Seguem-se alguns excertos de um texto de Jean-Luc Nancy publcado no Libération que me parece resumir bem as razões que tornam inaceitável a opção liminar e por princípio da não-intervenção na Líbia. Um aspecto fundamental para que o artigo nos chama a atenção é o seguinte: não podemos ficar de fora, porque não estamos de fora; porque a questão é também interna às nossas sociedades; porque a "não-ingerência" é falsa à partida, uma vez que "a própria Líbia, a Arábia Saudita ou a Síria, já sem falar da China e da Rússia" fazem parte do "Ocidente"; porque, enfim — e estas palavras evocarão para alguns o "estilo" de Orwell —, "é o que queremos viver, e como o queremos, que está em jogo". E, assim, digamos que a Líbia é também aqui.
Os povos árabes estão a assinalar-nos que a resistência e a revolta comparecem de novo, e que a história avança para além da História.
(…)
Entretanto, outros Estados atacam com força os seus próprios revoltosos, por vezes com a ajuda de um poderoso vizinho árabe. Os insurrectos de Benghazi pedem auxílio: este não é simples, acarreta riscos evidentes, tanto de ordem prática como política. Medir e enfrentar este género de circunstâncias releva da responsabilidade política. Será o momento melhor para se invocarem, por atacado, os riscos colaterais e as suspeitas perante os interesses (mais ou menos) escondidos, os princípios de não-ingerência e a pesada culpabilidade de um "Ocidente", do qual nos perguntamos, com efeito, se não farão parte a própria Líbia, a Arábia Saudita ou a Síria, já sem falar da China e da Rússia?
(…)
Portanto, sim, é necessário controlar estritamente os ataques destinados a bloquear o sinistro assassino de um povo, mas, sim, é necessário atacá-lo - a ele, sem dúvida, e não ao povo. Não podemos invocar com uma das mãos a soberania que, com a outra, esvaziamos de substância e de legitimidade por todas as interconexões — as melhores como as piores — do mundo mundializado. Ao povo em causa e a todos os outros, a todos os nossos, compete fazer em seguida com que outros ou os mesmos não recomecem o jogo petrolífero, financeiro, dos armamentos, que instalara e mantivera no poder esse fantoche, ente muitos outros. Aos povos, sim: e é, evidentemente, a nós, povos da Europa ou da América, que isto se aplica.
(…)
[Porque] é o que queremos viver, e como o queremos, que está em jogo, com uma acuidade a que não estávamos acostumados. Eis o que os povos árabes estão também a assinalar-nos.
29/03/11
Jean-Luc Nancy: na Líbia, é também "o que queremos viver, e como o queremos, que está em jogo"
por
Miguel Serras Pereira
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8 comentários:
Agora é que vai ser o bom e o bonito: quem se arrisca a discutir esta ética supra-histórica e mundializante ,pela qual, J-L.Nancy, esse hegeliano sem freio(s)nos interpela e sidera lançando-nos no inferno do hasard transcendental?!? Aceitam-se candidatos! Por outro lado, de concreto, existem hoje declarações muito " negativas" do ministro da Defesa belga,Dieter de Crem, apontando para uma " operação longa "; e, o mais importante, não exclui uma invasão terrestre- mas sem tropas belgas, nem dos EUA. Niet
Supra-histórica e acósmica, restauradora de uma doutrina da Verdade revelada, será a filosofia de um Alain Badiou, se quiseres.
Mas, deixando de parte as genealogias filosóficas, o teu tiro sai completamente ao lado e a tua posição acaba por oscilar entre o niilismo e a escatologia messiânica. O que, em ambos os casos, tem a paralisia da vontade e da acção por efeito imediato e também último.
O vento não basta - é preciso fazer vela. Não deste ainda por isso?
msp
MS.Pereira: Tudo isto é, meu caro, muito complexo, exigindo uma discussão aberta e plural. Não estás, por acaso, a esquecer os efeitos da estruturação da luta de classes-marcada por uma divisão assimétrica e antagónica-que introduz modificações profundas tanto nos momentos imaginários como nos momentos reais da " situação social "? À suivre. Niet
Caro MSP
Sou leitor assíduo dos teus posts sobre a intervenção na Líbia. Infelizmente a maioria da esquerda está um pouco cega pelo dogmatismo anti-imperialista.
Não seremos ingénuos ao ponto de considerar a intervenção desinteressada, mas não somos capazes de ver os revolucionários serem esmagados pelos tanques de Gadafi,
Um abraço solidário
José Moreira
Caro José Moreira,
os insultos e as insistências no dever de paralisia a pretexto da complexidade da questão dos espectadores superiormente informados e que se pretendem especialistas da engenharia da história têm sido tantos e tão baixos que o teu abraço tem um valor especial e é um acto de coragem lúcida.
Registo e retribuo calorosamente
msp
Ainda agora, caro MS.Pereira, pensei isto, acredita: com o programa revelado ontem no The Guardian pelo Conselho Nacional Líbio,e os relatos fabulosos de minúcia de Andrew Levine e Vijay Prashd- no Counterpunch- sobre os contornos do estado-maior
dos revoltosos- os inenarráveis Jalil/ Jibril/ Mesmari e Hifter- onde não se sabe onde vence a manipulação da CIA ou a da DGSE sarkoziana...; dei comigo, pois, a pensar:será possível que o " purista " greco-latino MS Pereira, um homem de todas as lutas e de todos os combates leais e anti-estalinianos, aposte no campo desses energúmenos prontos para o pior? Niet
Niet,
a resposta está no texto do Jean-Luc Nancy.
msp
MS.Pereira: Não achas que partilhas, involuntariamente, da posse e instrumentalização de uma premissa desigualitária da sobredeterminação do pensar filosófico- que Arendt e Rancière denunciam contra as teorias do estatismo positivista da filosofia política de L. Strauss - em vez de, pelo contrário, tentares " olhar e abordar a política com os olhos puros de toda a filosofia ",tentando,como se insinua em Arendt, sentir e racionalizar o heroismo das grandes revoluções modernas,ligado nomeadamente, o da revolução de Junho de 1848 ou o da Comuna de Paris de 1871? Por outro lado, não tinhas traçado um clara linha de demarcação ao formulares que a ajuda militar lato sensu aos " rebeldes " não devia ser orquestrada/patrocinada/materializada pela NATO? São questões que coloco, desejando, desde a primeira hora, que nela participem todos os espíritos de boa vontade, claro. Salut! Niet
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