19/01/19

10% das pessoas que divulgam estatísticas falsas na internet são filhas de mães sozinhas?

Para falar a verdade, não faço ideia.

Mas está na moda (pelo menos acerca dos EUA)  alegar factóides como:

- 70% dos presidiários foram criados por mães solteiras
- 70% dos delinquentes juvenis foram criados por mães solteiras
- 70% dos toxicodependentes foram criados por mães solteiras
- 71% dos alunos que não acabam o secundário foram criados por mães solteiras
- 85% das crianças com problemas de comportamento são de famílias sem uma figura paternal(?)
- 71% das adolescentes grávidas são de famílias sem um pai
- 26 dos 27 assassinos em massa mais mortíferos cresceram em famílias sem pai

etc., etc.

Mas isto será verdade?

Há um conjunto de fontes que costumam ser apresentadas como prova dessas afirmações (seguindo o link acima - ou então este, para qual o outro linka -, facilmente as encontrarão - mas atenção que as fontes não são muito fáceis de verificar, já que muitas vezes são apenas "Center for Disease Control" ou "National Principal's Association Report", sem indicar anos, títulos de documentos, etc.).

Mas a mais fácil de refutar é a dos "26 em 27 assassinos em massa" (foi isso que, aliás, me chamou a atenção, porque já tinha há tempos tido essa conversa e chegamos à conclusão que eram fake news) - vamos pegar numa lista deles, e facilmente vemos que pelo menos Charles Whitman, Omar Mateen, Jiverly Antares Wong, Eric Harris, Dylan Klebolde e Seung-Hui Cho parecem (lendo os artigos da wikipedia...) ter sido criados por ambos os pais; o James Oliver Huberty não é muito claro, mas a impressão que me dá é que quem se pôs a andar foi a mãe; os pais do George Hennard divorciaram-se tinha ele uns 26 anos; vi só uns quantos, mas é suficiente para refutar a teoria dos "26 em 27" (mas o que isso adianta? Já se viu que essa conversa recusa-se a morrer...).

A estatística dos 70% de delinquentes juvenis parece vir do Survey of Youth in Custody, 1987 [pdf], divulgado em setembro de 1988 como um "relatório especial" - pelo menos aqui é é dito que "70% of juveniles in state operated institutions have no father. [US Department of Justice, Special Report, Sept. 1988]" e (a respeito das drogas e álcool) que "70% of youths in state-operated institutions come from fatherless homes – 9 times the average.  (U.S. Dept. of Justice, Sept. 1988)".

Isso (que 70% dos internados em casas de correção vêm de famílias sem pai) é quase verdade (são para aí uns 65% - os 70% referem-se a famílias sem um dos país, seja o pai ou a mãe), mas a versão de que "70% dos delinquentes juvenis são filhos de mães sozinhas" é claramente falsa: são cerca de 50% (nem todas os jovens que não vivem com o pai vivem necessariamente com a mãe):




O número dos toxicodependentes é claramente (pelos motivos que já expliquei) copiado daqui; a respeito dos 70% também para os presidiários não se encontram  nem sequer nas supostas fontes apresentadas (onde diz que " A 2002 Department of Justice survey of 7,000 inmates revealed that 39% of jail inmates lived in mother-only households." mas também que "85% of youths in prisons grew up in a fatherless home. [Fulton County Georgia jail populations, Texas Department of Corrections, 1992]" - afinal são 39%, 70% ou 85%?). Tudo indica que os "70% de presos criados por mães sozinhas" são os mesmos 70% internados em casas de correção, que, repetidos de link para link, com cada blogger que escreve sobre o assunto a usar palavras ligeiramente diferentes, passaram de "juveniles in state operated institutions" para "prison inmates" (ou seja, além da estatística ser manhosa, ainda anda a ser reciclada para várias coisas - e, já agora, não se arranja uma estatística mais recente que essa de 1987???)

Já agora, o estudo do Departamento da Justiça dos EUA de 2002 realmente diz que 39% dos presos vêm de famílias só com a mãe [pdf, ver página 9] (no total, 52% vêm de famílias sem pai); quanto ao "Fulton County Georgia jail populations, Texas Department of Corrections, 1992", não o consigo achar (praticamente tudo o que se encontra quando procuro isso no Google são artigos sobre a importância dos pais na educação dos filhos), mesmo restringindo a busca a sites oficiais do governo do Texas (já agora, porque é que o governo do Texas publicou um estudo sobre a população prisional de um concelho na Geórgia? E em 1992 o Departamento de Correções do Texas já não existia, porque em 1989 tinha sido fundido com outros para dar origem ao Departamento de Justiça Criminal do Texas). Procurando no site do Departamento de Correções da Geórgia, encontro um relatório de 2013 dizendo (pdf, página 17) que apenas 37% dos presos que foram presos na Geórgia em 2012 tiveram o pai (sozinho ou com a mãe) como guardião legal (ou seja, 63% seria de "famílias sem pai") - mas apenas 45% tinham uma mãe sozinha como guardiã (a diferença são avôs, famílias de acolhimento, etc.).

Quanto aos "71% dos alunos que não acabam o secundário foram criados por mães solteiras" a fonte é o "National Principals Association Report on the State of High Schools"; mas o problema é que googlando a única coisa que me aparece são sites, artigos e livros a repetir essas estatísticas - o único sinal de existência no mundo desse relatório parece ser o ser referido como a fonte dessa estatística; nem é muito claro o que é sequer o "National Principals Association", será a National Association of Secondary School Principals? Se é, no seu site não há qualquer referência a tal estudo (nem é muito claro em que ano foi feito esse estudo, embora tenha descoberto sites que digam que é de 2001).

Quanto ao "85% of children with behavioral disorders are from homes without a father" - a fonte é o Center for Disease Contro; vamos lá ver o que diz o CDC- Family Structure and Children’s Health in the United States:Findings From the National Health Interview Survey, 2001–2007 (pdf, página 154, tabela 63 - Frequencies of children aged 4–17 with definite or severe emotional or behavioral difficulties, by family structure and by selected characteristics: United States, 2001–2007):

Haverá 2 milhões e 851 mil crianças e jovens nos EUA com severos problemas emocionais ou comportamentais, dos quais 779 mil (27%) vivem em famílias tradicionais e 729 mil (26%) em famílias monoparentais (o resto é adoções, uniões de facto, famílias alargadas, etc.); por estes resultados, no máximo 73% dessas crianças e jovens viverão em famílias sem um pai (e provavelmente será muito menos - algumas das monoparentais terão o pai em vez da mãe, e das 47% de tipos variados - adoções, uniões de facto, etc - haverá algumas também com um pai, biológico ou adotivo). Agora, é verdade que o que se falava era de " behavioral disorders" e eu fui buscar uma estatística para "severe emotional or behavioral difficulties", mas foi o que consegui arranjar (eu nem me admirava que o tipo "agressivo/impulsivo" - " behavioral" - esteja realmente sobre-representando entre os filhos de pais separados em proporção face ao tipo nervoso - "emotional" - mas não há aqui dados sobre isso).

Quanto a "71% of pregnant adolescents do not have their father in the home", a fonte apresentada é 
"[U.S. Department of Health and Human Services press release, Friday, March 26, 1999]", que é de certeza isto.

Esse comunicado de imprensa não refere diretamente percentagens do tipo "x% das pessoas que têm um dado problema não têm um pai em casa", mas é possivel chegar a esses valores fazendo uns cálculos adicionais - lá é dito que "More than a quarter of American children—nearly 17 million—do not live with their father. Girls without a father in their life are two and a half times as likely to get pregnant" - se uma em cada quatro raparigas viver sem o pai, há 3 vezes mais raparigas em viver em famílias com pai; e as raparigas que vivem em famílias sem pai têm 2,5 vezes mais probabilidade de engravidarem - mas como há 3 vezes mais raparigas a viver em famílias com pai, para cada 25 raparigas sem pai que engravidam, haverá 30 com pai que engravidam

A - total de raparigas que vivem em famílias sem pai
Ai - total de raparigas que vivem em famílias sem pai e ficam grávidas na adolescência
B - total de raparigas que vivem em famílias com pai
Bi - total de raparigas que vivem em famílias com pai e ficam grávidas na adolescência

A/(A+B)=1/4 ↔ B = 3*A

Ai/A = 2,5* Bi/B

Ai/A = 2,5*Bi/(3*A) → A1 = 2,5*Bi/3 ↔ Bi = 3*Ai/2,5

Ai/(Ai+Bi) = Ai/(Ai + 3*A1/2,5) = Ai/(5,5*Ai/2,5) =2,5/5,5 = 45,5%

Ou seja, cerca de 46% das mães adolescentes serão de famílias sem pai (um pouco mais, já que no comunicado diz "mais de um quarto"); de onde é que eles foram buscar os 71%? Tenho uma teoria - 71% era quase exatamente o que resultaria se o "two and a half times as likely to get pregnant" fosse combinado com uma igual quantidade de raparigas de famílias com e sem pai no conjunto da população (para cada rapariga com pai a ficar grávida haveria 2 e meia sem pai a ficarem grávidas , e 2,5 num total de 3,5 é 71%).

Poderá se argumentar que o rácio de um quarto (ou mesmo mais de um quarto) está desatualizado, e que agora 43% das crianças e jovens dos EUA crescem em famílias sem pai (pelo menos é o que também é dito nas tais estatísticas, e já são quase 3 da manhã e não vou conferir essa), o que alterará os resultados, mas:

a) Já é muito arrojado pegar na probabilidade (os tais mais 2 vezes e meia) apresentada no comunicado de 1999 e ir aplicá-la à distribuição demográfica atual (e ainda mais quando a fonte apresentada é apenas o comunicado de 1999, sem indicações de "extrapolado para tendências posteriores")

b) Mesmo que fossemos refazer os cálculos assumindo 43% de jovens vivendo em famílias sem pai, isso daria apenas 65% de mães adolescentes oriundas de famílias sem pai, não os tais 71%

Já agora, nesse comunicado também diz "Both girls and boys are twice as likely to drop out of high school, twice as likely to end up in jail and nearly four times as likely to need help for emotional or behavioral problems". Podemos aplicar exatamente o mesmo cálculo que fizemos acima para estimar as probabilidades para isto tudo, nomeadamente para o abandonar os estudos (o tal valor cuja fonte é um relatório mistério de uma associação talvez misteriosa):

Como os filhos de famílias sem pai têm o dobro da probabilidade de não acabarem o secundário, é só pegar nas contas que fizemos lá acima e substituir "Ai/A = 2,5* Bi/B" por "Ai/A = 2* Bi/B", e assumir que estamos a falar de jovens em geral em vez de raparigas (e que Ai e Bi significa abandonar o secundário) - e o resultado é.... 40% dos alunos que não acabam o secundário são (ou seriam, em 1999) de famílias sem pai (e não os tais fantasmagóricos 71%). [Por outro lado, isso também implicaria que só 40% dos que acabam na prisão fossem de famílias sem pai, o que é um pouco inferior - dos resultados do tal relatório de 2002 (que dizia que 52% dos presos vem de famílias sem pai).]

Quando ao "need help for emotional or behavioral problems" (em que a probabilidade é quatro vezes maior), isso daria que cerca de 57% das crianças e jovens a precisar de ajuda para problemas emocionais ou de comportamento seria de famílias sem pai.

Resumindo - quase nenhuma das estatísticas apresentadas parece corresponder à realidade, de acordo com as próprias fontes referidas (a dos 70% dos delinquentes juvenis estaria correta se fosse a percentagem de "não cresceram com ambos os pais" em vez de "cresceram apenas com a mãe"). Interrogo-me, aliás, se quem divulga essas pseudo-estatísticas vai conferir às fontes, ou se se limita a fazer "copiar-colar" ou "partilhar".

O paradoxal daqui é que mesmo com estatísticas verdadeiras haveria um caso forte para se considerar que é bom as crianças e jovens viverem com o pai (ou pelo menos terem-no como uma presença constante na sua vida) - para quê inventar números alucinados? E para quê essa obsessão com 70% ou 71%? Será algo de esotérico?

Uma nota final - estes números costumam ser apresentados no contexto das discussões sobre a custódia dos filhos de pais separados (a maior parte dos sites que me aparecia quando andava à procura de algum documento eram sites sobre os direitos dos pais divorciados); não se leia a minha crítica a esses números como uma oposição à atribuição de um maior papel aos pais na tutela dos filhos em caso de separação ou divórcio (aliás, se me guiar só pelas notícias dos jornais - ou seja, não estou a invocar nenhuma estatística oficial - dá-me a ideia o típico agressor, tanto físico como sexual, de crianças e jovens é o padrasto, o que poderá indiciar que muitas crianças e jovens até estarão mais seguros na casa do pai do que na da mãe; mas isto é apenas uma especulação da minha parte).

Vagamente sobre isto, ver também este meu post de 2013,Divórcio vs. Viuvez.

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