Ando por fora e longe daqui. Mais concretamente, estou a viver em 1975, esse ano de todos os perigos, longe tão longe que este cantinho parecia de facto outro país. Teria muitas coisas a escrever sobre o que se passa à tona de água, neste tempo que me é mais próximo ainda que mais desconcertante. Mas a produtividade, as metas, os objectivos, os prazos, as obrigações, todas essas coisas que levam um jovem ambicioso a fechar-se em casa para terminar a sua tese, tudo isso, dizia, não me permitem debruçar, longa e exaustivamente, sobre a espuma dos dias e os males do mundo. Permitam-me em todo o caso que partilhe um desabafo, comentário impotente relativamente à barafunda que para aí vai, mas que não consegui deixar de furtar aos meus afazeres.
Paira no ar um suave odor a fim de ciclo, fim de época, fim de regime, e tudo o que parecia sólido se desfaz no ar. E constato que a indignação que percorre as hostes da Esquerda tem qualquer coisa de desapontamento melancólico, como se as regras do jogo estivessem a ser quebradas no preciso momento em que se estava a aprender a jogar.
Conta-nos o Rui Tavares que os tribunais primeiro e o grupo parlamentar socialista depois, deram sucessivas facadas na República, ao inocentar uma Névoa e apoiar um pequeno larápio. Esqueceu-se talvez da terceira e mais decisiva facada - a Europa assiste tranquilamente à caminhada da sua periferia em direcção à bancarrota, o que, como é sabido, pouco contribui para alimentar a ética republicana.
E o Daniel Oliveira não pára quieto, disparando sem parar sobre todas as nódoas que insistem em conspurcar o manto diáfano da virtude. Leio as suas boas intenções e ainda melhores aspirações, as suas crónicas críticas impolutas e sem concessões, das quais brota continuamente a ideia de uma outra república, de uma outra democracia, outra Europa e outro mundo, e fico com a sensação de estar a ouvir a orquestra a tocar enquanto o barco se afunda.
O mundo, tal como o conhecemos, está-se a decompor e a desagregar, até ficar reduzido aos seus elementos primordiais, como se a história procurasse corresponder ao prognóstico de Johny Lydon e às profecias do calendário Maia. Talvez tudo isto não devesse ser para nós uma surpresa. Pelo menos não aquele tipo de surpresas que nos faz levar as mãos à cabeça e dizer «Meu deus! Isto estará mesmo a acontecer?». Isto está mesmo a acontecer e não consta que vá melhorar. Avisado seria, porventura, interrogar-nos acerca dos moldes em que se vem centrando o debate político e admitir a possibilidade de ele estar a passar ao lado do que é mais importante.
Condição essencial para um recentramento seria provavelmente o traçar de uma fronteira mais nítida entre aqueles que defendem o actual estado de coisas (mais tgv menos tgv, mais rating menos rating) e aqueles que o pretendem liquidar, uma vez que nem todos viremos a ganhar o mesmo com a hipotética e mirífica retoma, qualquer que seja o caminho que nos conduza até ela.
Mas o passo verdadeiramente decisivo seria a ultrapassagem do quadro nacional, que vem moldando todos os tiroteios verbais, dramatizações e discursos, como se houvesse um destino português a cumprir, algures e em dado tempo, através do crescimento das exportações e da poupança das famílias. Não haverá qualquer solução nacional, projecto nacional, estratégia nacional, sacrifício nacional que possa tornar as nossas vidas um pouco mais suportáveis. O nosso destino, a haver um destino, joga-se mais nas ruas de Atenas do que nos gabinetes de Lisboa e os nossos debates fundamentais, se ainda formos a tempo de ter algum debate fundamental, têm necessariamente que se debruçar mais sobre a resistência global do que sobre a avaliação do risco da economia portuguesa.
Sim, a história vem sendo escrita à base de activos tóxicos, gestores multimilionários, investidores frenéticos, insolvências contagiosas. Mas esse é precisamente o nosso problema e uma narrativa que parta daí para a necessidade de novos mecanismos de controlo e regulação limitar-se-à a seguir as mesmas linhas, quando é necessário escrever um texto radicalmente novo. É bastante provável que nada esteja oculto por trás do nevoeiro e que ele esteja lá apenas para que fiquemos especados a contemplar. Como uma nêspera à espera de ser comida. Como naquele Outono de 1975, que tão fatal nos foi e cuja conta continua por saldar.
2 comentários:
Grande Camarada Ricardo, tens via-factuado pouco, mas quando o fazes via-factuas deveras. Maré alta…
Mas deixa-me propor-te aqui duas notas de rodapé, que corrigirás se as achares muito a despropósito.
1. Escreves tu: "Sim, a história vem sendo escrita à base de activos tóxicos, gestores multimilionários, investidores frenéticos, insolvências contagiosas. Mas esse é precisamente o nosso problema e uma narrativa que parta daí para a necessidade de novos mecanismos de controlo e regulação limitar-se-à a seguir as mesmas linhas, quando é necessário escrever um texto radicalmente novo".
Não te parece que, partindo da exigência de corrigir as linhas já escritas é, em certos casos, difícil de distinguir da de "escrever um texto radicalmente novo"? Não será possível, começando por reconhecer a exigência de intervir politicamente sobre a economia, passar à conclusão de que, sendo toda a economia politicamente instituída, tornar essa exigência de intervenção política exigência de democratização do aparelho económico, segundo o princípio de um voto por cabeça transposto para a esfera da política dos rendimentos, de uma tomada de decisões colectivas igualitariamente participada, e assim por diante? Claro que estas considerações não se aplicam às propostas de correcção que se dão por fim deliberado, consciente e calculado, manter e facilitar o comando oligárquico e/ou o princípio hierárquico enquanto tal na direcção da economia.
2. É verdade que em 1975, no 25 de Novembro, a direita saiu vencedora. Mas achas mesmo que aquilo que foi derrotado era já a revolução, o poder popular entendido como poder político exercido pelos próprios trabalhadores e cidadãos auto-organizados? De facto, existiram tendências pré-revolucionárias importantes e inspiradoras de auto-organização democrática e supra-partidária, mas apesar de tudo demasiado limitadas e colonizadas para chegarem a instituir um contra-poder igualitariamente exercido que os vencedores de Novembro teriam derrotado.
Abraço grande
miguel
Caro Miguel, respondendo às tuas duas interrogações.
1- Acho que os discursos à esquerda sobre a crise adoptam uma postura de «o que fazer para tirar o país da crise» que caminha tranquilamente em direcção ao abismo e substitui a luta de classes pelo interesse nacional. Intervir politicamente sobre a economia tem que ser algo mais do que regular, taxar e apoiar. Algo mais e algo diferente. Parece-me claro que estes dois tempos - o das «soluções concretas e pragmáticas» para hoje e o de uma mirífica política socialista para amanhã - reproduzem todos os impasses da social-democracia europeia do início do século XX. E todos sabemos qual foi a continuação dessa história. Não há uma solução nacional progressiva e espaçada no tempo para a crise do capitalismo. Nacional ou europeia, aliás, porque o problema não é apenas de escala.
2- Acho que a revolução portuguesa conheceu limites evidentes, em parte relacionados com o isolamento geográfico e com a longuíssima duração da ditadura, que, mais uma vez, acorrentaram o proletariado português a uma perspectiva estritamente nacional. Não penso que exista tal coisa como «a» revolução, um gesto catártico que rompe a história em dois e após o qual nada será como dantes. Acho que houve uma revolução que derrubou ou submergiu uma série de estruturas de dominação e subverteu profundamente as relações sociais nas cidades e nos campos do sul. E depois uma muito lenta contra-revolução, iniciada com o VI Governo Provisório e concluída com a 3ª revisão constitucional.
Penso que um exame mais profundo do que foi o «gonçalvismo» ainda está por fazer (mas já vai).
Em todo o caso, não penso na revolução como um estado de coisas ou um regime político específico, mas como um tempo assinalado por transformações muito aceleradas e por uma participação política muito intensa. Essa revolução foi certamente vencida em Novembro e liquidada nos meses seguintes.
Um abraço
Ricardo
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