23/01/19

A extrema-direita é uma reação à extrema-esquerda?

Assim o escreve o Rui Albuquerque, no Blasfémias ("Por que é que não existiu em Portugal, até agora, um partido de extrema-direita forte? Porque nunca tinha existido um partido forte de extrema-esquerda. A extrema-direita é, hoje, na Europa e no Mundo, somente uma reacção.").

Será? Para verificar se isso poderia fazer algum sentido, foi pegar nas eleições europeias de 2014 (que, para este exercício, têm a vantagem de terem sido feitas todas na mesma altura e em todos os países da UE - e sobretudo, de os links para os resultados estarem todos os juntos) e ver se a extrema-direita e a extrema-esquerda têm os melhores resultados nos mesmos países (que é o que seria de esperar se uma for a reação à outra).

Claro que para começar é preciso definir quem é de extrema-esquerda e quem é de extrema-direita. Os critérios que segui:

- Como claramente o Rui Albuquerque não está incluído o PCP na sua definição de extrema-esquerda (eu também não incluo, já agora), mas apenas o BE (e presumivelmente os extra-parlamentares), vou definir como "extrema-esquerda" os partidos que integram o Grupo da Esquerda Unitário Europeia/Esquerda Verde Nórdica no Parlamento Europeu, excluindo os partidos comunistas mais tradicionais (o que pode ter alguma subjetividade - eu pus de fora o PCP, a Esquerda Plural espanhola, o KKE grego, o Partido Comunista da Boêmia-Morávia e o AKEL de Chipre) e os "animalistas" (que têm uma agenda muito própria). Já agora, é interessante o que esse critério (considerar o BE mas não o PCP na extrema-esquerda) pode significar para esta discussão (ver também este meu post de 2008).

Poderá se perguntar se não deveria incluir também os Verdes/Aliança Livre Europeia, que tendem bastante para a esquerda nas "questões fraturantes", mas acho que isso já era uma grande salada, e hoje em dia a maior parte já está muito longe de poderem ser chamados extrema-esquerda (mesmo que efetivamente partilhem muito ADN com os membros não-"comunistas ortodoxos" da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica, na medida em que ambos são muito herdeiros de 1968, mas isso já foi há mais de meio século). Inversamente, poderia só ter incluído partidos ligados à Esquerda AntiCapitalista Europeia, mas aí eram tão poucos (Bloco de Esquerda, Syriza, Esquerda Unida espanhola e a Aliança Vermelha-Verde dinamarquesa) que eram impossível tirar qualquer conclusão.

- Na extrema-direita, inclui todos os partidos que integram o Grupo Europa das Nações e das Liberdades + os que integram o Grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus que não sejam partidos tradicionais de governo (ou seja, tirando os Conservadores britânicos, a Lei e Justiça polaca e o Partido Democrata Cívico checo) + os da Europa da Liberdade e da Democracia Direta com a exceção do 5 Estrelas italiano e do Partido dos Cidadãos Livres da República Checa + os não-inscritos que são quase abertamente neonazis ou neofascistas (NPD alemão, Aurora Dourada grega, Jobbik húngaro; se quiséssemos mesmo um critério objetivo para os identificar poderia ser a filiação presente ou passada na Aliança dos Movimentos Nacionais Europeus ou na Aliança para a Paz e a Liberdade). Depois houve um ou outro que exclui a olho por os achar (pela descrição da wikipedia...) muito longe da extrema-direita.

Aqui poderá haver quem não concorde com a minha decisão de não incluir a Lei e Justiça polaca nem o 5 Estrelas italiano na extrema-direita, ou até quem ache que se deveria incluir também o Fidesz húngaro, mas acho que o Fidesz e a Lei e Justiça estão muito mais integrados no mainstream que os partidos normalmente considerados na extrema-direita, e o 5 Estrelas só recentemente assumiu uma posição claramente de direita em temas como a imigração.

Outra complicação foram coligações envolvendo partidos de várias ideologias, em que me guiei pelo que me pareceu a corrente dominante.

Portanto, vamos aos resultados:


País comunista clássico extrema-direita extrema-esquerda
Alemanha
8,07 7,39
Áustria
19,72
Bélgica
4,26
Bulgária
10,66
Chipre 26,98

Croácia
0
Dinamarca
10,3 8,1
Eslováquia
0
Eslovénia
0
Espanha 10,03
10,06
Estónia
0
Finlândia
12,9 9,3
França
18,52 6,61
Grécia 6,11 12,85 26,57
Hungria
14,67
Irlanda

19,5
Itália
6,15 4,03
Letónia
14,3
Lituânia
14,25
Luxemburgo
0
Malta
0
Países Baixos
20,99 9,64
Polónia
7,15
Portugal

4,56
Reino Unido
26,6 1
República Checa 10,98

Roménia
0
Suécia
9,67 6,3

Só inclui os partidos que elegeram deputados (os que não elegeram são tantos e têm tão pouca representatividade que o trabalho de os incluir seria muito maior que a alteração que isso provocaria nos resultados).

Correlação entre as votação da extrema-direita e da extrema-esquerda : 0,1342, um valor praticamente insignificante, e mesmo esse inflacionado por em 9 países (sobretudo pequenos países que elegem poucos deputados, o que torna difícil a grupos "extremistas" serem eleitos) não haver representantes nem da extrema-direita nem da extrema-esquerda (como há muitos países em que ambos têm zero, isso amplifica a correlação); se excluirmos os 9 países em que nenhuma tem representação, a correlação desde para -0,22 (ou seja, a extrema-direita teria mais votos nos sítios onde a extrema-esquerda é mais fraca, e vice-versa). De qualquer maneira, isso parece refutar a tese que a extrema-direita é uma reação contra a extrema-esquerda.

Poderá-se contra-argumentar que a força da extrema-direita nalguns países de Leste é também uma forma de reação ao domínio que a extrema-esquerda terá tido durante décadas nesses países. É uma hipótese que não joga bem com a premissa inicial de excluir os comunistas tradicionais da extrema-esquerda, e de qualquer maneira dá-me a ideia que a força da extrema-direita na Europa de Leste é um fenómeno relativamente recente nalguns países (nos anos 90 do século passado, a bipolarização era entre ex-comunistas e grandes frentes "democráticas" anti-comunistas, sem grande espaço paea uma extrema-direita autónoma). Mas podemos refazer o cálculo excluindo a Europa de Leste - se tirarmos a Bulgária, Croácia, Eslovénia, Eslováquia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa e Roménia a correlação baixa para 0,093, ainda mais reduzida.

Partidos e coligações que incluí na extrema-direita:

AfD (Alemanha)
NPD (Alemanha)
FN (França)
UKIP (Reino Unido)
Liga Norte (Itália)
Congresso da Nova Direita (Polónia)
PVV (Países Baixos)
CU-SGP (Países Baixos)
Vlams Belang (Bélgica)
Aurora Dourada (Grécia)
Gregos Independentes (Grécia)
Jobbik (Hungria)
Democratas Suecos (Suécia)
FPO (Áustria)
BBT/VMRO (Bulgária)
Partido Finlandês (Finlândia)
Partido do Povo Dinamarquês (Dinamarca)
Ordem e Justiça (Lituânia)
Aliança Nacional (Letónia)

Partidos e coligações que incluí na extrema-esquerda:

Die Link (Alemanha)
Frente de Esquerda (França)
Sinn Féin (Reino Unido e Irlanda)
Outra Europa (Itália)
Podemos (Espanha)
Os Povos Decidem (Espanha)
Partido Socialista (Países Baixos)
Syriza (Grécia)
Bloco de Esquerda (Portugal)
Esquerda (Suécia)
Aliança de Esquerda (Finlândia)
Movimento Popular Anti-EU (Dinamarca) - na prática, é quase a mesma coisa que a Aliança Vermelha-Verde

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