo de lutas sociais pode voltar a ser aberto, inesperada e subitamente. A quem poderá isso meter medo?
Tudo isto, que pouca importância teria num debate destes, serve apenas para sublinhar que estamos perante um personagem que, para lá do conteúdo propriamente político do que escreve, é uma gritante fraude intelectual e um dos exemplos acabados do que pior existe na franja artistóide lisboeta com pretensões intelectuais. Mal informado por terceiros das questões relevantes do nosso tempo, revela em cada comentário ou afirmação a boçalidade própria de quem acompanha com reverência o que se diz, escreve e faz "lá fora"
Como poderia ele compreender as razões de uma concentração anticapitalista numa manifestação da CGTP, se tudo no seu imaginário separa os jogos florais de salão (que toma enquanto teoria)  do processo histórico da luta de classes? Tão velho como este mundo que se decompõe perante os nossos olhos, Carlos Vidal é bem o sintoma do seu estado terminal. 

10 comentários:

Carlos Vidal disse...

Vai para o Marquês, faz o pino, sobe a estátua, pode ser que alguém repare em ti, sr. Noronha.

brunopeixe disse...

Ricardo,

Passas ao lado do essencial, que nao é o Carlos Vidal, mas o conteúdo do post dele. E não será por acaso que tu, que tens ignorado sistematicamente as provocações que o Carlos tem dirigido ao vias (Radio Miami, Neo-Cons, Bushistas, etc.) escolhas atacar este post. É que ele ataca o nervo de uma certa estetização e festivalização da política de que o texto da tal manif outra é um exemplo perfeito, mas não o único. E uma das tarefas importantes do nosso tempo é justamente o combater o império dos sentidos na política - seja na sua estetização, seja na celebração dos sentidos, do corpo, ou da festa. É preciso fazê-lo, contudo, sem cair na apologia do sacrificial da esquerda neo-neo-realista do suor e do sangue. A tarefa é encontrar uma política que não se reveja nem nos camponeses sofridos do neo-realismo, nem na rave orgíaca do Matrix Reloaded. Não há nada de emancipatório no gozo. Nem no sofrimento.

um abraço,
bruno

mescalero disse...

Atacar a "estetização" e a "festivalização" não é atacar nervo nenhum. É pegar no acessório para não ter que discutir o principal. E o que mais interessa nesta iniciativa é que ela parte de uma concordância com a necessidade de lutar, mas ao mesmo tempo alerta para o facto de as formas de luta que têm sido usadas não chegarem. Sobre isso nada, o vazio.

Ricardo Noronha disse...

Bruno, esse teu «nem...nem...» é revelador. Os sentidos, o corpo, a festa, são tão parte da realidade como a raiva, o ódio ou a coerência.
Bem sei que, confrontados com os desafios da pós-modernidade, da pop e da cultura de massas, parte da esquerda portuguesa optou simplesmente por resistir e denunciar. Mas isso também explica algo acerca da incomunicabilidade entretanto gerada. Não é por acaso que a composição das manifs sindicais e a dos festivais de verão seja não apenas diferentes, mas verdadeiramente oposta, do ponto de vista geracional e estético. Mas esse é um problema central que esta indignação relativamente à festa opta simplesmente por varrer para baixo do tapete.
De resto, estetização e festivalização da política é precisamente o que encontramos nos posts do Carlos Vidal e numa certa paixão pela declamação que também te atinge. E não é por não gostares de raves que ficas a coberto disso.
Se algum nervo é atacado por aquele post, é efectivamente a possibilidade de uma política outra que não aquela a que estamos habituados. Dessa, não encontro vestígios no teu comentário, nem aliás nos posts que não publicas no 5 Dias.
Um abraço.

brunopeixe disse...

mescalero,

olha que o problema não é as formas de luta não chegarem. não se trata de uma questão de grau, mas de uma luta diferente. o problema é que as divergências entre as concepções de política são tão grandes que o que me pergunto é? porquê fazer embarcar numa manifestação de cujos promotores os concentradores anti-capitalistas são profundamente críticos? isto também se discute aqui: http://5dias.net/2010/05/27/de-pe-contra-o-kitsch-revolucionario-sempre-e-tempo-de-mandarmos-as-urtigas-o-folclorismo-anti-capitalista-dos-bushistas-do-costume/#comments

um abraço,
bruno

brunopeixe disse...

Ricardo,

Os sentidos, o corpo e a festa são parte da realidade, pois são. Como as pastas de dentes, o futebol e os congressos do CDS-PP. Acontece que nem tudo o que é parte da realidade é político, ou tem de fazer parte da trajectória de uma política igualitária.

Concordo contigo quanto à necessidade de ultrapassar a atitude de entrincheiramento e denúncia da pop e da cultura de massas que muitas vezes não é mais do que moralismo bafiento. O que não devemos é prescindir de as criticar, nem de cair na posição contrária, de celebração acrítica das margens, da diferença ou do radical, para não falar do pós-moderno. A política é saber encontrar nesses domínios as linhas de demarcação. Com certeza que há que estar com os Gang of Four, os Sonic Youth o os Pop Group, tal como com o Luigi Nono ou o Helmut Lachenmann.

Que a composição das manifs seja diferente da dos festivais de verão, só não é um problema que se varra para baixo do tapete, porque não é verdadeiramente um problema, ou pelo menos não é mais problema do que ser diferente da composição de um concerto do tony carreira. E é também aqui que nos separamos. A política que vale a pena ser feita não faz culto da juventude, nem das novas gerações - coloca-se para lá do tempo das gerações.
Um grande abraço,
Bruno

Ricardo Noronha disse...

Ainda bem que não embarcas no fetichismo da estética e rematas os teus comentários com formulações como essas. Mas poderá haver uma política que opta por ignorar um problema de corte geracional tão profundo como aquele a que assistimos em Portugal?
Que trajectória emancipatória é essa que poderia abdicar do prazer, dos sentidos e do corpo?
De resto, será a Festa do Avante! ou o Festival Mundial da Juventude parte de um processo de festivalização da política?

mescalero disse...

Bruno Peixe,

O que eu disse foi precisamente que é uma luta diferente que a outra manifestação reclama.
Porquê então juntar as manifestações quando há essas diferenças tão patentes? Para influenciar a direcção que a luta toma, evidentemente. Ou o movimento sindical chegou ao seu estágio final de evolução, ao fim da história, e nada mais podemos esperar que as habituais demonstrações de luta anémica, destinadas a correr atrás dos estragos do capitalismo global?
Parece-me a mim que o verdadeiro problema que se põe aos críticos desta manif anti-capitalista, é que paira sobre ela a sombra negra do anarquismo.

brunopeixe disse...

Mescalero,

Como para mim as coisas sao pouco evidentes, fico pois esclarecido: é para influenciar a luta que vão á manif. Não só vão como, no mesmo movimento em que se aproximam, se distanciam, com cartazes, palavras de ordem, enfim, uma estética em muito oposta à da CGPT/PCP. Pode ser que com o magnífico cartaz e as electrizantes palavras de ordem, o cheiro a haxixe e a corpos suados atraia as multidões em caminho para os festivais de verão, e as faça juntar na unidade da luta. Unidade nas diferenças, claro está.
Quanto ao anarquismo, há de haver lá alguns, mas dos que conheço, a maior parte não vai por aí. Mas claro, o anarquismo tem de ser refutado na teoria e combatido na prática, como todas as formas de libertarismo.

Um abraço,
bruno

Ricardo Noronha disse...

Bruno, quando fazes comentários acerca das «electrizantes palavras de ordem, o cheiro a haxixe e a corpos suados» pareces o Alberto Gonçalves a falar, com ódio a tudo aquilo que não entende. Se queres «combater» o anarquismo vais ter que comer menos feijoada e empregar algum argumento. Aliás, sobre o teu comunismo, que está vedado a toda e qualquer divergência e portanto a todo e qualquer diálogo, ficámos relativamente esclarecidos.