03/05/10

Vale dos Caídos – 1, Garzón – 0 (resultado ao intervalo)

Garzón e o “Vale dos Caídos” são as duas faces do mais espantoso paradoxo na forma como a Espanha democrática e a opinião dos homens livres que por todo o mundo não desistem de um mundo mais livre, lidam com o peso da memória do sangue e sofrimento derramados sob a tirania de Franco.


Garzón continua a contas com a “justiça” por ter ousado tentar incriminar os crimes do franquismo, numa acção provocada e requerida pela Falange e outras forças de extrema-direita. Mas a revanche descarregada sobre o juiz que ousou dar voz às famílias dos fuzilados às ordens de Franco e perseguiu judicialmente Pinochet pelos seus crimes, conta, talvez surpreendentemente, com a cumplicidade, pelo silêncio da omissão, da esquerda intelectual e política ligada acriticamente ao leninismo, a qual não perdoa a Garzón que este tenha sido, no passado, também implacável na responsabilização judicial dos pistoleiros e bombistas da ETA (no naipe dos “bons terroristas” para a esquerda mais radical). Restam, no apoio a Garzón, os antifascistas para quem uma ditadura é sempre uma ditadura, uma prisão tem sempre o mesmo custo de um encarcerado, uma tortura tem sempre a resposta do grito de um homem torturado, um crime é sempre um crime e a cor de um crime, seja qual for o criminoso e o mandante ou a ideia servida, é sempre a da cor do sangue da vítima. Não são poucos os que gritam, em Espanha e fora de Espanha, “no pasáran” aos perseguidores fascistóides de Garzón. Mas se não forem suficientes para barrar a querela judicial dos herdeiros de Franco contra Garzón então é porque há uma parte da esquerda que prefere trancar os seus armários a bater-se contra a ignomínia. E poderão, no que não se deseja nem se acredita, cantar juntos, falangistas e leninistas, o “Cara al Sol”. Para o caso, passo-lhes a letra para irem treinando (*).

Entretanto, enquanto Garzón continua a contas com o justicialismo pró-franquista, o “Vale dos Caídos” (em Cuelgamuros, a 40 quilómetros de Madrid e muito perto do Escorial) teve obras de restauro na cúpula sobre o altar da Basílica de Santa Cruz do Vale dos Caídos (foto), altar este ladeado pelos túmulos de Franco e de José António Primo de Rivera (fundador da Falange), uma decoração feita de pequenos pedaços de azulejos coloridos para exaltação da Falange e que fora danificada em 1999 por um engenho explosivo colocado pelos maoístas da “GRAPO”. Este monstro da monumentalidade fascista, mandado erigir por Franco, construído entre 1940 e 1958 por prisioneiros políticos sujeitos a trabalhos forçados, é um símbolo único e especial na exaltação do fascismo clerical, ou seja, da fusão entre o fascismo e a Igreja Católica. Casando a exaltação da religiosidade católica ao nível de um santuário com a exaltação de Franco e da Falange, a tentativa de eternização da obra mais emblemática no culto do franquismo foi assegurada pela sua integração no património físico e religioso da Igreja Católica, tentando-se assim obter um salvo conduto para a sua apreciação histórica e política. Oferecido aos monges beneditinos (que, nas traseiras, construíram um mosteiro), os quais ali se instalaram e ali celebram e gerem a basílica, obtida do Papa João XXIII a dignidade de “basílica”, o monstro de pedra cavado na rocha e dela vomitando loas ao catolicismo e ao fascismo, pelo seu resguardo religioso, usando a Igreja Católica como escudo, o “Vale dos Caídos” continua a não ter uma solução no quadro da limpeza de Espanha dos símbolos de exaltação franquista, a que obriga a “Lei da Memória Histórica” em vigor.

Assim se pode dizer, limpa a cúpula sobre o altar do Vale dos Caídos e entregue Garzón aos inquiridores franquistas, que, para já e neste intervalo, o franquismo clerical ganha ao juiz Garzón por 1-0.


(*)
Cara al sol con la camisa nueva,
que tú bordaste en rojo ayer,
me hallará la muerte si me lleva
y no te vuelvo a ver.
Formaré junto a mis compañeros
que hacen guardia sobre los luceros,
impasible el ademán,
y están presentes en nuestro afán.
Si te dicen que caí,
me fui al puesto que tengo allí.
Volverán banderas victoriosas
al paso alegre de la paz
y traerán prendidas cinco rosas
las flechas de mi haz.
Volverá a reír la primavera,
que por cielo, tierra y mar se espera.
¡Arriba, escuadras, a vencer,
que en España empieza a amanecer!
¡España una!
¡España grande!
¡España libre!


(também publicado aqui)

8 comentários:

Vias de Facto disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
rafael disse...

Uma pequena correcção: existem muitas correntes "leninistas" em Espanha. Colocá-los no mesmo saco que os fascistas falangistas parece-me um erro. Acontece que a IU e o PCE (creio que o BNG e a UPG, também) condenaram ao longo dos anos e por várias vezes os atentados da ETA, mostrando-se também contra a lei dos partidos e fazendo apelos aos abertzales para tomarem o caminho do combate exclusivamente politico.

As criticas mais contundentes que tenho ouvido a Garzón vêm essencialmente de sectores anarquistas e libertários, mas estes são acompanhados de largas explicações sobre os mesmos, (nas redes alternativas), logo não me parecem sérias acusações de silêncio. Eles falam e não são leninistas, falam é noutros espaços...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Tunes,
é sempre com uma emoção peculiar que recebo as notícias de Espanha - uma emoção que volta sempre a 36…, essa encruzilhada, para mim pré-natal, onde descubro sempre, uma e outra vez, a cada decisão a tomar, novos pontos de apoio ou de partida.
A leitura deste post foi pois reconfortante para mim, e, para além da identificação afectiva imediata, sinto-me de acordo com a análise proposta em numerosos pontos fundamentais.
No entanto, penso que vale a pena reflectirmos um pouco mais sobre os dois pontos seguintes. Só para começar - é claro.

1. Não me parece correcto, no plano dos factos, afirmar que só a "extrema-esquerda" ou a "esquerda mais radical" tem culpas na situação da "memória histórica" e da impunidade do franquismo que culminou agora no processo contra Garzón. O quadro legal aberrante herdado da Transição, a aceitação (até há pouco tempo por parte do PCE) do regime monárquico por parte da esquerda oficial e "responsável" não me parecem aspectos insignificantes. De resto, a posição ou falta de posição do PSOE e a atitude de uma no cravo outra na ferradura do governo de Zapatero são tristemente eloquentes.
2. A demarcação perante a esquerda que se recusa a condenar a ETA ou a apoia não me parece dever ser feita em termos de maior ou menor radicalismo, maior ou menor exigência revolucionária. Quase diria o contrário: o que só mostra que o "mais à esquerda" vs. "menos à esquerda" nos serve de muito pouco, ou por vezes só des-serve, quando precisamos de traçar e assumir um critério de distinção e identificação políticas decisivo e aplicável, ou praticável. Esse critério deve ser o da exigência democrática e o do seu grau de coerência . Mais democracia, significando mais participação no exercício do poder político pelos cidadãos, extensão da autonomia individual e do autogoverno que é a sua forma colectiva, mais responsabilidade e liberdade dos colectivos que articulam necessariamente a existência social de cada um, mais igualdade de condições - mais democracia, em suma, como comecei por dizer, pode e deve ser o critério que conta e demarca tanto a propósito da questão da ETA, do franquismo, da acusação movida contra Garzón, como na definição das plataformas e cartas de princípios mínimas da nossa intervenção política quotidiana.

Viva a República Espanhola! Viva a Federação Democrática Ibérica e a Cidadania Democrática Europeia!

Cordial abraço democrático

msp

João Tunes disse...

Caro Miguel Serras Pereira,

Por justiça à capacidade da natureza em distribuir de forma desigual os talentos é natural que eu concorde mais consigo que vc comigo. É o caso, uma confirmação, pois concordo com tudo que escreveu.

No entanto, permita-me desfazer um mal-entendido. Eu não afirmei, ou não pretendia afirmar, aquilo com que discorda. Ou seja, não procedi (neste texto) a qualquer responsabilização, geral ou particular, sobre a “transição” ou sobre as medidas de preservação da memória histórica em Espanha. E, perante o significado da ofensiva contra Garzón, prefiro não misturar as duas questões. Especificando: a “transição espanhola” é, face à distância, uma questão de debate histórico e político (inesgotável “estudo de caso” que me apaixona); a ofensiva contra Garzón é uma revanche franquista que está em marcha e na ordem do dia, em que se ganha ou perde, querendo eu que ganhem as causas da democracia e do antifascismo, honrando as vítimas e a memória da vitória do fascismo em Espanha. Se posso contar com a sua condescendência, então peço-lhe que me perdoe o tacticismo confesso que recusa que seja um juiz corajoso e justo a pagar por eventuais equívocos, compromissos e traições cometidos há 35 anos por políticos desejosos de acelerarem o regresso de Espanha à democracia. Se do outro lado da trincheira estão os falangistas e todos os outros saudosos de Franco, não os vou municiar com querelas que dividem a opinião democrática. E a esses digo “no passáran” com um sentido aproximado e actualizado ao utilizado pela Passionária.

Errei no uso dos termos (radicalismo, esquerda, leninismo). Que o mesmo é dizer que assumi, sem aspas ou desmontagens, as auto-atribuições. Como não especifiquei as atribuições que lhes concedo, adoptando-as, em concordância ou em polémica. Pequei, pois, por consideração formalista para com as etiquetas, as alheias e as minhas. E alimentando mal entendidos, como o entender-se que o PCE se inclui entre as forças do leninismo (deixou de o ser pelo menos desde 1968), como não se perceber que quando falo de leninismo me refiro à sua transmutação estalinista que, ainda, não se considera a si própria como leninista mas sim como marxista-leninista, cumprindo obedientemente a etiqueta e os métodos dogmatizantes com que Estaline depurou e cristalizou o marxismo e o leninismo, explorando a lógica em que assentou a derrapagem nas obras e actos de Marx e Lenine até à gestão de Estado e petrificação da identidade comunista consumadas por Estaline. Agradeço-lhe, pois, a sua ajuda para a reposição do rigor nas categorizações.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Tunes,
concordo perfeitamente com o que escreveu, e a sua resposta explicita melhor do que o meu comentário vários aspectos importantes. Esta concordância implica, claro, que só não concordo com a sua abertura.
Também pressupus que as reservas que adiantei quanto a este ou àquele modo de dizer certas coisas mereceria a sua aprovação e lhe daria oportunidade de continuar a desenvolver um pouco mais a sua leitura - o que acaba de fazer com proveito para todos.
Ao mesmo tempo, ao levantar a questão do "mais democrático" como critério de juízo político preferível ao de "mais à esquerda", pretendi sobretudo tirar algumas das conclusões daquilo a que você chamava o "leninismo" , o radicalismo autoritário ou o extremismo que é levado a reproduzir e a agravar os traços mais odiosos do que contesta na ordem estabelecida: intervim, pois, para o secundar e não para infirmar a sua tomada de posição. Ao mesmo tempo, a convocação do critério da demarcação democrática era um desafio ao Pedro Viana que, ainda há pouco tempo, em acesas discussões havidas nas caixas de comentários do 5dias - nas semanas que precederam o lançamento do nosso Vias - insistiu nesse ponto com uma lucidez e clareza que rareiam na chamada "esquerda da esquerda" (Ver, por exemplo, o post em que publiquei então um seu comentário penetrante sobre o "horizonte da democracia" vs. o "horizonte do 'comunismo'" , no referido blogue). Enfim, veremos se ele aparece nesta discussão, aqui ou noutro post, e nos ajuda, e a outros interessados no problema, a continuar a conversa e a alargar o seu círculo.

Cordial abraço solidário

msp

João Tunes disse...

Caro Miguel Serras Pereira,

Fiquemos pois esperando pelo contributo, sem dúvida útil, do Pedro Viana. Se a sua ocupação em criar um novo sistema bancário internacional (vidé último post deste nosso camarada de redacção do blogue) lhe permitir tempo de sobra para aqui vir enriquecer a nossa conversa.

Mas permita ainda um repto (para si): Consultando a imprensa e os blogues de filiação ou simpatia leninista, encontra algum tipo de apoio a Garzón? Se não, o que é uma evidência, porquê? Porque Garzón, antes, perseguiu Pinochet? Porque destapou a memória dos crimes do franquismo? Ou, finalmente e fulcro da questão, porque foi judicialmente duro para com a ETA?

Abraço solidário e laico.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
tem toda a razão em evocar o lugar ou papel da ETA. Infelizmente, não serão só os m-l a adoptar a atitude que você denuncia - embora mais do que justifiquem o destaque que o seu comentário lhes concede.
Abrç

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Por erro ou razões desconhecidas, os links que introduzi no meu último comentário não funcionam.
Aqui fica mais uma tentativa

cinco dias

horizonte da democracia vs horizonte do comunismo

Com as minhas desculpas

msp