13/05/10
O muito, o pouco e o nada
por
João Tunes
Fui aqui invocado pelo Miguel Serras Pereira como sendo seu irmão em convicções, o que só me honra e ajuda a dormir melhor (talvez a menor idade do MSP não lhe permita alcançar o valor vital deste benefício). Mas sendo um facto, o das evidentes e evidenciadas coincidências no pensar a política, não deixo de notar, aqui com direito a agradecimento, que MSP deixou cair a meu propósito, julgo que com a bonomia propícia aos consensos necessários a uma esquerda demasiado dividida, que não abdico de inscrever o meu ímpeto de radicalidade no quadro, talvez para ele demasiado estreito, da transformação reformista ilimitada. Ou seja, menchevique confessado, sou igualmente radical na negação do recurso golpista ou revolucionário a utilizar por qualquer pretensa vanguarda, mesmo a que tivesse como programa a sociedade de iguais e diferentes que imagino como ideal, excepto relativamente a situações de ditadura (única situação que legitima a violência como parteira da história). O que pressupõe que qualquer movimento e transformação não podem atalhar, antes pelo contrário, a legitimidade de escolhas assente no princípio de que todas estas só podem ser aferidas pela aplicação do princípio “um homem, um voto”.
Mas o texto de MSP versa sobretudo a candidatura de Manuel Alegre. E aqui surgem as diferenças, naturais entre um apoiante (eu, embora muito menos ortodoxo e disciplinado que a Joana Lopes, essa sim, uma apoiante a sério, porque munida das defesas tácticas da boa militante) e um eleitor pensador e expectante (o MSP). A meu ver, esta diferença só tem interesse em ser assinalada se puder ajudar a desfazer equívocos, incluindo os proporcionados pela espiral da exigência. Se bem percebi, para o MSP, apoiar um candidato (no caso, numa eleição uninominal para a Presidência da República) pressupõe uma identificação sólida entre o eleitor, ele, e o candidato, justapondo posições e plataformas políticas. Não discuto a grelha, mas não a partilho. Até porque se a utilizasse provavelmente o meu voto seria branco, uma neutralidade higiénica que me repugna muito mais que o voto útil. Julgo que é uma tragédia política termos Cavaco em Belém, a piorar se ele for reconduzido no contexto de crise capitalista internacional. Sobretudo porque inibe qualquer solução política e governamental fora do eixo direita-centro. O actual tripé Cavaco-Sócrates-Passos Coelho aí está a demonstrá-lo, sendo um mero arremedo do que sucederá com um Cavaco reeleito e com um aguçado apetite intervencionista nos sentidos do reaccionarismo cultural e de costumes e a cartilha neo-liberal como substratos, numa espécie de reciclagem marcelista democratizada. Em alternativa, com a esquerda, as esquerdas, no estado em que está, como combater e bater Cavaco? É imaginável ou expectável um candidato que agregue os revolucionários profissionais do PCP, os parlamentaristas radicais do BE e os adeptos multiformes do PS, as correntes de esquerda alternativa e inorgânica e cative ainda algum eleitorado oscilante do centro-esquerda? Manuel Alegre chegou-se. Agora, em condições diferentes das eleições anteriores. Já não será o candidato da rebeldia de protesto eleitoral que foi em chão que já deu uvas. Tem um novo desafio pela frente: assumir laços orgânicos (os apoios do BE e do PS, a isso obrigarão), com o voto PCP relegado oportunisticamente para a segunda volta, funcionar como alternativa a um Cavaco sacralizado por um mandato institucional de que beneficia pelo factor de inércia, equilibrar o seu discurso entre a prática governamental e a sensibilidade cultural e social que conflitua com esta. Os equilíbrios e as fraquezas da figura Manuel Alegre tornam-no um candidato pouco atractivo como profeta, guia ou motor da transformação política que a esquerda genuína e pura sonhava ter na presidência. Mas sem um candidato feito na Bordalo Pinheiro das Caldas, Manuel Alegre surge como alguém que pode derrotar Cavaco, desfazendo o tripé direita-centro, permitindo despertar uma nova dinâmica de cidadania e intervenção, desfazendo a forma plástica e sonolenta como no PS se vive o aprisionamento dos seus militantes e eleitores de esquerda pela direcção centro-direita. Ou seja, Manuel Alegre vale mais pelas imensas e imponderáveis possibilidades que proporciona, as que ele aspira, as a que dá corpo, mais as que o ultrapassem, que pela figura em si mesma e se entronizada em Belém. É pouco? Acho muito e necessário. Pior seria a inacção criticista de quem tudo quer e tudo continua a perder, esperando pelo Sebastião que encarnasse a utopia nas mudanças adiadas.
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8 comentários:
Caro João,
tu escreves: "sou igualmente radical na negação do recurso golpista ou revolucionário a utilizar por qualquer pretensa vanguarda, mesmo a que tivesse como programa a sociedade de iguais e diferentes que imagino como ideal, excepto relativamente a situações de ditadura ".
Até aqui, tudo bem. Escreves a seguir:
"O que pressupõe que qualquer movimento e transformação não podem atalhar, antes pelo contrário, a legitimidade de escolhas assente no princípio de que todas estas só podem ser aferidas pela aplicação do princípio 'um homem, um voto'". O acordo mantém-se, creio, no essencial: qualquer movimento de aprofundamento das liberdades já conquistadas só poderá fazer-se sendo isso mesmo, multiplicando as ocasiões, não só de voto, mas de deliberação e decisão, aos diversos níveis da realidade.
Mas isto não quer dizer que possamos excluir por princípio e em todas as circunstâncias toda a acção violenta, toda a desobediência civil, toda a iniciativa que não seja estritamente legal. Pode ser legítimo e democraticamente necessário sair para a rua contra um governo que, depois de eleito sem fraude de maior, por sufrágio universal, abusa do exercício do poder, ainda que a coberto de subterfúgios legais. O critério de "ilegitimidade de exercício" faz parte, ao mesmo título que o de "ilegitimidade de origem", do vocabulário e concepções da democracia. Pode ser legítimo fazer piquetes de greve; boicotar o trânsito; sabotar isto ou aquilo, resistir às forças policiais que, sem infracção do regulamento, humilhem cidadãos e abusem da margem interior das leis vigentes. E então, o que haverá a discutir é a questão a oportunidade e da eficácia democratizadoras dessas acções, que, todas elas, são ou podem ter de ser de um modo ou de outro violentas.
Creio que estarás de acordo. Tanto mais que devo dizer-te e a quem mais queira ouvir que o culto da violência é uma imbecilidade ou uma máscara que encobre a impotência política ou a vontade de perpetuar a dominação hierárquica. Mas já falei de mais, talvez. Passo-te de novo a palavra.
Forte abraço
miguel (sp)
Eu, «uma apoiante a sério, porque munida das defesas tácticas da boa militante»? Estás a gozar, não? :-)
Algo caricata, esta posição de reformismo ilimitado. Numa época de democracia (a nível de freguesia, câmara municipal, parlamento e parlamento europeu), o capital continua a forçar a sua ditadura no campo económico (conforme nota bem o sempre lúcido Miguel Madeira), e João Tunes ainda sonha com a maré contrária...
Camarada Miguel (SP),
Confessei-me menchevique e não deu para ver se sorriste ou baixaste as sobrancelhas. Foi uma metáfora ao nível simbólico das referências mas decerto tiveste em conta que os mencheviques apostaram forte nos sovietes, primeiro golpeados, depois atrelados e burocratizados pelos bolcheviques (foram estes que mataram o sovietismo, não os mencheviques). O princípio "um homem, um voto" que defendo não se esgota nos actos litúrgicos fundamentais das escolhas eleitorais institucionais (pilares democráticos fundamentais). Aplica-se igualmente a todas as formas, que se deviam multiplicar e florescer, de auto-organização e auto-defesa dos cidadãos. Estas são necessárias não só para dar voz aos descontentamentos face às opressões do poder, como para construir projectos piloto e alternativos, como ainda para vencer o controleirismo hegemónico das vanguardas profissionalizadas, cristalizadas, hierarquizadas e burocratizadas (e muito preenchidas por pessoas sem alternativas de sobrevivência, o que faz dos seus dirigentes e activistas seres socialmente dependentes e, assim, obrigados a obedecerem aos seus chefes, o que impede, por exemplo, termos um melhor sindicalismo e uma melhor intervenção autárquica, por causa das amarras aos herdeiros de Brejnev). E se a violência do Estado democrático extravasar para o exercício da violência contra os direitos legítimos à auto-organização e ao protesto, o exercício da auto-defesa deve assumir, se possível, uma violência equivalente na eficácia. E não sei se a última vez em que o fiz foi a última.
Ó Joana, desculpa se me enganei ao ler-te mais alegrista que o Alegre.
Pois é, João. Eu não me definiria nem como bolchevique nem como menchevique - embora acho que estamos longe de ter honrado as figuras revolucionárias como Martov, Dan, etc. Se vamos para as referências históricas, puxaria antes da Rosa e do Karl que sabes. E, depois, do POUM, dos anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários, da nossa CGT. E estou a esquecer muita gente e movimentos. Um dia destes, suponho que poderemos ter uma conversa sobre tudo isto, com gosto e proveito mútuo.
Subscrevo as tuas observações quase todas - mas não a do "Estado democrático". Entende-me bem: penso que a ideia de uma sociedade sem poder e sem instituições é um conto de fadas, ou um horizonte milenarista, que pode ser usado como instrumento ideológico muito conveniente pelos candidatos à qualidade de coriféus das piores ditaduras. Mas não penso que o poder político democrático possa assumir a forma de um Estado: a divisão hierárquica do trabalho político, a distinção permanente e estrutural entre governantes e governados, os arcana imperii, etc. Aliás, penso que entre a tua concepção de democracia, tal como a tens discutido com outros via-factuantes e comigo, e a aceitação como boa da ideia de um "Estado democrático", há uma certa contradição, ou, se me permites e se não me engano muito, um,a contradição insanável. Questões de terminologia? Talvez, mas então expliquemo-nos melhor e tentemos acertar agulhas a pouco e pouco.
Aquilo a que chamo "cidadania governante" implica órgãos de poder, um espaço público de deliberação e decisão formais, leis e gestão da violência legítima. Uma república, se quiseres, mas não um Estado: onde o Estado começa o espaço público democrático acaba e, numa democracia, é este espaço público não-profissional, igualitário, livre e responsável, a única sede de poder político admissível. O cidadão é, dizia Aristóteles, aquele que governa ao ser governado. Não há democracia sem igualdade no acesso à participação nas decisões, mas onde há esta igualdade - e isonomia e isegoria - não há Estado. Ou, sejamos realistas, vai deixando de haver, na medida exactaa em que esta igualdade, não só perante a lei, mas no fazer da lei, se expanda e institua.
Podia continuar, mas acho que já pus a bola suficientemente dentro do teu campo para ser a minha vez de te escutar.
Vigoroso abraço republicano
miguel (sp)
Camarada Miguel (SP),
Alinhavadas as exposições mútuas das nossas diferenças e divergências, que viva este blogue plural.
Abraço.
Viva o blogue plural, mais o camarada João Tunes e todo o resto da malta. E trema a terra, que daqui ninguém arreda.
Viandante abraço
miguel (sp)
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