22/06/16

Capital, Estado e Nação

O Estado é uma construção do Capitalismo, pensado para assegurar a acumulação e maximizar a reprodução do Capital. A construção de Estados trans ou internacionais, como a União Europeia, resulta da (necessidade de) trans/internacionalização do Capital. Julgar que um Estado europeu, ou mundial, pode ser utilizado para “domar” ou transformar o Capitalismo é, no mínimo, ingénuo. Seria tão incapaz como o foram os Estados nacionais relativamente ao Capitalismo restrito a esse espaço. Sonhar com uma Dinamarca à escala global implica esquecer que a Dinamarca só é possível através da exploração desenfreada da maior parte da população que habita este planeta (e dos recursos que contém). Na Dinamarca, o Capital aceitou limitar a exploração no espaço nacional, desde que os cidadãos dinamarqueses fechassem os olhos à exploração que esse mesmo Capital desencadeia a nível global.

Portanto, não vivamos com ilusões. Não será através da União Europeia que conseguiremos (re-)criar um sistema político, social e económico mais justo e igualitário. Mesmo que Corbyn e clones seus assumissem o governo de todos os Estados nacionais que a compõem. De qualquer modo, tal nem seria permitido por que quem mais beneficia do sistema em que vivemos. Fomentar o conflito e a divisão no seio duma sociedade que nunca será homogénea (em particular, à escala da Europa), é sempre uma possibilidade a explorar perante a (remota) possibilidade das estruturas do Estado serem utilizadas para des-estruturar o Capitalismo. O que seria realmente extraordinário, dado que implicaria o (eventual) suicídio do próprio Estado (em particular, por via do desaparecimento de grande parte da sua justificação para existir).

A discussão à Esquerda sobre o referendo que vai ter lugar no que se refere à presença do Estado britânico na União Europeia deveria assim, na minha opinião, ter-se centrado no impacto que pode ter na perspectiva de desenvolvimento da sociedade que desejamos, necessariamente à margem dos Estados que existem. É necessário então reflectir sobre a relação entre Capitalismo, Estado e Nação. E notar que esta última é na verdade um obstáculo à trans/internacionalização do Capital, necessária à maximização da sua taxa de reprodução. Poucas vezes tal se tornou tão óbvio como na discussão que tem tido lugar a propósito do referendo sobre a presença do Estado britânico na União Europeia. Até porque este Estado tem um papel proeminente no apoio à trans/internacionalização do Capital, em particular através dos mercados financeiros sediados na City londrina. No entanto… a Nação também tem a sua utilidade para o Capitalismo, porque fornece (parte da) justificação ideológica para a existência de Estado, essencial ao funcionamento do Capitalismo, e para a expansão militar/imperial quando necessária para aceder a novos recursos materiais e energéticos (por exemplo, mão-de-obra). Mas este segundo aspecto não é relevante no estágio atual de desenvolvimento do Capitalismo. Quando se sente acossado, o que também não é o caso no presente, o Capitalismo intensifica a opressão pelo Estado para se re-afirmar, o que pode requerer a exaltação da Nação de modo a que essa opressão seja mais facilmente aceite pela população. Em resumo, o que é essencial ao Capitalismo é o Estado, a cujas estruturas é exigido acompanhar a tendência atual de trans/internacionalização do Capital. A Nação é-lhe útil, tanto mais quanto mais facilmente se adequar ao âmbito territorial do Estado. Ou seja, nesta fase de desenvolvimento do Capitalismo, a sua trans/internacionalização requer a criação de estruturas Estatais à mesma escala, o que por sua vez precisa do reforço da identidade trans/internacional. Especificamente, no caso europeu, o reforço da identidade ou Nação europeia.

Pelo o que foi dito, se o referendo que vai ter lugar sobre a presença do Estado britânico na União Europeia tiver um resultado negativo (sair), tal constituirá um golpe sério no actual processo de trans/internacionalização do Capital. Mas tal desfecho não será necessariamente benéfico para a construção dum sistema político, social e económico mais justo e igualitário. A acontecer, o sistema capitalista rapidamente tentará re-ajustar as conexões do Estado britânico ao sistema trans/internacional, havendo lugar à negociação de tratados que assegurem a inexistência de obstáculos à circulação do Capital com a União Europeia, Estados Unidos e Canadá. E poderá originar um reforço dos mecanismos de Estado ao nível da União Europeia. Ao mesmo tempo, o Estado britânico sairá mais fortalecido na sua legitimidade, podendo ser utilizado para incrementar a opressão não só sobre aqueles que não são considerados parte da Nação (nomeadamente, os imigrantes), mas também sobre aqueles que sejam vistos como passíveis de minar a autoridade do Estado. No entanto, paradoxalmente, tendo em conta o que foi dito, a saída do Estado britânico da União Europeia poderá também ter como desfecho a sua desintegração, através da subsequente criação dum Estado na região escocesa, possivelmente também no País de Gales, e eventual integração da região norte da Irlanda no Estado irlandês. O que por sua vez poderia abalar a integridade de outros Estados europeus, em particular a Espanha e a Itália. Tendo em conta a relação íntima entre Capital e Estado, um movimento de fragmentação Estatal numa época em que o Capital necessita de expandir e aprofundar o seu alcance territorial induzirá necessariamente enorme turbulência, que poderá motivar e facilitar a implementação de soluções (inicialmente) localizadas, que (re-)criem um sistema político, social e económico mais justo e igualitário. A Nação, actor secundário, no tridente Capital-Estado-Nação, acabará corroída pela des-construção do sistema Capital-Estado, ao tornar mais permeáveis territórios, e em consequência do desaparecimento de estímulos sistémicos à sua permanência.

8 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
a tua denúncia veemente do capital, do Estado e dos mitos do nacionalismo só merece aplauso. No entanto, muito à pressa, tenho a impressão de que é excessivo dizer que o Estado é uma criação do capitalismo, quando, vendo bem, foi e continua a ser um motor sine qua non do seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que a forma por excelência da organização do poder enquanto dominação de classe. Parece-me também que subestimas o alcance destrutivo — a enorme força de regressão — que, nas condições actuais, teria a desagregação da UE e a reactivação dos nacionalismos. Fundamentalmente, o que penso é que a alternativa ao Estado (assente na distinção estrutural e permanente entre governantes e governados, etc.) só pode ser a democracia (definida como cidadania governante, participação igualitária no exercício do poder e nas decisõescolectivas, etc.), do mesmo modo que é a democracia a alternativa às relações de poder (politicamente instituídas) da economia capitalista e que a alternativa ao princípio nacional só pode ser a universalização da cidadania democrática (ou governante). O mesmo é dizer que a democratização deve ser o nosso critério essencial de juízo político e que, sendo assim, teremos, a cada momento, de nos interrogar sobre as condições que são mais favoráveis à abertura dessa via e sobre as que representam para ela ameaças maiores. As liberdades e direitos, conquistados por combates seculares, que ainda limitam o poder da oligarquia governante na Europa são, sem dúvida, insuficientes. Mas a sua destruição pela recrudescência dos nacionalismos, longe de abrir novas perspectivas de democratização, serviria apenas para absolutizar o poder do Estado e as prerrogativas sobernas da economia política dominante. Em suma, é em torno destas questões que, lendo o teu post, me sinto mais em desacordo contigo, apesar de todo o aplauso que os propósitos que incialmente declaras, sem dúvida merecem.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

A questão não é se o nacionalismo é prejudicial aos objectivos que partilhamos. É-o. O que defendo é que o renascer do nacionalismo na Europa acontece em oposição à trajectória de desenvolvimento do capitalismo. E para a evolução economico-social é mais determinante a trajectória futura do capitalismo do que a maior ou menor popularidade do nacionalismo. Ou seja, julgo que o mais importante não é considerar quais os efeitos dum crescente nacionalismo no que pretendemos atingir, mas sim quais os efeitos nesses objectivos resultantes da injeção de incerteza na trajectória futura do capitalismo em resultado das tendências centrífugas nacionalistas. Tal incerteza não seria de todo benéfica para o capitalismo actual, bem como para os Estados que dele dependem (em particular, os mais integrados na economia global). Se a existência do Estado recebe legitimização do nacionalismo, como protector da Nação, a sua sobrevivência depende do sistema que lhe permite reunir os recursos de que necessita para exercer a autoridade, ou seja o capitalismo. Um colapso do capitalismo arrastará consigo o Estado, não só pela razão esplanada mas também porque deixa de ser necessária toda a parafernália de funções do Estado requeridas para manter um sistema capitalista em funcionamento. A ideologia nacionalista pouco poderá fazer perante o (eminente) colapso do Estado, à medida que o capitalismo global soçobra, senão defender ineficientes variantes do capitalismo de Estado, que pouco mais podem aspirar do que à lenta decadência e progressiva perda de legitimidade, em que o nacionalismo também se verá enredado. Enquanto isto acontece, julgo que mais tarde ou mais cedo, o desenvolvimento de sistemas políticos e económico-sociais mais localizados, mais regionais, e inter-solidários, poderia oferecer uma alternativa mais justa e igualitária, mais democrática, à desagregação conjunta do Capital, Estado e Nação, ao mesmo tempo que ajuda a sabotar os alicerces em que assentam.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Viva, Pedro.
Os pontos sobre os quais divergimos tornam-se mais claros. Não tenho tempo para desenvolver muito as questões que se levantam. No entanto, deixa-me dizer-te que a ideia de que o nacionalismo poderá ser um agente de desgaste ou auto-destruição do capitalismo, ou do modelo capitalista hoje dominante, não permite as ilações optimistas que pareces sugerir. A auto-destruição do capitalismo (substituído, no limite, por autocracias ou o poder de castas, praticando a extorsão directa ou esta ou aquela variante de esclavagismo ou outro regime de servidão) nunca poderá ser favorável à democracia ou à luta contra a dominação hierárquica e classista. O "quanto pior, melhor" é um catastrofismo, alimentado pela crença em automatismos sumários, que acaba por ser incapaz de conceber a importância da acção e conforta atitudes de irresponsabilidade e de impotência, ou de resignação e capitulação mascaradas do seu contrário. Bem sei que não é o teu propósito levar água a esses moinhos, mas boa parte do que dizes na tua resposta ao meu comentário poderá ser recuperado nesse sentido pelos defensores de soluções que tu, evidentemente, considerarias monstruosas.

Abraço

miguel

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

A auto-destruição do capitalismo é inevitável. Com auto-destruição, quero dizer que não será por um acto voluntário dum agente social, como o proletariado, mas em resultado da desintegração social e esgotamento dos recursos materiais disponíveis. Portanto, não creio ser uma questão de se, e como, mas quando. O que resultará (de positivo) dessa auto-destruição depende da criação, entretanto, de sistemas políticos e sócio-económicos, mais justos, democráticos e igualitários, que se apresentem como alternativa às populações à medida que os Estados se desintegrem em respostas às convulsões finais do capitalismo, primeiro global, depois nacional. Não é, obviamente, um desejo, mas apenas o que julgo que irá acontecer com elevada probabilidade. Como antes afirmei, neste cenário, bastante negro admito, o nacionalismo começará por ser uma reacção social aos desmandos, e limitações, do capitalismo global, acelerando a sua (auto-)destruição, para depois definhar à medida que se tornar claro às populações que também não oferece o que prometia, por mais que aposte num fortalecimento da fusão entre Capital e Estado ao nível nacional.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Mas, Pedro, como é que podes acreditar que a decomposição do capitalismo conduzirá à emancipação democrática? Os que raciocinaram assim — enfim, de modo semelhante — perante as ameaças fascista e nazi, como crises finais, às quais se seguiria necessariamente a revolução, enganaram-se e desarmaram os que lhes deram ouvidos.

Imagina uma jangada de pedra a afundar-se. Por si só, o desastre iminente não impedirá que haja quem continue a dizer que, se o comandante fosse outro ou os subordinados obedecessem mais disciplinadamente, a pedra flutuaria e que, por isso, se trata não de mudar de barco, mas de reforçar a hierarquia a bordo.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Eu não acredito que a decomposição do capitalismo dê origem, necessariamente, à emancipação democrática. É apenas uma possibilidade, que poderá se realizar em algumas regiões. Enquanto noutras o autoritarismo, am alguns casos na sua face mais negra, se instalará por tempo alargado. Re-afirmo que o que escrevi aqui não é algo que deseje. Limitei-me a descrever no post o que julgo poderão ser alguns efeitos, no curto médio-prazo, duma eventual saída do Estado britânico da União Europeia, em particular no que diz respeito ao impacto sobre o desenvolvimento de comunidades mais justas, igualitárias e democráticas. E depois no decorrer na nossa conversa, descrevi o que julgo acontecerá a mais longo prazo ao sistema capitalista, e em consequência da sua desintegração. Concordo com os marxistas no que respeita à inevitabilidade do desaparecimento do capitalismo como sistema económico dominante, mas não concordo com as causas que levarão a tal, nem com o que resultará desse colapso. O futuro pós-capitalista está cheio de incerteza, apesar de, infelizmente, prever, tal como tu, que não faltará uma enorme quantidade de miséria humana, não só devido ao colapso dos sistemas mais básicos de suporte social, como também devido à instauração de inúmeros regimes autoritários. A única maneira de minorar este terrível desfecho será começar desde já a planear e a (re-)construir sistemas políticos, sociais e económicos alternativos ao capitalismo, que permitam a sobrevivência do corpo social, e ao mesmo tempo ofereçam justiça, igualdade, e democracia a quem neles se insira. Felizmente, em inúmeras partes do planeta estes sistemas já existem, ou estão em construção. O meu receio é que não possuam massa crítica suficiente a quando do colapso capitalista, para resistir à instabilidade que daí advirá.

Abraço,

Pedro

Anónimo disse...


Olá Pedro

Não percebi a que sistemas alternativos se refere, supostamente em construção, nem em que partes do planeta se encontram, para fazer face a um previsível colapso do sistema capitalista. Importa-se de explicitar?

abraço para todo o blogue

nelson anjos

Pedro Viana disse...

Olá nelson,

Esses sistemas existem, desde aqueles que já possuem uma longa história, nomeadamente comunidades campesinas ou cooperativas, até mais recentes, a uma maior escala, como as regiões zapatistas no México ou curdas na Síria, ou menor escala, um pouco por todo mundo. Em Portugal, muitas dessas iniciativas podem ser encontradas na Rede Convergir (redeconvergir.net). A nível internacional, o portal resilience.org oferece uma visão global sobre o que está a ser feito e as discussões em curso.

Abraço,

Pedro