20/05/10

Longe do paraíso

pobreza
Publicado em 1933, Na Penúria em Paris e em Londres é um testemunho poderoso da experiência da pobreza, dos seus efeitos sobre os comportamentos e da própria consciência de ser-se pobre. A vivência do desamparo não resultou porém, em Orwell, de uma imposição das circunstâncias: ele procurou-a pois queria conhecê-la, procurou-a porque «queria viver entre os oprimidos, estar no meio deles», porque pretendia partilhar, como escritor em formação mas também como militante da causa do socialismo, das condições de existência da maioria dos humanos. A sua percepção de certos factores associados à condição do pobre – o tédio da existência degradante, a ausência intensamente depressiva de uma perspectiva de futuro, a despersonalização e o individualismo, a violência como instrumento de sobrevivência ou vestígio de dignidade – jamais deixou de ter a marca inerente à condição social e intelectual que detinha, mas nem por isso foi menos perturbadora, funcionando como factor importante na construção da sua consciência política.

Por detrás da miséria humana mais extrema, sobressai sempre, neste relato, o lado solidário. Deixou gravado um momento de epifania, lembra o seu biógrafo John Newsinger, quando, em Paris, um certo dia ajudou um vendedor ambulante a endireitar uma carroça que havia virado. «Obrigado, companheiro», agradeceu-lhe o outro com um sorriso. «Ninguém ainda me chamara assim “companheiro” em toda a minha vida – era o efeito das roupas a manifestar-se já», escreveu Orwell, falando das consequências sociais do seu próprio aspecto empobrecido. Por detrás do egoísmo imposto pela luta diária pela sobrevivência, um princípio de solidariedade que unia os excluídos no qual jamais deixou de acreditar, mesmo quando pragmaticamente se aproximou, já no final da vida, da ala esquerda do Labour.

Talvez valha a pena relembrá-lo neste preciso momento. Quando uma boa parte dos socialistas europeus se distanciou definitivamente, sem qualquer esforço para escondê-lo, do modelo solidário no qual a sua família política um dia se fundou, por troca com um certo programa desenvolvimentista que vê num quimérico capitalismo bem-educado o menos mau dos sistemas, o triste cenário gestionário da sobrevivência que sucedeu ao aparente bloqueio histórico das utopias igualitárias. E também quando por estes dias nos dizem que a continuidade dos Estados assenta em primeiro lugar no sacrifício dos mais pobres e na pauperização da classe média, porque o cenário da pobreza nos acena já de um horizonte cada vez mais próximo. Aqui pela orla do velho «primeiro mundo», em breve os pobres deixarão de ser vistos apenas nos transportes públicos que se movem em vaivém entre os seus empregos subalternos e os bairros periféricos onde vivem, se reproduzem e morrem, ou nos sombrios pontos de encontro da crescente massa de desempregados, e mostrar-se-ão em plena cidade. Muitos deles, provavelmente, seremos nós próprios, ou serão familiares e conhecidos nossos, confrontados com a realidade da penúria que um dia associámos a um passado supostamente arcaico como aquele descrito no livro de George Orwell. Longe, muito longe, do Éden terreno prometido pela ardente voz-off dos tempos de antena.

Publicado também em A Terceira Noite

6 comentários:

Unknown disse...

Lê-se, na nota introdutória à colectânea "Orwell and Politics", que o interesse de Orwell é essencialmente histórico e literário; retrataria fenómenos desaparecidos e obsoletos.

Disse-o Timothy Garton Ash. Nada de novo, portanto.

Excelente texto sobre um autor que urge recuperar.

Miguel Serras Pereira disse...

Parabéns por este belo post, camarada Rui
Abrç

Caro lpb
Timothy Garton Ash não é a melhor fonte sobre Orwell. Aqui fica um texto sobre as suas e outras difamações do autor, publicado em 2003, por Juan Manuel Vera e em nome da Fundacion Andreu Nin < http://www.fundanin.org/ > no jornal El Pais:

"Esta nota de contestación, en nombre de la Fundación Andreu Nin, al artículo "La lista negra de Orwell", de José Miguel Oviedo, fue publicada en El País el día 15 de octubre de 2003.

En El País del día 13 de octubre, lunes, se ha publicado un artículo asombroso, “La lista negra de Orwell”, cuyo autor, según se nos informa, es profesor de literatura en la Universidad de Pensilvania.

En lo anecdótico, resulta esperpéntico que pueda decir que Orwell “fue gravemente herido en un atentado comunista contra su vida” durante su estancia en España. Es sobradamente conocido que el miliciano Orwell resulto herido en el cuello por una bala franquista, mientras luchaba en el frente de Huesca con la División 29 de las fuerzas republicanas, dirigida por miembros del POUM. Él mismo lo cuenta con todo detalle en Homenaje a Cataluña, publicado recientemente en Clásicos del siglo XX de El País, cuya lectura recomendamos al autor de dicho artículo.

Mucho más grave es el resto de juicios que incluye. Por ejemplo, que Orwell fue un converso político, que pasó de un extremo a otro del espectro, es sencillamente una rotunda falsedad. Basta leerle en años treinta (El camino de Wigan Pier) y comparar con los textos de la etapa final de su vida para comprobar que en todo momento Orwell se consideró un socialista democrático, que nunca apoyó al comunismo soviético y fue un rotundo defensor de las libertades civiles. No se convirtió en un nuevo defensor de los valores democráticos al final de su vida, siempre lo fue.

Esa invención le resulta oportuna a José Miguel Oviedo para su tesis de una lista negra que Orwell habría confeccionado, inventándose literalmente que hubiera “recomendando la vigilancia de ciertos sospechosos” o “aceptase ser un pequeño elemento en los engranajes burocráticos del Gobierno”. La cuestión es bastante más sencilla y se conoce desde hace décadas, frente a quienes venden la existencia de un descubrimiento escandaloso efectuado por Timothy Garton Ash. Nunca existió una lista negra. Orwell simplemente comunicó a su amiga Celia Kirwan algunos nombres con los que se podía contar para determinadas actividades de denuncia del estalinismo y una lista de gente con la que no se podía contar. En su carta a Kirwan de 6 de abril de 1949 dice textualmente que le proporciona una lista de intelectuales “con los que no se podía contar para una propaganda semejante”. Hablar de delación es sencillamente una estupidez, sobre todo si se tiene en cuenta que las opiniones de esas personas eran suficientemente conocidas, que se sabe el motivo por el que hizo la relación y que nadie parece que tuviera la intención de utilizarla, ni la utilizó, para ninguna clase de represalia. Conociendo las opiniones de Orwell no es posible presentarle como un macartysta. Y el autor, no es nada inocente al utilizar la expresión lista negra.

Oviedo considera que Orwell “pese a detestar las listas negras del estalinismo” preparó una él mismo, lo que le pondría a la misma altura moral de sus enemigos. Aclarado lo de la lista, aclaremos al “experto en Orwell” que el estalinismo no fue una fábrica de listas negras sino de asesinato político, de dictaduras y de represión masiva de la población. Son sobradamente conocidos los procesos de Moscú, el Gulag y el nombre del campo de Kolima. En nuestro propio país, Andreu Nin y otros poumistas y anarquistas no fueron incluidos en ninguna lista negra sino secuestrados y asesinados".

Saudações democráticas

msp

Justiniano disse...

Caríssimo Bebiano,
O Keep the asp..., e Down and out.. são, acima de tudo, quanto a mim, para além doque bem diz, a procura pelo melhor retrato da decadencia e existencia urbana.
O que aprendemos com Orwell é que o ser desanimado, elanguescente ou acima de tudo sem esperança apenas caminha à deriva num ciclo (círculo) precário de onde por vezes se torna quase impossível escapar.
"Isto" sempre existiu, meu caro, e sempre aí esteve à nossa frente. Não é novidade que há de revelar!

Unknown disse...

Caro Miguel,
Sim, sei bem que não é a melhor fonte. Não é, sequer, uma fonte.

A observação prendia-se com a sua leitura de Orwell. Uma leitura inteiramente compatível com a quimera cozinhada por ele e pelo seu compagnon de route, Anthony Giddens - uma terceira via divorciada da história, da política, de princípios humanistas.

Era isto que queria dizer. Em todo o caso, obrigado pelo apontamento.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro lpb,
claro, tem toda a razão. Por mim, vi bem que você não estava a abonar TGA nem as suas bandas.
Só pretendi dar uma achega no mesmo sentido, em homenagem à memória de Orwell.
Se tivesse tempo, pegaria também na sua ideia de uma "decência comum", como conjunto de elementos críticos internos ao senso comum da gente comum - e em contradição com muitos outros -, elementos críticos que deveriam servir de ponto de partida para a construção, através da crítica interna das ideias feitas, de uma espécie de "economia moral" que serviria por sua vez de base a uma política igualitária instituinte, combinando a "efeiciência histórica" do passado com um projecto de democratização radical, na base da mobilização da gente comum.
Terá de ficar para outra vez…

Cordiais saudações democráticas

msp

Ana Cristina Leonardo disse...

há uns álbuns do Bilal nos anos 80 que retratam com exactidão esse mundo.