30/07/10

Ainda sobre "As explicações que o PCP não dá"

Ao meu post desta manhã sobre As Explicações que o PCP não dá, e incitado por alguns comentários não propriamente inesperados de que o mesmo foi objecto, gostaria de acrescentar aqui algumas precisões.
Comecemos por uma experiência mental. Imaginemos que o Querido Líder da Coreia do Norte resolvia reformar o regime de monarquia absoluta a que preside e convocar eleições para uma Assembleia Constituinte, que elaboraria uma nova lei fundamental, instaurando um regime representativo do tipo existente no nosso país, no qual o Partido do Querido Líder não teria qualquer privilégio constitucional. Não é seguro que o PCP deixaria de incluir o regime da Coreia do Norte na lista dos "países que definem como orientação e objectivo a construção duma sociedade socialista "?

Mas porque o faria, então? A resposta não é menos evidente: porque o partido do Querido Líder passaria a ser o de um Super-Traidor ao negar-se, sob a condução do chefe, como partido de vanguarda, inspirado na leitura que o PCP faz dos princípios do marxismo-leninismo.
E porque o não faz agora, perante a realidade do actual regime do Querido Líder, apesar de todas as distâncias que sugere ser correcto manter perante a via coreana para o socialismo? Porque, apesar de todas as distorções, desvios, divergências, o regime norte-coreano mantém o que, aos olhos do PCP, é o traço distintivo dos regimes que "definem como orientação e objectivo a construção duma sociedade socialista" - a saber: "Cuba, China, Vietname, Laos e R.D.P. da Coreia". Esse traço distintivo, que justifica que sejam enumerados numa lista à parte, num quadro de honra que os põe acima dos outros governos ou movimentos "progressistas" que se opõem ao imperialismo (alguns países islâmicos, alguns movimentos latino-americanos, etc., etc.), consiste no monopólio da direcção política e económica por um partido cujo privilégio absoluto e os poderes discricionários se justificam, uma vez mais, pela afirmação do "objectivo [d]a construção de uma sociedade socialista".
A razão das não-explicações do PCP reside, pois, no apego da sua direcção a um modelo de sociedade e tipo de regime que são sinónimos do seu poder absoluto de direcção política e económica, acima da vontade ou opinião dos governados e independente destas.

Como, há já alguns anos, bem viu o camarada Luis Rainha, é o apego a este modelo e os interesses ligados à sua reprodução no interior do aparelho que explicam a decadência do PCP e o levam a prever a sua extinção gradual. Escrevia o Luis, em Novembro de 2004:
O PCP não vai morrer por teimosa fidelidade a ideais que já há muito pedem revisão profunda. Não falecerá por medo de se transformar numa coisa outra que mete o medo do desconhecido. Não é o idealismo nem sequer a saudade que tolhe qualquer ímpeto de mudança. Se fosse alguma destas a "causa provável" que irá ser inscrita na certidão de óbito do PCP, a agonia que agora testemunhamos ainda mereceria o nosso respeito. Ou, pelo menos, alguma pena.
Não. Trata-se apenas de vontade de poder. De uma clique minúscula, entrincheirada nas caves da Soeiro Pereira Gomes, que não imagina um mundo onde não possua aquele pequenino poder de indicar gente para o Comité Central, de decidir quem é ou não "de confiança". Gente como o "operário" Domingos Abrantes prefere por certo mandar em quase nada do que nada mandar. Os outros, os mil cúmplices neste enterro prematuro, são gente ainda mais pequena: os "camaradas" que não podem mesmo perder o emprego no partido, na câmara ou nos SMAS. Ou então malta que só sabe viver em bicos dos pés, aproveitado ínfimas tribunas – como a defunta marioneta que é o CPPC – mesmo que tal implique a cumplicidade com os zombies da Soeiro.

Por fim, considerem-se estas palavras de Castoriadis, a que já aludi noutras ocasiões e que estabelecem uma distinção importante entre o estalinismo e os seus avatares, por um lado, e o totalitarismo nazi: " [um partido estalinista] está condenado a dizer uma coisa e a fazer o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, invoca a ciência e a verdade e pratica a mentira e o absurdo. É por isso que perde muito rapidamente a sua influência sobre as populações que domina. Mas é também por isso que aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma 'ilusão revolucionária', acreditam de um modo geral que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária. É por isso que um comunista que descobre a monstruosidade do 'comunismo realizado' pode soçobrar psiquicamente, ou tornar-se social-democrata, oiu manter um projecto de transformação social radical desembaraçado do mmessianismo marxista-bolchevique. Um fascista ou um nazi não pode descobrir, nas suas crenças anteriores, nada que o incite a mudá-las" (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva. Entrevistas e Debates, 1974-1997, Lisboa, 90 Graus, 2006, p. 300).

Aqui a pergunta a fazer é a seguinte: e que se passa quando da "ilusão revolucionária", do apelo à pulsão democrática radical do início, já nada resta, excepto algumas fórmulas rituais cada vez menos convincentes, mais vazias e com menos capacidade de preensão sobre a realidade, e é sobretudo da imagem estereotipada de uma versão de "justiça" que não dissimula aquilo a que o Luis chama a "vontade de poder", ou do fantasma de uma dominação incondicional e ad legibus soluta, que a propaganda e acção do partido tira a sua força de atracção remanescente?
Pois bem, dir-se-ia que passamos então de um partido que - pela sua forma de organização, concepções da representação da classe pela vanguarda autodesignada de "profissionais da revolução", etc., etc. - já constituía, embora se dissesse "comunista", um obstáculo maior à luta pela emancipção e acesso à condição governante dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos, a um partido em cujas fileiras os "possuídos por uma 'ilusão revolucionária',[que] acreditam (…) que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária" serão e contarão cada vez menos.

6 comentários:

jojoratazana@sapo.pt disse...

Nem merece comentários.
Acho que precisa de uma reny.
jojoratazana por viver no meio de tantos ratos.

Anónimo que assina Miguel disse...

Duas coisas:

* Ora vê como eu tinha razão e o MSP até encontrou as explicações do PCP? Que o Miguel as critique é mais do que compreensível e não traz nenhuma novidade.

* Após as leituras destes (e de outros) textos fico com a sensação que o problema do Miguel não é o regime norte-coreano, nem o regime chinês nem o cubano, mas sim o PCP. O que também é compreensível, uma vez que está aqui mais à mão.

Já que gosta de experiências mentais deixo-lhe um desafio: que condições objectivas e subjectivas seriam necessárias para que o PCP adoptasse como referencial para a caracterização de regimes políticos a cartilha do MSP? O que é que teria de mudar no mundo para que isso acontecesse?

Dir-me-à que o PCP não é refundável e que é um obstáculo para a tal democracia governante ou auto-governante ou lá o que é isso. A ser assim, que interesse tem o Miguel nas "explicações do PCP" se o que lhe interessa é a sua extinção?

Miguel Serras Pereira disse...

Anónimo que assina Miguel:

não, não encontrei as explicações de que você fala. E, de resto, os textos que cito não são novidade para mim, e têm sido abundantemente citados sempre que a questão da Coreia vem à baila (o Vítor Dias, por exemplo, já recorreu a eles em mais do que uma ocasião recente).

As explicações que sugiro, se as ler com atenção, não poderiam ser as que o PCP adianta. São uma leitura que eu faço da sua (dele) prática e discurso.

Efectivamente, acho extremamente improvável - em história quase não há impossíveis - uma refundação do PCP (evidentemente, entendendo por "refundação" uma iniciativa do próprio Partido agindo sobre si próprio; não excluo tentativas num sentido "refundacional" por parte de dissidentes seus, com o contributo ou não de outros elementos).

Por fim, defendo, sim, a democratização e o auto-governo, o exercício do poder político-"político" e do poder político-"económico" por aqueles que hoje governam. Igual liberdade e igual participação no exercício do poder político para todos os cidadãos.

Quanto à resposta à sua última questão, remeto-o para a citação de Castoriadis que faço no texto. Para começo de conversa, acho que é suficiente.

Saudações republicanas libertárias

msp

Anónimo que assina Miguel disse...

O argumento do Castoriadis, nesta passagem é simples: os partidos comunistas (e os comunistas) são mentirosos e hipócritas. Resultado: quando um indivíduo que se diz comunista vê a Luz pode enlouquecer, tornar-se social democrata ou assumir um comportamento radical desembaraçado da ganga M-L.

Ora quem é que podemos ir buscar para criticar e completar esta tese? Alguém com um ódio muito mais profundo que o de Castoriadis, um ódio de classe vindo das entranhas da burguesia mais reaccionária, aos comunistas: Fred Schwarz.

Diz este cavaleiro da democracia, auto-proclamado profundo conhecedor da obra de Marx e Lenine, que mete o anti-comunismo de Castoriadis-Serras Pereira na algibeira: "A tese deste livro, simplíssima, é a de que os comunistas são comunistas. Pretendo mostrar que eles são exactamente o que dizem ser; que acreditam no que afirmam crer; que o seu objectivo é o objectivo que eles vêm anunciando, repetidamente, ao mundo inteiro; que a sua organização é aquela mesma já descrita à saciedade, em pormenores minuciosos; e que o seu códio ético é, precisamente, aquele até hoje proclamdo sem sombra de pejo. Uma vez que aceitemos o facto de que os comunistas sejam comunistas e compreendamos as suas leis de pensamento e acção, todo o mistério desaparece e, então, defrontar-nos-emos com um movimento atemorizante pela sua organização admirável, mobilidade estratégica e programa universal, mas, por outro lado, perfeitamente compreensível e de actuação quase matematicamente prognosticável.

Os comunistas não são hipócritas. Sofrem de delírios paranóicos de intensa sinceridade.
.

[continua]

Anónimo que assina Miguel: disse...

[continuação]
"A tal ponto se imbuíram desses engodos do marxismo-leninismo que se situaram além do campo de argumentação e convencimento racionais. Todos os fenómenos observados sujeitam-se `interpretação imposta pelo enquadramento de conclusões pré-concebidas.

Fossem hipócritas e seria bem mais cómodo tratar com eles. Pode-se negociar com um hipócrita. Pode-se atemorizar um hipócrita. Mas diante de paranóicos de padrão delirante em estado de evolução, o único recurso é tomar conhecimento e compreender tal padrão, para a tomada de medidas auto defensivas contra a conduta delirante.
...
O comunista diz a «verdade», infalivelmente - só que a «verdade marxista-leninista».

Acreditar os comunistas capazes de mentir no interesse do comunismo é errar. Aliás, é impossível, para um comunista, mentir no interesse do comunismo, porque, por definição, se a mentira for do interesse do comunismo, ela passa à categoria de verdade.
" (Fred Schwarz, "Você pode confiar nos comunistas (eles são mesmo comunistas...), Ed. Abril 1977)

Por último, o argumento do comunismo é pior que fascismo. Quem é que podemos trazer para confirmar esta tese? O Movimento Popular Português.

Está em boas companhias, Miguel.

Miguel Serras Pereira disse...

Anónimo que assina Miguel:

o argumento do Castoriadis diz precisamente o contrário do que você diz que ele diz. Basta saber ler e querer ler com atenção.
A vontade de democracia, a revolta contra a exploração capitalistas (efectivas) são capturadas por um aparelho, uma forma de organização, eventualmente um regime de poder, que as frustram. A "ilusão revolucionária" consiste precisamente na convicção de que alguém, algum organismo, pode libertar ou emancipar as pessoas sem que sejam estas a autogovernar-se, a responsabilizar-se pelo que decidem, a exercer o poder - não vendo que serão assim reduzidas à condição de um rebanho cuja sorte depende do pastor. A revolução - na perspectiva autonomista de Castoriadis - não é termos melhores ou geniais governantes, mas sermos nós a governar; não é um poder político a favor dos trabalhadores, é o poder político dos trabalhadores; não é o exercício dos revolucionários ou políticos profissionais mais competentes, mas a acção em comum responsável e não-profissional dos iguais.
A conclusão, em termos esquemáticos, é que se torna necessário desmistificar a forma messiânica e hierárquica do partido, nos termos em que o concebe Lenine, se quisermos cumprir a exigência racional contida na ideia igualitária de revolução.

Quanto ás minhas companhias, nada têm a ver com o sub-pensador que cita e, menos ainda, com os interesses políticos que as suas ideias exprimem ou com a absolvição da ordem estabelecida que promovem. E creio que, no fundo, você o vê bem, pelo que seria melhor não distorcer o que vê (e lê).

Saudações anti-hierárquicas

msp