09/05/10

Duas ou Três Achegas ao Debate em Curso

Duas ou três observações sobre a discussão em curso entre os camaradas factual-viandantes acerca dos acontecimentos gregos, e, nomeadamente, sobre os três trabalhadores mortos pelo incêndio de uma agência bancária atingida por bombas incendiárias artseanais usadas por manifestantes que protestavam contra as medidas anti-populares que o governo de Atenas se prepara para adoptar em resposta à crise.
Se as instalações tivessem sido atingidas acidentalmente na sequência de confrontos entre a polícia ou grupos de contra-manifestantes e os elementos da manifestação, as mortes não seriam menos de lamentar, e o que haveria a fazer, por parte dos manifestantes e suas organizações, seria deplorar o acontecido e declarar que, quanto isso estivesse ao aeu alcance, tudo fariam para evitar que novos confrontos fizessem semelhantes vítimas.
Se as instalações foram deliberadamente visadas, e se os que as visaram sabiam que havia lá dentro trabalhadores, o argumento, que aparece insinuado noutros lados que não aqui no Vias, de que os três mortos eram fura-greves, e não tinham tido a coragem de desobedecer às pressões patronais que lhes impunham que continuassem a laboração na agência apesar das condições manifestamente perigosas que a manifestação acarretava, pelo que mereceram de algum modo a morte e se justificava o ataque às instalações, tudo o que podemos responder é que a mesma lógica nos obrigaria a abrir fogo e a tomar por alvo de ofensiva armada a grande maioria dos trabalhadores e membros explorados ou reprimidos da população que quotidianamente reproduzem o sistema. Mas, se a verdade é que este não sobreviveria um quarto de hora a uma acção revolucionária a que aderisse o conjunto da população, exceptuada a estreita faixa dirigente do topo, conmposta pelos verdadeiros beneficiários do regime, isso não justifica a adopção de medidas que, por meio do terror ou de outras formas de comando hierárquico, coajam os cidadãos dominados a cerrar fileiras em torno de estados-maiores ou guias doutrinários de vanguarda. E, assim, no caso de esta segunda hipótese ser a que corresponde aos factos, o que há a fazer é denunciar e combater todo o tipo de acção semelhante como anti-popular, reaccionária e cúmplice dos piores traços da ordem estabelecida. Não podemos, seja como for, adoptar perante acções do género a atitude que os altos responsáveis dos regimes que combatemos adoptam perante os abusos policiais, desculpando ou justificando os métodos de terror pelo facto de serem dirigidos "contra o capitalismo".
O "anticapitalismo" de nada vale, ou torna-se até uma mistificação monstruosa, se não for assumido como momento necessário da vontade de democracia e sua afirmação no plano das ideias como das acções - movimento que a busca e a actualiza ou pratica ao buscar a sua extensão instituinte. Pelo que gostaria de concluir, retomando o comentário, de há uns meses já, a um post do Zé Neves, e que mereceu na altura a sua aprovação, como estou certo de que a continuará a merecer, e de que merecerá também a do João Tunes, bem como a da assembleia dos factual-viandantes que por aqui vamos tentando abrir caminhos de liberdade, dando-nos nisso a nossa própria lei, e sabendo-nos responsáveis pelo que todos em comum e cada um por si próprio vamos fazendo:
O critério do “não” perante o actual estado de coisas é insuficiente. Não basta odiarmos as ditaduras ou as oligarquias liberais do capitalismo actual e do seu Estado. Teremos de propor desde o primeiro momento que a politização da revolta e do mal-estar, das frustrações e dos descontentamentos, se faça em termos que sejam já expressões “ideológicas” e “organizativas” de democratização radical e de autonomia. Uma revolução que não seja a extensão e radicalização das liberdades democráticas e da cidadania activa (tendencialmente governante) poderá levar ao derrubamento espectacular de um governo, mas não passará de uma reciclagem da dominação, eventualmente regressiva.

10 comentários:

João Tunes disse...

Subscrevo, é claro.

Zé Neves disse...

Miguel,

Subscrevo, claro, embora acrescentando isto. De modo algum defenderei alguma vez a lógica do "objectivamente" amigo porque inimigo do meu amigo. Nisto estamos de acordo. Tal lógica tem a montante uma concepção de poder demasiado rígida, em que o poder é identificado como estando "ali", no PAlácio de Inverno ou no Pentágono, e por isso oculta as relações de poder que presidem a todo o tipo de relações (dominantes ou contra-dominantes) e a necessidade de lutar por democracia&autonomia em todas essas esferas. Isto é: não derrubaremos um primeiro-ministro apoiando um líder da oposição (reformista ou revolucionária), mas colocando em causa o primeiro-ministro concerto e a própria figura de um primeiro-ministro.
Neste sentido, continuo a concordar com o teu comentário aquele meu post. Eu apenas não diferencio o "negativo" do "positivo" de modo tão claro como tu fazes, mas esta é uma outra discussão (que não tem que ver com o que escrevi no parágrafo anterior, porque para mim como para ti há "negativos" que não são "negativos", são "positivos" semelhantes aos "positivos" que queremos derrubar; simplificando tudo isto muitíssimo, é claro).

Agora é preciso ter noção de uma coisa. Não podemos falar da Grécia a partir "de fora". E é isso que sucede muitas vezes. A facilidade com que o Daniel, o João e outras pessoas condenam quem atirou uns cocktail molotov parece-me possível apenas se estivermos a falar "de fora". E não tanto por causa do desconhecimento ou conhecimento da situação, mas porque "de fora" é possível manter a ilusão do que deve e não deve. Eu sei que pareço o Zizek a falar, mas há um fundo de verdade na idiotice que ele diz e que é idiotice porque ele tende a muitas vezes a não diferenciar o tipo de problemas que está a colocar (se está a dizer que não há revolução sem violência significa que não há sovietes sem estaline e sem polícia e sem Estado, então bradamerda para ele; mas se está a dizer (e muitas vezes não está, de facto) que não há sovietes sem confrontos violentos e sem que daí resultem mortos, muitas vezes em condições imprevisíveis (o que não dispensa que se procure a prevenção, como tu escreves no teu post), então parece-me que não poderei discordar dele.

"De fora" (embora admita que não saiba bem como podemos falar "de dentro") é fácil dizer que ser solidário com a luta do povo grego implica apoiar o empréstimo à Grécia, como sustentam o Daniel e, parece-me, o João. Mas "de dentro" a coisa pode não ser assim tão clara.

Um debate similar (apesar das diferenças, bem sei) pode ser tido em relação à entrada da Turquia na UE. Seremos favoráveis porque preferimos (eu prefiro) o capitalismo global ao capitalismo nacional (simplificando muitíssimo, de novo) e porque quero estar contra os discursos ocidentalistas e catolicistas em torno da UE. Mas quando o PCP diz que é contra (dizia, pelo menos, creio eu), aí pode estar presente muita coisa com que não concordo, mas está também presente a noção de que aceitar a Turquia na UE seria de algum modo caucionar a situação política na Turquia em relação a minorias e afins. Por isso, no meu post anterior, referia: o que é improtante, para mim, é que a atitude de PCP e BE não tenha sido tomada "isoladamente", em nome do que ambos achem ser o melhor (o mais solidário) com a luta do povo grego. Mas que haja canais mínimos de comunicação com instâncias gregas (é para isso que os partidos tem relaçãoes com partidos de outros lados) e que permitem produzir uma posição mais ou menos "colectiva".

abç

Miguel Serras Pereira disse...

Caros João e Zé,
muito bem, acho que é uma discussão que vale a promovermos, porque é possível que nos venhamos a confrontar com uma situação semelhante à que a Grécia conhece. E a mim importa-me saber como e com quem e em que bases tentar assumir a revolta, o descontentamento, e por aí fora - em vista da democratização mais extensa e profunda e também em vista de evitar o pior: a explosão que resulta no reforço da dominação, no agravamento das condições presentes.
Isto, dito deficientemente, em tese geral. E, por agora, por aqui me fico.

Forte abraço para ambos

miguel (sp)

Anónimo disse...

Caro MS Pereira: A tua apologética de cidadania governante não corre o risco de cair nos solavancos do relativismo historicista- embora muito sofisticado e com uma tónica ética quase ilimitada? Não estás de acordo,conforme sublinha Castoriadis, que a história pode ser surpresa mas,hoje, nos regimes de oligarquia liberal a " democracia actual é tudo o que se quizer salvo uma democracia, porque a esfera pública/pública é, de facto, privada, é possuída pela oligarquia política, e não pertence ao corpo político". Não surge aí, nesse espaço controlado, uma impossibilidade que implica/incita à violência revolucionária e seus sucedâneos? Niet

NG disse...

Caríssimo Miguel,

Ainda não consegui perceber o que chama de "democratização mais extensa e profunda" ou "democratização radical e de autonomia".

É o governo por consulta popular on-line? É a velha e de má memória colectivização dos meios de produção e consequente abolição da propriedade privada? É o quê afinal?

Miguel Serras Pereira disse...

Mau caro Nuno,
como escrevi num post recente aqui publicado, a democratização e extensão da democracia, na esfera económica, "não é a substituição dos proprietários ou companhias privadas pelo Estado e seus especialistas, técnicos ou capatazes de serviço, mas a sua gestão cooperativa e democrática pelo conjunto organizado dos interessados. E é, antes e depois desta transformação radical, a subordinação dos valores económicos e a destruição do primado da economia através do exercício político do poder pela cidadania governante [assegurando] a desmercantilização ou 'deseconomização' correspondente da força de trabalho … . A subordinação da economia radicalmente democratizada ao poder político do auto-governo dos cidadãos e a destruição do seu primado intervêm aqui como garantindo a liberdade de criação de novos valores, usos e costumes, na dimensão informal da existência colectiva da 'multidão', bem como nas condições de existência de cada um dos seus membros".
Espero que isto ajude pelo menos a definir o que está em discussão. Continuaremos depois mais facilmente a conversa.
Cordial abraço

miguel

Anónimo disse...

Caro MS. Pereira: Se bem o entendo, quando falas de " transformação radical "e de " destruição do primado da economia ", em prol " da democratização e extensão da democracia "; estás implicitamente a admitir o recurso a formas de violência revolucionária contra o Estado-Molloch que, e é aqui o ponto para mim essencial, repousa na violência e autoritarismo insofismáveis dos próceres da oligarquia-burocrática dominante( e quase supra-partidária, segundo C. Castoriadis)? Concordas ou não? A questão é, supinamente, avassaladora e " moral ", no sentido gramatical/perfomativo empregue por Noam Chomsky.Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
é evidente que concordo com as citações que me recordas, e creio que isso estava patente tanto neste post, como no anterior que escrevi sobre a exigência revolucionária da democracia, redobrada pela exigência democrática da revolução (distinguindo este da simples explosão, protesto mais ou menos violento - porque a "paixão" e a "reacção"explosiva ao "padecer" que a caracteriza não são ainda "acção" nem se confundem por si sós com a "vontade de autonomia" em acção.
Uma autonomia democrática que exclua à partida o recurso à violência, ao uso da força, e a aceitação da luta de morte, não me convence, nem me pareça aposta suficientemente séria do ponto de vista político.
O que tentei foi dar duas ou três achegas que nos passam ajudar na formação de critérios que, por sua vez, sejam utilizáveis pelo juízo político - sem se substituirem à especificidade das circunstâncias que o exigem em casa caso -, quando se trata de decidir, para agir em conformidade, da legitimidade democrático-revolucionária desta ou daquela forma de uso da força.
Em que condições gerais é "revolucionária" uma acção violenta e que tipo de acção? A esta pergunta, direia que, nos termos do Zé Neves, no seu recente post sobre violência e democracia, só podemos responder que: " a violência aceitável é a violência que não suspende a exigência de democracia". Não nos dispensando de improvisar nem de nos continuarmos a interrogar durante a acção, este critério diz-nos bastantes coisas à partida. Diz-nos, por exemplo, no caso da manifestação grega que temos vindo a discutir, que o incêndio deliberado de uma agência bancária com gente lá dentro (no caso de ter sido isso que se passou), sabota politicamente a acção democrática que a manifestação encarna e que actos semelhantes devem ser condenados à partida e combatidos ou prevenidos pela auto-organização dos manifestantes noutras ocasiões.
Obrigado por me teres permitido esclarecer um pouco melhor o propósito do meu post.

Abraço igualitário

miguel

Anónimo disse...

Caro MS Pereira: O texto que mais declinei- e há as fabulosas recorrências permanentes no " trabalho " de C. Castoriadis -foi o " Qual Democracia ?", CL.VI.Só não o citei expressamente para evitar(mos) fazer o trabalho de casa para...!Sabes que combato nas margens do ilimitado, neste país inspirado por Hegel,Nietzsche e Adorno... E usei um outro texto de feroz crítica a Alain Badiou, feito por mão-de-mestre(a),a radical libertária S.Denieul...E sabes que existe na órbita do neo-marxismo sofisticado uma estrela brasileira da filosofia,Da Costa, que inventou o conceito de negação paraconsistente, que permite que as percepções contraditórias, desde que se relacionem com uma verdade, possam coexistir sem interromper a unidade dessa verdade...Salut et égalité. Niet

Anónimo disse...

MS Perira: Adenda- O grande filósofo e matemático brasileiro de fama mundial chama-se(nome completo) Newton Carneiro Affonso da Costa.Salut! Niet