17/03/11

Um grave erro político (ainda sobre a Líbia)

O Tiago Mota Saraiva escreveu hoje um post menos feliz do que outros que forçam a admiração de quem quer que saiba ler e que fazem com que, em relação a ele, tendamos a recorrer a critérios de exigência mais elevados.

Na primeira e, apesar de tudo, mais razoável parte do seu texto, lemos, com efeito, o seguinte:

Não tenho sentido qualquer motivação para escrever sobre o que levou os eurodeputados do BE a votar a favor da deliberação sobre a situação na Líbia. Parece-me um erro político mas, por si, não faz com que considere o Miguel Portas, a Marisa Matias e o Rui Tavares defensores do imperialismo ou da NATO. Acho que cometeram um erro político grave que espero que não fique para a história de mais uma intervenção da NATO, tal como acredito que os próprios desejarão.

Creio que basta resumirmos brevemente o filme dos acontecimentos na Líbia para compreendermos que os erros ou compromissos politicamente mais graves não estão onde o Tiago os situa, mas, sobretudo, no campo dos que, lavando as suas mãos, dizem que a guerra civil na Líbia é um assunto interno do país, devendo a soberania deste ser salvaguardada através de uma não-intervenção de terceiros no conflito.

Recapitulemos, portanto, o filme.

1.Houve, primeiro, a revolta na Tunísia, seguida de perto pela do Egipto, e ambas, não só derrubaram as ditaduras existentes, como funcionaram como detonador de uma vaga de contestação radical no Mediterrâneo e no Médio Oriente - vaga que ainda hoje continua a alastrar e cujo terceiro momento fundador foi precisamente o levantamento líbio contra a ditadura de Kadhafi.

2. Ao contrário, todavia, do que se passou na Tunísia e no Egipto, Kadhafi, que dispõe de forças mercenárias e meios de combate importantes, conseguiu resistir aos primeiros assaltos avassaladores, sem abandonar a capital nem o conjunto do território aos revoltosos. Assim, após alguns dias, durante os quais a sua queda pareceu estar para breve, conseguiu reorganizar as suas tropas e desencadear, graças à superioridade esmagadora de meios de que dispõe, um movimento de repressão impiedosa, cujo sucesso tem sido garantido em grande parte pela aviação.

3. Desde muito cedo e perante os ataques aéreos das suas posições, o campo dos revoltosos exprimiu que necessitaria de apoio e auxílio internacionais, que, não autorizando uma invasão/ocupação do país, pudessem permitir-lhes resistir a Kadhafi e apressar, para poupar vidas humanas e recursos, a sua derrota. O auxílio, que incluiria o estabelecimento de uma no fly zone sobre o conjunto do território líbio, seria, nos termos em que foi pedido pelo Conselho dos revoltosos, obviamente concertado com estes, e teria de implicar, para ser consequente, o reconhecimento do campo insurrecto como titular da soberania líbia.

4. É nesta altura que uma parte da "consciência progressista" europeia, alertada por um discurso de Fidel, passa de um apoio entusiástico à extensão à Líbia do exemplo da praça Tahir, à denúncia de qualquer intervenção no país - ainda que concertada com a resistência líbia e em apoio desta - como uma "agressão imperialista". Ou seja, e mais cruamente, alguns dos que incitavam os revoltosos a seguir o exemplo da Tunísia e do Egipto, acusando os governos da UE e dos EUA de aliados de Kadhafi, mudam de atitude e, quando os revoltosos pedem auxílio internacional, em lugar de pressionarem os governos dos seus países a intervir em apoio da insurreição - reconhecendo o Conselho e acordando com este as modalidades do apoio a prestar (exclusão aéreas, armamento e outros meios, eventual assessoria militar, presença de uma missão da UE no território libertado, etc.) -, declaram-se equidistantes em relação aos dois campos da guerra civil e dizem que, dada a natureza interna do conflito e a necessidade de respeitar a sua "independência nacional", qualquer apoio da UE à resistência seria uma forma de interferência imperialista. O que significa, em boa lógica, que aqueles que eventualmente se dispusessem a aceitá-lo passariam a ser agentes objectivos das oligarquias ocidentais.

Dito isto, estou pronto a reconhecer que a proposta de resolução votada é, além de tardia, insuficiente e, também portadora dos traços, sempre frustrantes, de qualquer solução de compromisso. Mas mantenho, como escrevi há dias, que qualquer movimento democrático, intervindo na UE, deveria exigir desde o começo da guerra civil na Líbia seria que, invertendo a sua política de relações privilegiadas e cumplicidade com Kadhafi, os governos europeus reconhecessem o Conselho da frente dos revoltosos e apoiassem a luta destes, em termos acordados com eles - sem excluir o recurso aos meios que se revelassem necessários.
Esta posição deveria ser assumida pela UE como iniciativa própria e tomada fora do quadro da NATO, independentemente dos EUA e sem ficar suspensa do aval das Nações Unidas (ainda que reclamando-o). E, de resto, convém dizer que é diferente reivindicar uma intervenção da UE, como aliada do "campo republicano", ou mesmo uma intervenção supervisionada pelas Nações Unidas, e reclamar a intervenção e a iniciativa da NATO.

Trata-se, sobretudo, de não esquecer que qualquer posição do tipo "abstencionista, ainda que mais temperada nos seus argumentos do que as assumidas nos posts acima referidos, funciona como "amiga de Kadhafi", uma vez que: 1. não impede a intervenção na Líbia, mas contribui para que ela venha a ser decidida e praticada em termos não concertados, como seria desejável, com o "campo republicano" — e na perspectiva de assegurar os mesmos interesses oligárquicos que apoiaram Kadhafi; 2. confunde estupidamente o apoio a um dos campos de um país em guerra civil com a violação do direito à autodeterminação do seu povo, e, no terreno, o seu "programa" só pode beneficiar as forças da ditadura; 3. além de que, em vez de apostar no reforço de um movimento democrático na Europa, capaz de inflectir as suas políticas e de questionar as instituições vigentes na UE, aceita a lógica e a realidade da actual UE como um facto consumado e uma fatalidade histórica, da qual só poderíamos ser salvos pela acção de terceiros mitificados (não se sabe que vago "terceiro mundo" ao certo) e objectos passivos de uma redenção não menos despótica nem menos baseada na negação da democracia do que o regime global imposto aos seus súbditos globais pelo actual "império".


À laia de conclusão, parece ser, desta feita, o Tiago Mota Saraiva que comete o grave erro político de não ver que — independentemente das críticas que se possam fazer a certos aspectos da tomada de posição dos deputados do BE — a verdade é que, como também já escrevi, os que se têm oposto ao apoio e pleno reconhecimento do campo da revolta a pretexto de evitar uma "invasão da Líbia", terão as duas coisas: o esmagamento do movimento popular e das suas potencialidades democráticas e uma versão ou outra de invasão ou subordinação política da Líbia à coligação oligárquica que até há poucas semanas tinha em Kadhafi o seu homem de mão.

5 comentários:

Unknown disse...

pronto, aí está! agora a verdadeira guerra vai começar! Parabéns!

L. Rodrigues disse...

Metacomentário:
É nestas coisas que a direita se safa. Ou seja, enquanto nas Esquerdas, há uma gama inteira de cinzentos a considerar, na direita as posições podem basicamente reduzir-se a: "Em nome da liberdade vamos invadi-los" ou "São árabes, eles que se entendam". É tudo muito mais simples. Tragicamente mais simples.

Anónimo disse...

MS. Pereira: Dois pontos:1) Como se explica o papel das Forças Armadas no controlo das " revoltas " populares da Tunísia e do Egipto,cada vez mais dominador e dominante?2)Tudo indica, que a França e a Inglaterra- sem relação com a NATO- vão liderar os ataques ciblados aéreos contra as forças de Khadaffi.A Itália e a Alemanha opõem-se à opção militar.A Espanha pode ajudar um pouco. O Qatar parece que declina participação. E o Egipto e a Arábia Saudita - com grandes classes de bombardeiros - também. O que leva Sarkozy a liderar a " batalha "? Claro, razões de política interior- pessoais, politicas face aos niveis baixissimos de popularidade- e a preparação da pré-campanha das Presidenciais de 2012, onde se posiciona na escolha do eleitorado em terceiro lugar, atràs de Strauss-Khan e da Marinne Le Pen...
Niet

Para a Posteridade e mais Além disse...

A guerra ou a salvação das minorias oprimidas ajudam as eleições

a guerra civil líbia tem pitroil

à da costa do marfim falta gasoil

vamos invadir uns

e leixar os otros

Para a Posteridade e mais Além disse...

Kada fi trigui una miqueta a aparèixer al lloc Libio

e à custa de uns centos de mercenários

explica-se que uns milhares de revoltosos

são as forças do bem

e as tribos de Tripoli são o mal reencarnado