28/03/11

Re: Bombas humanitárias

Luciano Amaral (via O Insurgente):

Mas esta não é uma guerra humanitária. É, tal como no Iraque, uma guerra para mudar o regime, com a diferença de que os ocidentais não o reconhecem, o que torna tudo muito perigoso. Uma guerra para mudar o regime obrigaria a um compromisso, como no Iraque, em permanecer até se criarem novas instituições. Mas existiria então o custo de enviar soldados e burocratas para o terreno. Em vez disso, temos uma guerra em que o heroísmo ocidental se mede até ao último rebelde líbio morto. Porque se não é para mudar o regime, a alternativa é a mera participação numa guerra civil e a destruição da Líbia enquanto país. Pode alguém dizer que se trata de ajudar o lado anti-governamental e deixá-lo, depois, reconstruir. Mas alguém sabe quem são realmente os rebeldes, para além daqueles beduínos de que os fotógrafos tanto gostam cavalgando o deserto nas suas carrinhas pick-up? E se os bombardeamentos à distância não funcionarem, o que fazem os ocidentais? Vão-se embora, com um país a arder às costas?
A ideia que uma guerra aérea não basta, que é preciso uma intervenção terrestre começa a ganhar terreno entre os saudosos de Bush (aqui ou nos EUA). No entanto, é preciso ter patente que, por enquanto, a opinião dos rebeldes é "só queremos apoio aéreo, não tropas no terreno" (provavelmente porque não querem os "burocratas" - i.e., governantes - que LA sugere que se mande junto com os militares); na minha opinião, não é certo que os rebeldes mantenham essa posição (não me admirava que, se a sua série de vitórias militares se interromper, viessem mudar de opinião e pedir tropas ocidentais), mas mandar tropas para o meio de uma guerra civil em que, pelo menos por enquanto, todas as partes rejeitam tropas estrangeiras parece-me a receita certa para um desastre, além de ser bastante questionável no plano dos principios (um pouco como ajudar uma velhinha a atravessar a rua quando ela apenas nos pediu as horas).

De qualquer forma, quer se concorde quer não, há algumas posições sobre a Líbia que me parecem logicamente correctas, estilo:

a) A Libia não está preparada para a democracia, não nos metamos nisso

b) A Libia está mais que preparada para a democracia, não precisam de nós para nada

c) A Libia está preparada para a democracia, só precisa de uma pequena ajuda (como uma ZEA)

Já a posição "A Libia não está preparada para a democracia, e por isso o Ocidente tem que ir para lá democratizá-los" (o que me parece ser, mais ou menos, a posição de LA, se estou a perceber bem) não me parece fazer grande sentido.

11 comentários:

Anónimo disse...

Não deixa de ser curioso que tenha sido Pacheco Pereira, ontem, a chamar a atenção de que o argumento da protecção dos civis seja falacioso, já que o que existem são grupos armados em confronto e não qualquer «massacre» de populações civis.
As razões desta guerra estão claras: são razões geoestratégicas do controle do Norte de África e dos recursos estratégicos. Todos sabemos que se os rebeldes fossem «fundamentalistas» islâmicos, ninguém iria em seu socorro. Que aqui se faça a defesa das «vias de facto» com argumentos morais e políticos que manifestam toda a ingenuidade dos autores, pois não acredito serem cínicos, só é um sintoma da ausência de um crítico espírito radical e autónomo.

Niet disse...

Anónimo das 16.o2: Concordo com a sua posição.Há uma implicita lógica de Dominação e de Violência Antropológica e Civilizacional na " cruzada " contra a Líbia, como a definiu um homem de mão de Sarkozy. O Baudrillard cataloga essa terrivel e mortífera lógica- Ocidental,Teconocientífica e Mortífera: " Para a potência mundial, tanto ou mais integrista que a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem Heresias. Por isso, estão condenadas quer a integrar de livre vontade ou à força a Ordem Mundial; ou, então, a desaparecer.A missão do Ocidente(que não tem já valores próprios) consiste em submeter por todos os meios as multiplas culturas à lei feroz da Equivalência. Uma cultura que perdeu os seus valores não pode senão vingar-se na dos outros.(...)O objectivo é de laminar todas as zonas refractárias, de colonizar e de domesticar todos os espaços selvagens, quer sejam lugares geográficos ou universos mentais ", in J. Baudrillard, in " A violência do Mundial ". Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo das 16 02,

1. havia o risco efectivo de esmagamento dos insurrectos.
2. A posição a assumir pelos cidadãos apostados na democratização das instituições da economia política europeias e globais seria pressionar os seus governos ao reconhecimento e apoio aos insurrectos (armas, mantimentos, assessoria militar, embargo do campo da ditadura, versão mínima de uma no fly zone). Com ou sem aval das Nações Unidas e numa iniciativa coligada à maregem da NATO.
3. Dada a evolução dos acontecimentos, o que há a fazer é insistir na interpretação restrita da intervenção destinada a garantir a no fly zone, e continuar a exigir à UE uma tomada de posição autónoma e de apoio logístico-militar ao campo insurrecto, pedindo-se a este que se comprometa com um programa de garantia de liberdades e direitos claro.
4. O que se está a passar na Síria e no Iémen, no Bahrein e em Marrocos, etc. torna cada vez mais imperioso que continuemos a bater-nos por uma política alternativa e autónoma da UE, que vá um pouco mais longe do que não fazer seja o que for perante as revoltas ameaçadas de banhos de sangue para não fazer o jogo das oligarquias.
5. Ainda que longe do poder instituído, um movimento democratizador dsperto na Europa pode, não determinar em todos os pontos desejáveis, mas inflectir significativamente as decisões dos governos em relação às revoltas mediterrânicas, ao mesmo tempo que dar início assim a um novo marcar da sua presença activa.

Saudações cordiais

msp

Zuruspa disse...

Já näo sei em que acreditar.
Nem nunca se viram os tais "bombardeamentos de civis", nem aogra nas cidades "re-libertadas" indícios de "massacres".

Quem se queixava que estavam a ser agredidos e roubados eram os trabalhadores egípcios que tentavam voltar para casa.

E documentadas efectivamente säo as pilhagens feitas pelos rebeldes, até em hotéis. Ah, e os mortos civis provocados pelos "bombardeamentos humanitários para proteger civis".

Anónimo disse...

Alain Badiou escreve sobre a Guerra na Líbia! Grande texto metafórico do filósofo - post maoista e post lacaniano - contra a terrível ameaça para o despertar da Democracia Árabe, que os " padrinhos " ocidentais/civilizacionais" lançaram sobre a Líbia, em especial, e o Médio Oriente, em geraa. A não perder, pois, dada a precisão infinitesimal da análise diluída num " diálogo filosófico " de alta voltagem. Procurar na página de Debates do LibérationOnline de ontem. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Niet,
ainda que déssemos de barato que a análise de Badiou é correcta - de facto, é insuficiente e comporta coisas altamente contestáveis -, nada nela nos indica o que fazer em apoio daqueles que são para eles os portadores da Verdade, entre a espada e a parede. O artigo lê-se com curiosidade, mas é, com efeito, o de um filósofo acima da "maré das coisas humanas" que desdenha tomar partido - uma vez que as condições de uma acção da Verdade ou do sentido verdadeiro ainda não estão reunidas, ou foram curtocircuitadas pelos "bandidos" dos vários campos e tendências. Caricaturando, mas não muito, dir-se-ia que teremos de esperar por uma revolta contra os bandidos em que estes não intervenham para estragar as coisas, designando-se a si próprios como bandidos e oferecendo-se à fúria popular…
Mas, de qualquer modo, obrigado pela referência (o link para o texto do do filósofo das matemáticas e do amor é: http://www.liberation.fr/monde/01012328104-un-monde-de-bandits-dialogue-philosophique ).

Bom vento!

msp

Anónimo disse...

MS.Pereira: Estás a ser injusto. O Badiou tem coisas muito trabalhadas( é um filósofo militante), e avançou imenso- mesmo politicamente.Envolveu-se, desde há anos, em grandes movimentações basistas em Paris contra a repressão sarkozista, o tal, precisamente: Movimento de apoio aos Sem-Papéis,Acções múltiplas contra a repressão terrível e murada praticada nos Asilos Psiquiatras franceses,etc. Este texto é uma " tribuna " de Opinião pessoal contra a tragi-comédia criada por Sarko, Cameron e Obama, secundada por B-H.Lévy: a intervenção desproporcionada," ambiciosa " e sanguinária contra um mosaico de " tribos " dirigido por Khadaffi. E, meios árabes em Paris ,declararam hoje que existem grandes démarches no terreno- Tunisia, Venezuela...- para ser encontrada uma solução para o Kaiser líbio e seus familiares.Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Niet,

não nego os factos que referes. Mas a entrevista documenta bem aquilo a que outro pensador, que conheces bem e citas repetidamente, chamaria o primado do teórico-especulativo e a obliteração mais ou menos completa de juizo político. Não te parece?

msp

Anónimo disse...

MS. Pereira:Há um texto do Castoriadis- in Histoire e Création- que rasa o sentido do teu comentário(?) à tribuna opinativa de A. Badiou. Que ataca as visões teológicas que subliminarmente detectas na apostrófe " irónica " de Badiou contra Sarko e B-H.Lévy.Trata-se de um texto magistral, muito longo, este de Castoriadis sobre os processos de como o imaginário pode subverter a alienação: " A humanidade cessará de alienar-se quando terminar por procurar definir-se relativamente a outra coisa, a uma outra significação, quando aceitar assumir-se nesta(identidade/alteridade), não indefinição, mas pela especificidade do seu " estatuto", que se deseja que não seja outra coisa que o fazer de um ser feito e o fazer ser de um ser a fazer ". Bon vent et lune pleine, como dizem os marinheiros! Niet

Bruno Peixe Dias disse...

Miguel e Niet,

Assim muito de passagem, deixo-vos esta citação: « La vérité propre du sujet est toujours participation à une vérité qui le dépasse, qui s'enracine et l'enracine finalement dans la société et dans l'histoire, lors même que le sujet réalise son autonomie. »
É Castoriadis, mas podia ser Badiou, para quem o que interessa não é o que está acima das coisas humanas, mas a capacidade dos humanos de se projetarem acima das coisas.
De resto a citação foi roubada a um artigo de um tipo chamado Gernot Kamecke que compara justamente o Badiou e o Castoriadis - o Niet já tem quem lhe faça companhia na admiração pelos dois filósofos :)
A citação é da instituição imaginária.
Abraço,
bruno.

Niet disse...

Caríssimo Bruno Peixe: Thanks pela referência, claro. E, como Castoriadis o sublinhou, filosofar- o que Bruno Peixe faz admirávelmente- é tentar ser livre no campo do pensamento. A que acrescentou- in "Le Monde Morcelé": " A liberdade não é nem " utopia",nem fatalidade. È projecto social-historico.(...) " Utopia substitui visivelmente aqui, como em toda a giria contemporânea, a " ideia reguladora " kantiana, retirando-lhe as desagradáveis conotações " idealistas " e conferindo-lhe, apòs a falência do marxismo, um agradável perfume revolucionário pré-marxista". Salut! Niet