13/05/10

Cara camarada Joana, caras ou menos caras & caros ou menos caros camaradas ou não que por aqui passem

Cara camarada Joana, e caras e menos caras, e caros e menos caros camaradas ou não que por aqui passem, pois que considero mais interessante dirigir-me a todas/os os via-factuantes, via-factuais e via-factualistas, bem como a todas/todos as/os frequentadoras/frequentadores destas itinerantes paragens:

O meu desacordo com o que a Joana escreve, na caixa de comentários do post do João Tunes O candidato perante a lama e a exigência dos puros (1) , é por uma vez claro e inequívoco. Vamos lá ver se conseguimos discutir a questão, apesar dos propósitos que, à partida, a nossa camarada declara "inabaláveis". É o que tentarei fazer tomando como pressuposto a "radicalidade democrática" em termos que no essencial reiteram o sentido sobre o qual, há dias, o João Tunes e eu próprio nos pusemos de acordo na caixa de comentários de O Restelo ali tão perto e os “velhos de Belém” a reunirem-se ao lado em conclave dos cínicos descarados.

1. Em primeiro lugar, não sei ainda se votarei em MA. A verdade é que não me sinto inclinado a votar em defensores do reino, protectores dos pobres, príncipes populares ou chefes naturais. No caso preciso de MA, o único aspecto que poderia fazer-me apoiá-lo (a não ser em último recurso e contra a ameaça de um risco grave) seria a sua ligação ao MIC, enquanto movimento efectivamente apostado na promoção e extensão de uma cidadania activa, apontando para novas formas de exercício do poder político e de subordinação da actividade económica, explicitamente repolitizada, à auto-organização democrática dos cidadãos. E, por outro lado, parece-me prematuro, no mínimo, adoptar a posição meramente defensiva que o Zé Neves enuncia: votar MA contra Cavaco, como se votaria (embora, neste momento, eu não o fizesse) Sócrates contra Passos Coelho, ou Passos Coelho contra Paulo Portas, e assim por diante. Não podemos continuar, se queremos ir a algum lado, a optar por "males menores" cada vez maiores a pretexto de que, apesar de tudo, aão "males menores".

Retomo aqui a posição que já formulei a meados de Janeiro último, num post escrito no 5dias, sobre as presidenciais: não me tenho cansado de insistir numa concepção activa da cidadania, pelo que entendo o auto-governo dos cidadãos organizados, e na denúncia do carácter classista e anti-democrático da limitação da actividade política regular a “políticos profissionais” e “especializados”. Assim, à partida, os apelos de Manuel Alegre aos “movimentos de cidadãos”, mulheres e homens comuns que assumissem plenamente a acção política como seu direito e responsabilidade, dever-me-ia merecer aplauso e solidariedade. 

Há, no entanto, o facto de Manuel Alegre ser um “político profissional” por excelência, o que o tornaria pouco indicado para encabeçar um movimento semelhante de contestação das formas que organizam a cena política dominante. No mínimo, seria necessário um gesto de ruptura com o papel até agora desempenhado, e não, como aconteceu das últimas presidenciais para cá, a sua atitude de ex-dirigente partidário e de “dirigente partidário em potência”. Até mais ver, não deixou a sua atitude de cabecilha de uma oposição frouxa à direcção actual do PS, e tudo leva a crer que uma eventual sua ruptura com o PS não o levaria a romper com a lógica do bom pastor que acima evoquei. Compete-lhe a ele provar que é capaz do contrário. E oxalá fosse capaz de tal coisa – digo-o sem grandes esperanças, mas também sem ironia.

2. Até agora, MA não provou ser capaz do contrário. Também não se mostrou capaz de dizer fosse o que fosse de importante em matéria de alternativas apontando para a democratização do regime, comprometendo a sua candidatura a protagonizar propostas nesse sentido. Falou uma ou duas vezes na necessidade de um "Estado estratega", conceito que lhe terá sido soprado pelo João Rodrigues (ver, por exemplo, Para um Estado Estratega ) ou outros economistas críticos da mesma tendência, mas que é o elemento mais fraco da reflexão do João Rodrigues, alimentando o erro de identificar o Estado com o "público" e recalcando a necessidade de a repolitização explícita da economia política e a sua "reincrustação" ou "reincorporação" no social, exigências que justamente assinala, ter de ser feita em termos democráticos, reforçando o poder dos cidadãos, para não correr o risco de legitimar os programas de reciclagem mais duvidosos. Fora isto, e uma defesa abstracta e pouco clara da salvaguarda de uma rede de serviços públicos, nada - ou quase nada. 

3. Para que valesse a pena uma intervenção nas presidenciais - para além da lógica defensiva do "mal menor-, transformando-as em ocasião de afirmar uma cidadania activa, visando a participação igualitária no exercício do poder político e uma efectiva democratização deste, seria necessário vincular a candidatura alternativa a uma carta de princípios explícita e que, entre outras coisas, enunciasse a ideia de que os movimentos da cidadania activa e a extensão da participação democrática são incompatíveis só se podem fazer sem "homens providenciais" e contra eles. Não se trataria de exigir ao candidato que declarasse que iria, por meio de um "golpe de Estado", redefinir as funções presidenciais e reforçar o poder de intervenção da chefia do Estado; mas de o fazer comprometer-se com a promoção do pleno exercício por parte dos cidadãos das suas funções activas e tendencialmente governantes e com o apoio às propostas e acções que visassem esse tipo de democratização do regime (político-político e político-económico). Uma intervenção nas presidenciais, que assuma a "radicalidade democrática" de que falava há dias o João Tunes, só faz sentido se não nos obrigar a subscrever e avalizar posições e concepções que negam os propósitos de democratização e de extensão igualitária das liberdades e direitos que politicamente nos identificam como cidadãos que entendem que um poder político democraticamente legítimo só pode ser o do auto-governo, o da participação de cada um nas decisões que vinculam todos. 


4. Há, em último mas não menos importante lugar, o aspecto em que mais vivamente discordo da Joana. Escreve ela:"Assim sendo e porque, em questões eleitorais, sou militantemente pragmática, ninguém me verá acentuar lacunas, frases a menos ou declarações a mais: se discordar, calo-me (como se da minha família se tratasse). Eu sei, Rui, que divergimos neste tipo de «metodologia», mas a minha atitude é neste ponto inabalável". 


Pois bem, a minha posição aproxima-se a este respeito da do Rui Bebiano (ver a mesma caixa de comentários), mas com uma diferença. Penso que o jogo aqui não se joga apenas entre a opção de pertencer a um partido ou movimento organizado ou de recusar essa pertença. O desafio é conseguirmos praticar formas de (auto-)organização política não "familiares", no sentido em que a Joana usa esta expressão, formas de organização que não nos obriguem a calar ou a aprovar o que não aprovamos e contestamos, mas que antes promovam que falemos nesses casos, a bem da organização e dos seus propósitos, em defesa da transformação radicalmente democrática das instituições e da nossa relação com elas que a organização deverá actualizar a cada momento. Assim, no caso de termos razões que nos levam a optar pelo voto, em certas circunstâncias, num "mal menor", não devemos, acima de tudo, apresentá-lo como um "bem maior", a pretexto da necessidade de reforçarmos as suas probabilidades de triunfo sobre o mal maior. É exactamente o contrário que me parece certo e justificado. De outro modo, o "bem maior" que queremos será reduzido a uma espécie de "suplemento de alma", de "ornamento ideal" que a nada obriga e que não é para levar demasiado a sério, pois que nós próprios o estaremos a declarar incompatível com as exigências da acção organizada. Estaremos a declarar a inviabilidade política da democracia. Ou da cidadania governante. Ou da autonomia da "multidão". Ou, para concluir, das próprias razões políticas que têm sempre sido, e não vejo como poderiam ter deixado de ser,  as da Joana.

5 comentários:

Anónimo disse...

Caríssimo MS Pereira:Novo grande texto na marcha para a " radicalidade democrática ". Nele se apura e avaliza o que, Lefort, caracteriza como " invenção anónima", especialmente o apelo essencial à formação autónoma de pólos de actividade política, cívica e cultural por oposição aos blocos especulativos manipulados pelas grandes entidades concentradas em torno do Estado-Molloch,como os partidos,os lobbies e entidades laicas e civilizacionais . No entanto, os efeitos múltiplos e contraditórios da geopolítica da hora que integram Portugal, obrigam-nos a um " realismo " suplementar mas sem concessões ao imaginário pequeno-burguês de um nacionalismo requentado; tal projecto inovador , ao contrário da lógica política tradicional, não pode nem deve descurar o estímulo da vitalidade da verdadeira invenção democrática. Lefort ainda: " A democracia implica uma multiplicidade de meios de representação política ". Vencer a " lógica repressiva " da autoridade tentacular e uniforme do Estado, esse pode ser,o paradoxal desafio que a candidatura de MA tem que provar...para vencer! Niet

Anónimo disse...

Tem sido com enorme interesse que tenho vindo a acompanhar algumas ideias que por aqui vão sendo semeadas.

E porque, na ordem “democrática” vigente tenho o voto como acessório de somenos, a que já chamei até de ópio dos “democratas”, não me interessando propriamente as habilidades tácticas que possam conduzir a uma ou outra contagem dos mesmos, no próximo ou em qualquer outro pleito eleitoral, venho apenas saudar o MSP por algumas ideias seminais, como as de “cidadania governante”, “auto-governo” e outras, que por aqui tem deixado.

Continuarei seu “leitor não profissional” atento.

nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
a tua dialéctica implacável por vezes confunde-me. Não sei bem até que ponto estou de acordo com algumas das formulações de Lefort, por um lado, ou com a legitimidade de se tirarem delas, por outro, as conclusões que tiras. Mas agradeço o teu estimulante comentário e a aprovação que exprimes pelo que escrevi.
Abrç - saúde e liberdade

Caro Nelson,
já sentia a sua falta por aqui. Tentarei não desmerecer por completo a generosidade excessiva do seu juízo. E conto consigo para o firme propósito que, creio, nos une: a afirmação, passo a passo, através da acção, da exigência da cidadania governante.
Forte abraço


miguel (sp)

Anónimo disse...

MS.Pereira: Tens toda a razão no alerta para o " relativismo " político das posições tardias do C. Lefort,o pensador-teorizador do Totalitarismo que nunca abandonou Marx e Merleau-Ponty...E no final da maravilhosa carreira de investigador, polemista e político não cessa de dar loas a Aron, Arendt e Tocqueville...Ora justamente, numa entrevista de 1989, ele não se ilude e vai ao fundo da questão do relativismo: "(...), o relativismo dos valores - a tolerância, a ética e a democracia multipartidária...- é o que expõe a democracia à agressão,a desarma. No que se refere ao comunismo, é porventura Marx que imagina a realização da democracia no comunismo; quanto a Lenine, creio que a democracia foi o seu principal inimigo, mais ainda que o próprio capitalismo. Lénine foi capaz de fazer grandes concessões ao capitalismo; ele ficou fascinado pelo capitalismo alemão, que era para ele um modelo de racionalização extraordinário, enquanto que a democracia liberal era para ele o principal inimigo. Para voltarmos ao relativismo: o relativismo representa o pensamento em que toda a verdade é relativa; não existe verdade que não seja submetida a um ponto de vista particular.(...) Nós transportamos à nossa custa a marca das questões que nascem do tempo que corre, e não só propriamente de nós ".Para o debate interessa ainda focar esta tese de C.Lefort: " Uma sociedade não é simplesmente um certo sistema de relações sociais que se constituiram arbitrariamente até formar um conjunto coerente e estável; pelo contrário, cada sociedade existe enquanto sociedade política, isto é, enquanto sociedade no interior da qual se impõe uma discriminação entre o que se pensa bem ou mal, verdade ou mentira, real ou iaginário, natural ou artificial ".In C.L. " Le Temps Présent ", Bélin,2007. Niet

Anónimo disse...

MS. Pereira, meu caro: Uma breve tentativa de tornar mais perceptível o que Lefort quer poder talvez dizer.Aliàs, ele não critica a ética, a tolerância e o multipartidarismo em absoluto.Remete-os para a instância da instituição da liberdade em primeiro lugar. O que não está longe do que defendes e preconizas. Voilà. Para alargar essa interpretação muito delicada e microscópica , sirvo-me de um texto do livro de J.P. Cometi-" A Filosofia sem privilégios" -por acaso traduzido em português nos bons velhos tempos do MM.Carrilho... " Dewey insistia justamente, tanto no plano ético como político, sobre o que os conflitos e a pluralidade das normas e dos valores comportam de historicamente irredutível. Quando essa pluralidade existe a crítica também existe.(...)A simples ideia de conflito de valores deixa-nos em dificuldades, visto que na ausência de normas " transcendentes", como Platão sempre insistiu a seu modo, parece estarmos condenados à arbitrariedade. Mas a arbitrariedade não exclui a razão ".(...)" No fundo, talvez não haja outra alternativa senão a comunicação- o diálogo- e a violência ". Vamos estar atentos a estes doutos problemas de filosofia política radical...Niet