28/07/10

Questões para quem perceba de traduções

Sempre me pareceu exercício heróico, a descambar para o insano, a tradução de poesia. Preservar sentidos sem trucidar ritmos, melopeias, equilíbrios delicados entre pausas e abismos. Uma língua que conheço bem, o Inglês, parece-me colocar riscos suplementares, pela quantidade de vocábulos com duas ou três sílabas, convenientes peça de um Lego lexical com que se pode montar quase tudo, com dispêndio mínimo de letras.
Vem esta angústia a propósito de um poema de Sylvia Plath, The Disquieting Muses. Tendo sido inspirado por uma obra do meu pintor preferido, nunca se me despegou da memória desde a primeira ocasião em que o li, lembrando-me de um ou dois versos sempre que olho para a pintura homónima.
Agora, dei com uma tradução. Que me parece cair bastante mais para o lado da traição: o ritmo entaramelou-se, várias expressões foram traduzidas de forma infeliz e mesmo a atmosfera geral do poema – opressiva, angustiada e fatalista, como a imagem na sua raiz – soa deslaçada e esbatida. No entanto, descubro com  espanto que a tradutora é alguém com nome e responsabilidades neste mister agreste.
E fico na dúvida: haveria melhor forma de traduzir The Disquieting Muses? Ou seria sempre atrevimento condenado à desgraça? Por outro lado, será que a disseminação de versões, diversas e fatalmente estranhas à obra original, diminui o poema ou apenas multiplica o seu brilho por facetas novas e inesperadas?
Já agora, note-se que Giorgio deChirico pintou, depois de renegar a sua fase metafísica, dezenas de cópias desta obra, num exercício patético (ou heróico?) de auto-plágio...


PS: claro que o título do post é uma pequena provocação ao MSP...

8 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Luis, a tradução (de poesia, mas não só, se virmos bem) é impossível. É impossível, como escrevia Octavio Paz, escrever o mesmo poema noutra língua. E, no entanto, a coisa faz-se. Isso que era impossível de fazer - antes de ser feito.

Quando tiver tempo e vier a propósito, tentarei publicar aqui alguns exemplos convincentes. E duas ou três reflexões. Combinado, pá?

Abrç

miguel sp

Justiniano disse...

Rainha, meu rabino descrente, é bem verdade!! Há sempre algo que se perde na tradução...E o título, Le Muse inquietanti quando nomeado The Disquieting Muses!? Talvez seja a fenomenologia das línguas!! A familiaridade com o Inglês também cria preconceitos!!? Não sei!

Luis Rainha disse...

Justy,
Por acaso, nem sei se o título original era mesmo em italiano. O pintor muitas vezes pedia nomes a amigos poetas, sobretudo franceses. Tenho de esperar até ver o meu Baldacci.
Mas como a coisa até foi pintada em Ferrara, com o castelo Estense ao fundo, até deves ter razão.

Luis Rainha disse...

Miguel,
O meu problema neste caso é que acho que a maravilha não se fez, de todo. E a tradutora dá aulas da coisa e tudo...

Justiniano disse...

Rainha! Também não sei, mas digamos que "disquieting" é demasiado "shakespiriano" para não ser arremessado por um anglófono!! E simultaneamente sobrepoe-se demasiado como língua, algo que me parece impensável de ser pensado fora de uma língua "materna"!!

Justiniano disse...

Mas nota que o meu ponto não era de divergencia com o teu. O que, devo dizer, não me agrada!! Apenas que o título em Inglês tem um ritmo diferente do Italiano!!

Anónimo disse...

Bem, pôr defeitos voce sabe. Mas consegue fazer melhor?


Xana

joão viegas disse...

Caros,

Concordo parcialmente, discordo parcialmente.

Em preâmbulo, quero aqui afirmar que, se a tradução literaria fosse valorizada nas nossas sociedades (de merda, nesse aspecto) de acordo com o que merece a nobreza do exercicio, eu seria tradutor profissional. Quer dizer, faria tudo por sê-lo. Aliás, ja fui, ocasionalmente, tradutor. E TODOS OS DIAS, o meu exercicio matinal, no metro, é precisamente esse : traduzir.

Do que é que se trata então ?

Tentando fugir aos chavões, eu diria que traduzir é, apenas, guiar o leitor numa viagem, escolhendo uma estrada alternativa à primeira que foi traçada e que ele se encontra incapacitado de utilizar.

Cada lingua tem a sua forma de abrir caminho, de subir ou de contornar colinas, de atravessar rios, etc.

A questão, portanto, não é saber se ha caminho. Ha sempre. E quando não ha, la diz o Machado « Caminante… ». A questão é saber até que ponto os viandantes pisam todos o mesmo chão, o mesmo territorio.

Ha quem ache que não, com ideias pretensamente « poéticas » que na maior parte das vezes não passam de formas disfarçadas de vedar terrenos.

Depois existe a Realidade.

A Realidade que ninguém consegue aproximar tanto quanto o tradutor, pelo menos quando este se mostra à altura da sua arte…