26/11/10

Se pensar pode não resolver, sempre dá uma ajuda

Rui Namorado, militante socialista e grevista em 24 de Novembro, desabafou através de uma reflexão do “dia seguinte”. Vale a pena lê-lo com a atenção devida aos lúcidos.

As esquerdas parecem epicamente condenadas a degladiarem-se entre si. As direitas navegam em águas aparentemente mais tranquilas. Abaixam-se para ver se a tempestade lhes passa por cima e se no fim ficam mais fortes e as esquerdas mais fracas.

O sector dominante da esquerda institucional resmunga oficiosamente uma imagem de fracasso da greve que a realidade teimosamente desmente. Os sectores dominantes das esquerdas sociais desenham um cenário demolidor que, se tivesse a dimensão afixada, já teria varrido qualquer governo. Esgrimem entre si números como se o peso da greve não fosse o resultado de um balanço sócio-politico, mas um hipotético apuramento impessoal de uma luta entre números.

O primeiro parece acreditar que, se fizer os sindicatos morder o pó, poderá navegar tranquilamente numa imaginária harmonia, gerida pelos generosos e altruístas senhores do dinheiro, que lhes continuarão a deixar movimentar as alavancas do poder. Os segundos parecem acreditar que se destroçarem o sector dominante da esquerda institucional verão abrir-se as portas de um outro poder político, onde os interesses que defendem tenham verdadeiro eco.

Mas se os trabalhadores forem vencidos e os sindicatos aniquilados, na constância do capitalismo, nenhum governo de esquerda respirará sequer cinco minutos de poder institucional. E se a esquerda institucional dominante for desmoronada, seguir-se-ão governos de direita, cuja novidade será o agravamento brutal de tudo aquilo que fez com que os sectores dominantes das esquerdas sociais combatessem o sector dominante da esquerda institucional.

Por isso, esta greve teve também uma dimensão trágica. Ela fez-me recordar aquela história do sapo que para ajudar um escorpião a atravessar um ribeiro o transportou no seu dorso. Contudo, a meio da travessia o escorpião espetou o seu ferrão venenoso no sapo. E ferido mortalmente o sapo perguntou. "Porque me matas, sabendo que se eu morrer também tu morres". E o escorpião respondeu: "É da minha própria natureza". E morreram os dois.

Mas neste caso, é como se a história envolvesse dois pares de sapos e de escorpiões. Num deles é a esquerda institucional que faz de sapo; no outro, são as esquerdas sociais. O desenlace é o desaparecimento de todos, seja qual for o papel que desempenharam.

Há uma subtil ironia, impregnando tudo isto. Embora pareçam desconhecê-lo, para cada uma das partes, os problemas da outra são afinal também seus. E cada uma delas precisa da força da outra para que, a prazo, não fique irremediavelmente enfraquecida.

Reconheço que a probabilidade de isto ser entendido por qualquer das partes, é escassa. Possivelmente, cada um dos lados continuará a incensar a sua própria santidade e a construir infernos onde gostaria de ver o outro; a construir minuciosamente a culpa do outro e a inocência própria.

Mas quem conseguir despir o seu olhar, por um momento, da neblina das aparências mais prementes, facilmente verá que, se ambos os lados continuarem a intercambiar sucessivamente entre si os papéis de sapo e de escorpião, acabarão por se afundar.


(publicado também aqui)

7 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo e sempre equânime camarada João Tunes,

o texto do Rui Namorado seria mais útil se pudesse mostrar convincentemente que há qualquer coisa como uma força de esquerda no PS, enquanto tal e para além das convicções avulsas destes ou aqueles militantes seus. Entendendo-se por força de esquerda, aqui, uma organização ou partido apostado na democratização das relações de poder que moldam e governam a sociedade actual, mormente - portanto - as implantadas na esfera económica.
O problema é que, se há malta de esquerda no PS, o PS cada vez menos pode passar por ser uma força dessa esquerda. E, assim, importa, em vista da sua eventual transformação nesse sentido, que a sua estrutura, lógica, aparelho e poder actuais sejam derrotados.
Tu próprio o sugeres na análise que fazes no teu post anterior a este e onde se lê "Sócrates" admitirás que podemos e devemos ler "aparelho 'socrático' actual": "abanem Sócrates o suficiente, o resto cai logo que arranquem a raiz solitária, porque PS propriamente dito, além do seu arrivista-em-chefe, deixou de existir por mor de esmagamento pelo umbigo deste".
Penso que seria interessante que o Rui Namorado e outros militantes do PS ou gente da sua área - sendo que do comportamento da área PS passará boa parte do futuro próximo - considerassem este aspecto da questão. Enriqueceria a ajuda que o pensamento pode dar e tornaria mais fácil o debate e a convergência entre todos aqueles que deverão fazer parte da força de democratização e iniciativa política inovadora à míngua da qual a humilhação e a opressão reforçacas que hoje sofremos serão ainda mais longas e mais devastadoras.

Forte abraço democrático e solidário

miguel sp

João Tunes disse...

Caro Miguel (SP),

Claro que não sendo eu, também, militante ou próximo do PS, tenho as minhas lamentações (quanto a reivindicações, nem pensar nisso) sobre este partido. Mas o PS passa bem sem elas. O que é excelente, em termos da sua autonomia.

Abraço.

Ana Cristina Leonardo disse...

O que eu gosto destes seus bonecos, meu caro senhor!
(e desculpem-me se o assunto não tem bem que ver com o post)
- ;)

João Tunes disse...

Tem. Tudo tem a ver.

M. Abrantes disse...

Se é possível afundar a coisa peçonhenta a que chamam esquerda, qual é mesmo o contacto do escorpião para, de helicóptero, lhe dar uma ajudinha?

Vasco disse...

Do comentário de MSP retive o seguinte pensamento: "O problema é que, se há malta de esquerda no PS, o PS cada vez menos pode passar por ser uma força dessa esquerda. E, assim, importa, em vista da sua eventual transformação nesse sentido, que a sua estrutura, lógica, aparelho e poder actuais sejam derrotados."

Não deve ser nada fácil ser sapo e escorpião ao mesmo tempo. Daí eu ter ficado impressionado pela capacidade do autor de arranjar pretexto, por mais minúsculo que fosse, para 'criticar' o texto de Rui Namorado; e, aparente e simultâneamente, não se dar conta de como ele lhe assenta melhor que uma luva.

Miguel Serras Pereira disse...

Não me parece nada, Vasco. Leia lá com atenção o que eu escrevi - ou, se quiser, os meus dois breves comentários ao post do Miguel Madeira (http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/o-primeiro-panfleto-da-nova-alianca-de.html) e o meu post de há uns dias sobre a plataforma que entendo desejável e possível (http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/da-democratizacao-como-plataforma.html)
Saudações democráticas

msp