14/05/10

Um caminho estreito


O Ricardo tem razão. O fio condutor que une os acontecimentos que caracterizam a nossa época é a instabilidade. Do que resulta a incerteza e a angústia perante o que o nevoeiro nos poderá revelar. Poucos se atreverão a contemplá-lo com esperança. E na ausência desta, a cólera torna-se o único motor da revolta. O desfecho torna-se então inevitável: o Poder acabará nas mãos dos que não hesitam em utilizar a espada no meio da cegueira generalizada. Eles sabem que a violência alimenta a cólera, induz a cegueira que lhes permite actuar impunes, e acelera a revolta que os levará ao Poder.

A Esquerda precisa pois de actuar de modo inteligente. Sim, precisamos duma revolta. Mas não de qualquer revolta. Do meio de ruínas nunca surgiu uma sociedade que alguém de Esquerda possa considerar justa. Como o Miguel Serras Pereira tem defendido, a igualdade no exercício do Poder, nas suas múltiplas vertentes, é o que distingue a Esquerda da Direita. E a igualdade é um bem extremamente perecível quando a violência cresce em espiral.

São possíveis revoluções onde a violência está, praticamente, ausente, e que por isso possuem potencial para originar redistribuições significativas e permanentes de Poder. Um exemplo foi a revolução que ocorreu em Portugal no dia 25 de Abril de 1974. No entanto, como antes defendi, tais revoluções só são possíveis quando a esperança se sobrepõe à cólera. Infelizmente, não creio que tal condição seja hoje prevalente no mundo, e em particular na Europa. O caminho é, assim, estreito. Temos de abanar o actual sistema de distribuição de Poder, para nele abrir fendas, através das quais seja possivel construir um novo edifício enquanto o antigo se desmonra. Mas com suficiente cuidado para que o edifício antigo não nos caia em cima enquanto tentamos construir o novo. De outro modo fica tudo em ruínas. No meio das quais a luta pela sobrevivência pouco espaço deixará para a justiça e a igualdade.

Precisamos pois de articular a destruição com a criação, mas com inteligência. E, na época em que vivemos, isso passa por evitar a aparente simplicidade da revolução, recusando ao mesmo tempo a mera reforma da fachada do edifício do Poder. Precisamos de reformas revolucionárias, capazes de criar uma dinâmica igualitária irreversível. O que a meu ver requer a devolução do poder decisório aos cidadãos, através da criação, num primeira fase, de mecanismos como júris de cidadãos com efectivo poder de decisão, que progressivamente evoluiríam para assembleias permanentes.

Comecei a concordar com o Ricardo, e acabo a discordar dele. Não acho que o nosso futuro dependa mais do que está a acontecer na Grécia do que possa ocorrer aqui. Interpreto o facto de sermos afectados pelo que se passa na Grécia não como uma evidência da inutilidade da acção local, mas sim como prova de que o que acontece localmente pode ter consequências globais.

7 comentários:

Unknown disse...

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS&id=425521

Para suscitar cólera, repugnância e revolta, basta isto. Estas corporações declaram guerra à economia portuguesa e ao aparelho produtivo.

É uma elite de poder sedenta de sangue. Já passaram à fase do delírio autofágico. E, neste Maelstrom, todos nós estamos envolvidos.

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Pedro - será opondo-se à ofensiva e tentativas de reforço antidemocrático das oligarquias governantes (através daquilo a que chamamos o "governo" no sentido habitual e através do poder efectiva mas dissimuladamente político da direcção da economia) que o conjunto dos cidadãos descobrirá a força que lhe permitirá empreender a instituição de formas de exercício do seu próprio poder, assentes na extensão da organização democrática da sua oposição às medidas oligárquicas. O que, como Rosa Luxemburgo bem sabia, implica o aprofundamento, restituição de conteúdo efectivo às liberdades e direitos existentes, e a sua activação igualitária, e não a sua supressão ou sacrifício à eficácia militar ou administrativa de novas hierarquias candidatas à sucessão. Se os nossos propósitos são diferentes, digamo-lo em termos simples, isso significa que os modos de lutar e de nos organizarmos, os nossos critérios de eficácia e governo próprios, terão de ser também diferentes - sob pena de nos limitarmos a reciclar a exploração classista e oligárquica. É de alargar a capacidade de controle político de um espaço público igualitário e democrático, construído através da participação activa dos cidadãos, que se trata, e não de reforçar os aparelhos de direcção burocrática que aqui se trata. Deixar a democracia, a auto-organização dos cidadãos, para depois da luta, suspendendo-a entretanto, e sacrificando-a à lógica dos estados-maiores, é a maneira mais segura de contribuirmos à partida para a sua derrota.
Abraço solidário

miguel (sp)

Pedro Viana disse...

Concordo, Miguel, com tudo o que dizes. Sei, no entanto, que diferimos no como. É que acho não ser possível a instituição duma democracia realmente participativa e igualitária como resultado duma revolução, em particular nos tempos de desânimo que correm, através da qual o edifício de Poder existente, o Estado, é desmantelado para *depois* instituir tal democracia radical a que aspiramos. A democracia igualitária, de onde estão ausentes relações de poder e subserviência, será um sistema inerentemente instável enquanto não se "entranhar". Porque para que funcione sem ter de enfrentar desafios permanentes, necessitará duma mudança fundamental nas estruturas sócio-culturais que se tornaram dominantes no mundo nos últimos milénios. A democracia radical não se conseguirá instituir, mas apenas construir. É por isso que acho que a existência de Estado, entendido como uma instituição que assegura a estabilidade e coordena a "vida colectiva", mas controlado através de mecanismos de democracia directa e participativa, é essencial para assegurar a longevidade de qualquer experiência de democracia radical. Honestamente, não sei se alguma vez deixará de ser necessário.

Anónimo disse...

" Não existe hoje classe social privilegiada do ponto de vista de um projecto político ". C. Castoriadis,1999.

Meus caros, P.Viana e MS. Pereira: Em menos de três meses, a produção teórica/planfeletária do Blogue tem sido surpreendente.Continuou-se, com outra endurence, o " trabalho " semeado durante a " comuna do Cinco Dias ": crítica do Leninismo- bolchevique standard, largas referências ao Conselhismo e à Crítica da Burocracia, aprofundamento da imensa herança " autonomista " de Castoriadis, afloramento da " biopolítica " da Multitude traçada por Negri/Hardt, larga expressão à crítica do estatismo e controlo ideológico do Marxismo por via de incursões reiteradas no legado de Bakounine e Voline, Broué e Lefort. Ora bem, urge aprofundar e alargar essa tarefa, multiplicar as leituras e comentários e apontar alternativas ao círculo infernal do " salmigondis "( expressão de C.C., claro), flutuante, oportunista e inoperante a médio prazo da falta de uma verdadeira luta ideológica . Por exemplo, ontem li num texto do MS.Pereira falar de Dan e Martov. Hoje pela matina lá estava eu com o Broué e o Voline à procura da gesta impoluta e heterodoxa deles. O mesmo se passa sobre a " narrativa " fascinante acerca da criação dos Sovietes, que surgiram como opção táctica de grande impacto pela mão dos mencheviques em 1905( e Trostki foi-o inicialmente), testemunho sucessivamente apurado,estilizado, rectificado e planificado até ao fim heróico da Comuna de Cronstad," obra " da responsabilidade dos bolcheviques, que se aproveitaram dos erros e omissões dos anarco-sindicalistas, dos maximalistas, dos socialistas revolucionários de esquerda, dos mencheviques e dos anónimos sindicalistas. Portanto, é nesse combate teórico monumental que se deve instituir uma nova forma de fazer e pensar a política, como António Franco Alexandre indica num poema do seu primeiro livro- "A Distância "-(...) erguer o olhar e
acolher contra os lábios esta serenidade
da violência aceite e desejada na
certeza de aves muito junto ao céu
de sermos juntos o
mar dentro das pedras
de sermos um amplo
rio vertical
e de ser claro enfim o
mistério da voz quando adormece
e ser presente o canto
e o tempo de amanhã só adiado ".
Salut et égalité. Niet

Anónimo disse...

Errata: É panfletária, claro. Gralha simples.
E a citação do Castoriadis é de 1996, do livro que reproduz as entrevistas em que participou numa emissão de 6 de Julho de 1996 na France Culture. O livro é que foi publicado em 1999, tendo C. Castoriadis falecido a 26 de Dezembro de 1997. Fica tudo rectificado, a tempo e horas. Niet

Ricardo Noronha disse...

Penso que não discordamos Pedro. Eu disse que o que se passa nas RUAS de Atenas é mais importante do que aquilo que se passa nos GABINETES em Portugal.
Não para sermos espectadores atentos do que se passa lá longe, mas para sublinhar a minha identificação com as lutas ali em curso. Qualquer coisa como «a minha pátria são os lutadores do mundo inteiro». Ou então, numa formulação que me agrada muito mais, «proletários de todo o mundo, uni-vos!».
Aquele abraço.

Pedro Viana disse...

Tens razão, Ricardo, não interpretei bem o que escreveste. Desenvolvendo sobre o que afirmei, acho que devemos ver, compreender e extrair lições das experiências de contestação ao actual sistema de Poder que se multiplicam pelo mundo. Mas, não devemos ficar expectantes, nem esperar, talvez nem desejar, qualquer tioo de coordenação contestária global, principalmente se tender a esvaziar a iniciativa e a experimentação local e regional.