05/05/10

Sobre a Campanha "Cidadãos pela Laicidade" e a Sua Difamação

O texto do abaixo-assinado de Cidadãos pela Laicidade já publicado num post anterior deste blogue fala por si. Mas, tendo tropeçado hoje na intervenção de um artista e docente - conhecido sobretudo por, para gáudio do público, gostar de se oferecer em espectáculo enquanto se fantasia ao teclado como sangrento papa de um remake de igreja renascentista estalinizada ao rubro -, intervenção essa que deturpa e injuria soezmente a iniciativa que comecei por referir, aproveito a deixa para alinhar aqui duas ou três reflexões sobre as razões que me parecem indicar o alcance potencial daquela, começando por dar breve notícia da sua génese. O que permitirá aos interessados ajuizarem um pouco mais justamente do crédito a dar a infâmias como a que serve de título ao post, publicado no 5dias, cujo autor o decoro não me incita propriamente a nomear, e que assim reza: A trampa-armadilha-jugular entretém-se com manifestos anti-Ratzinger, mas não é Ratzinger quem nos promete o céu na terra.               
Aqui há umas semanas, através de conversas encetadas sobretudo nas caixas de comentários do Esquerda Republicana, do Brumas e, last but not least, do próprio Vias, a Joana Lopes, o Ricardo Alves - com o apoio e colaboração da Associação República e Laicidade - e eu próprio acabámos por decidir pôr a circular um abaixo-assinado que, contra as diversas manobras (já então e ainda agora) em curso de consagração política da hierarquia da ICAR e de consagração religiosa de correntes políticas mais ou menos empenhadas na restrição da igualdade dos direitos e das liberdades constitucionalmente consagrados, afirmasse a importância da laicidade do poder político como condição da sua democratização no contexto dos preparativos da visita de Joseph Ratzinger a Portugal. Assim, o jugular foi alheio ao momento inicial da campanha, ainda que seja possível - mas não disponho de elementos para me pronunciar a esse respeito - que a Palmira Silva, membro da ARL e co-autora do blogue acabado de referir, tenha tido desde o princípio conhecimento da acção em vista.
Mas adiante. O que importa vincar é que o texto provisório inicial, sobre o qual a Joana, o Ricardo e eu acabámos por conseguir chegar a acordo, pouco mais seria do que a expressão de um estado de humor sem as sugestões, a solidariedade e a colaboração activas dos restantes primeiros subscritores do documento, entre os quais se contam, não só alguns dos responsáveis por este blogue, como outros autores e/ou colaboradores de vários outros - além dos acima citados, refiram-se, por exemplo e por orderm alfabética, Andrea Peniche do Minoria Relativa, Carlos Esperança e Luís Grave Rodrigues do Ponte Europa, Joana Amaral Dias do Córtex Frontal, Palmira Silva do jugular, Porfírio Silva do Machina Speculatrix...

Estamos, portanto, a falar de uma nova intervenção cívica desenvolvida a partir desse novo meio de comunicação e sociabilidade que é a blogosfera. Mais tarde se verá qual a capacidade de intervir a partir dela noutras esferas colectivas, com que efeitos, segundo que eventuais linhas de força e sugerindo que conclusões.
No imediato, quero esperar que o facto de um punhado dos membros do colectivo que faz o Vias - o João Pedro Cachopo, o João Tunes, a Joana Lopes, o Miguel Cardina, o Miguel Madeira, o Pedro Viana e eu próprio - fazermos parte da lista dos subscritores iniciais seja para os que nos lêem um incentivo para apoiarem a declaração dos Cidadãos pela Laicidade com a sua assinatura e outras que militantemente possam angariar, a fim de que esta iniciativa, depois de dar que falar, anime outros combates pela extensão da laicidade como condição da extensão da liberdade de consciência, do livre exame, da liberdade de criação e da criação de liberdade que são, por sua vez, condições primeiras da democracia e da sua extensão instituinte.
Resta acrescentar que, do meu ponto de vista, e discordando dos que tendem a declarar secundário o problema político da religião, a importância da reabertura democrática da "questão religiosa", da denúncia da consagração de uma religião, que o consagra em contrapartida, pelo poder político, é um ponto de partida que, uma vez seriamente assumido, nos leva bastante mais longe do que à exigência da destituição política da religião. Porque, por coerência com essa exigência e através do seu aprofundamento, nos conduz à rejeição preliminar de qualquer concepção da sociedade e da história que santifique, sacralize ou magnifique a lei ou instituições do momento, fundando-as numa razão superior que pretenda subordinar e substituir à democracia um poder político acima da vontade e da capacidade de deliberação e decisão dos cidadãos.


7 comentários:

NG disse...

Caro Miguel,
Porque evita apresentar a maioria dos primeiros subscritores dessa petição pela característica primeira que os une na blogosfera, a de serem os autores do Diário Ateísta?
Como a sua colega Prof. Palmira Silva, essa arauta do pluralismo e da liberdade de pensamento, me tem censurado os últimos comentários (está no seu direito), aqui lhe deixo um cantinho da bloga onde pode apreciar, já com alguma minúcia, o estudo sistematizado do fenómeno que o parece cativar.

http://lucianoayan.wordpress.com/

É um desafio encontrar algo nessa ala da "nova intervenção cívica desenvolvida a partir desse novo meio de comunicação e sociabilidade que é a blogosfera" dos autores primeiros subscritores da petição que ali não esteja devidamente desconstruída.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno,
não quero evitar seja o que for, e assinalar a pertença dos subscritores a esta ou àquela associação nada diz sobre o conteúdo do documento em apreço. Que pode perfeitamente ser assinado por ateus, agnósticos, cristãos de várias confissões, católicos, judeus, fiéis do islão, etc., que se considerem também cidadãos interessados na construção de um poder político laico e democrático - o que implica a "destituição política da religião", podendo esta, do ponto de vista dos crentes, ser entendida também como recusa da tentação de incorrerem no culto idolátrico de poderes demasiado humanos. Peço-lhe pois que releia o texto da nossa declaração sem preconceitos e com disponibilidade para o diálogo, e que reconsidere a sua posição em relação a ele. Seria uma alegria para mim se você, depois de o fazer, acabasse por subscrever o texto - digo-lho sem sombra de provocação e de boa fé.
Acrescento que sei que efectivamente alguns dos subscritores iniciais são membros da associação que refere; mas não estaria tão seguro de que a maioria está nesse caso. Embora não conheça as pertenças de boa parte dos primeiros signatários, ao fazer as contas possíveis chego a uma conclusão oposta à sua: a maioria dos subscritores não pertence à organização em causa. No entanto, como comecei por lhe dizer, não é isso, mas as razões do texto, que importa discutir se queremos chegar a algum lado. E não se esqueça que a grande virtude de um diálogo autêntico é fazer com que as suas partes possam chegar aonde nenhuma delas teria possibilidade de chegar apenas por si própria.
Apareça sempre. Abraço transatlântico

msp

Ricardo Alves disse...

Nuno Gaspar,
dos 27 subscritores iniciais da petição, só 7 escrevem ou escreveram no Diário Ateísta. Sete em vinte sete, que eu saiba, não é «a maioria».

E existem católicos nos subscritores iniciais da petição.

João Tunes disse...

Confirmo, contando-me entre os primeiros subscritores desta petição, o pluralismo indicado pelo Miguel Serras Pereira. Não sou ateu e conto-me na categoria "etc" (sem direito a especificação) do naipe que ele apresentou. Sou antiteísta (agradecendo a que os religiosos e arreligiosos subscritores terem aceite a companhia da minha assinatura), mas tolerante para com ateus (uma espécie que me é estranha tanto como alguém se declarar afascista ou acomunista) e católicos, quanto a crenças mas não para os seus poderes, bem como relativamente a crenças intermédias. E na defesa da laicidade estou com todas as formas cidadãs de libertar e democratizar o mundo. É disso que trata a petição, por isso a assinei e promovo.

Miguel Dias disse...

O Carlos Vidal é mal-educado. O mehor é não lhe ligar. A petição é sectária, preconceituosa e ressabiada: mas é preciso tolerá-la e defendê-la, mesmo não concordando com ela. Abç.

miguel hagle disse...

Ei João Tunes, podes elaborar sobre a diferença entre um ateu e um antiteísta, que não sei se a percebi bem..

João Tunes disse...

miguel hagle ,

A evolução semântica da demarcação relativamente à religiosidade tem evoluido ao longo do tempo, consoante, sobretudo, o considerado politica, social e culturalmente como correcto. Em Portugal, vivendo em fascismo catolicista há menos de quatro décadas atrás, a evolução da auto-designação dos não religiosos tem tido um ritmo particularmente lento e contemporizador. Se durante a ditadura demarcar-se da religião era perigoso, sendo impensável denunciá-la ou combatê-la, a democracia trouxe a revelação dos primeiros publicamente confessados como sendo "agnósticos" (fórmula de compromisso e conveniência, uma espécie de demarcação por "voto branco"). Só mais tarde ganhou algum peso a coragem de uns tantos não religiosos se auto-rotularem como "ateus" (outros, muito minoritários, preferiram a expressão, muito mais precisa, de "incréus"). A etiqueta de "ateu" pode servir para aqueles que se consideram "fora" do teísmo, do mundo religioso, tanto lhes bastando. No caso das minhas convicções, eu não me considero neutro, à margem, das ideologias teístas. Porque considero que todas as religiões e o próprio conceito do divino, integrando uma ideologia reaccionária, sobrevivente enquanto suporte da opressão sobre os povos, as inteligências e a cidadania, não me são partes alheias nem respeitáveis, merecem combate (em lutas de ideias e opiniões). Portanto, não posso ser a-gnóstico nem a-teu. Razões porque, relativamente a questões religiosas, me assumo como anti-teísta.