19/03/11

O fetiche da fronteira

Neste post, o Sérgio Lavos tenta responder a esta minha interpelação. Concedeu que na presença de dois auto-intitulados governos num dado território, como no actual conflito na Líbia, o facto de um deles convidar à intervenção de terceiros pode legitimar essa intervenção, desde que esta se resuma a uma atitude meramente defensiva. No entanto, o Sérgio Lavos continua a defender que soberania e fronteira são conceitos que merecem respeito. Ou seja, que porque alguém, algures, desenhou uma linha no mapa e afirmou que tal constituia uma fronteira, no interior da qual havia soberania, qualquer outra pessoa, independentemente das consequências para si ou para outros, nomeadamente no interior da fronteira, passaria a ter de respeitar a vontade do desenhador de fronteiras. Mas não existem fronteiras. Existem locais onde dizem que há fronteiras. E mesmo que um povo não consiga erguer-se perante quem o oprime, não consiga criar nem sequer uma ténue alternativa de governo, ele merece a nossa ajuda, através da fronteira, em violação da soberania. Uma única pessoa oprimida justifica a violação de qualquer fronteira ou soberania. Não podem, não devem ser desculpas para a inacção.

Mais três questões: a invasão do Iraque não foi injustificada porque o Iraque é um território soberano, mas sim porque não havia na altura um número de vidas em risco suficientemente elevado para justificar uma acção que iria inevitavelmente levar à morte de muitos milhares, mas uma acção militar de natureza defensiva já teria sido justificada quando Saddam andava a gasear curdos; acharia deveras estranho alguém que se considera de Esquerda e ao mesmo tempo acha a propriedade como algo inviolável, e sim, soberania e propriedade são conceitos quase sinónimos; finalmente, o efectivo é muito importante na expressão - "efectivo apoio à matança com que Khadafi se tem deliciado" - que utilizei, porque não falta quem se afirme contra o regime de Kadhafi mas depois tome, conscientemente ou não, posições que se concretizadas redundariam efectivamente num reforço desse regime.

P.S. Aproveito para chamar a atenção para este excelente post do Bruno Sena Martins.

6 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Pedro, ninguém pode compreender que, enquanto Kadhafi invoca Franco e ameaça o seu povo com o inferno, o pesadelo e a repressão mais impiedosa, certos porta-vozes oficiosos, militantes ou simpatizantes declarados de um partido que proclama a todo o momento o seu apego à liberdade, à democracia e à solidariedade internacionalista, digam que qualquer intervenção, ainda que mandatada pelas Nações Unidas, que se destine a intervir a chacina é um atentado ao direito dos povos à independência nacional e que nada há fazer senão deixar Kadhafi bombardear o que é dele.

Um dos exemplos mais impressionantes é o do assíduo comentador Leo, que frequenta quotidianamente as caixas de comentários do 5dias, e cujas intervenções consistem, por uma metade, em abundantes citações de resoluções, tomadas de posição ou documentos estatutários do PCP, e, pela outra metade, em glosas devotas e radicalizações por conta própria das mesmas. Pois o Leo - sem que os seus correligionários aparentemente se incomodem por aí além com a coisa - consegue escrever isto:

"O que existe na Líbia é um conflito interno que internamente deve ser resolvido. Um grave conflito, mas interno.
E sim, a Líbia tem um governo e as suas instituições foram atacadas por grupos armados. Obviamente que compete ao governo do país a reposição da ordem pública.
(…)
Uma vez que um grupo pegue em armas contra o seu governo essas pessoas deixam de ser “manifestantes” e passam a ser combatentes, terroristas, anarquistas, seja o que for que lhe quiser chamar.
Isto não é modo de actuar. Isto viola as leis internacionais, a começar pela Carta da ONU. Em qualquer Estado de direito se alguém se arroga o direito de pegar em armas e começar a atacar as instituições obviamente que esse Estado riposta e repõe a ordem!
E goste ou não goste, a Líbia é um Estado de direito. Os seus governantes têm o direito de não ceder a vândalos desordeiros que semearam o terror durante um mês" (http://5dias.net/2011/03/17/conselho-de-seguranca-da-onu-aprova-agressao-a-libia-com-o-patrocinio-do-be/comment-page-1/#comment-173510).

É no que dá declarar uma "agressão à Líbia" qualquer intervenção em apoio dos revoltosos, sem considerar uma "agressão à Líbia" a guerra movida por Kadhafi contra o seu próprio povo - como faz a Nota do Gabinete de Imprensa do PCP, intitulada
"PCP condena agressão à Líbia e apela à mobilização pela paz", de 18 de Março de 2011, que o Leo, de resto, também cita na íntegra na caixa de comentários de um outro post (http://5dias.net/2011/03/18/o-imperialismo-e-a-imposicao-pela-forca-das-armas-de-quem-sao-os-bons-e-maus-ditadores-ja-ninguem-acredita-na-tanga-humanitaria/#comments).

Abraço solidário

miguel (sp)

Luis Rainha disse...

Oh pá, é no que dá andar desatento. Não reparei que já tinhas dado pelos delírios desta criatura...

Anónimo disse...

Apoiando a invasão

Cada vez mais isto aqui é uma agremiação a favor das «vias de facto». Apoiar as políticas dos grupos dominantes norte-americanos e europeus é o que não esperava de gente que se diz «autónoma» «crítica» «independente».
Nesta história da globalização agora é vale tudo: em nome da «liberdade» e dos «direitos humanos»...Será que também já vão fazer campanha a favor da libertação da Arábia Saudita, da Coreia do Norte e da China? Ou aí a porca torce o rabo?
Será que a plebe tem de tomar partido nas guerras das elites? Será que temos de ser os bobos da corte abrindo o caminho aos militares da NATO?
Não podemos tão só lutar contra a dominação e a opressão onde se manifeste mas com propostas próprias, e autónomas, em relação à lógica dos donos do Poder?

Pedro Viana disse...

Caro anónimo, em primeiro lugar aqui ninguém apoia qualquer invasão. Suponho que sabe que invasão pressupõe a utilização de tropas terrestres, algo que não foi proposto nem aqui defendido.

Em segundo lugar, o que os "grupos dominantes norte-americanos e europeus" teriam gostado é que ninguém se tivesse dado ao trabalho de se revoltar contra o respectivo tirano. Em particular, Kadhafi, que se tinha tornado extremamente cooperante com tudo o que é país "ocidental", incluindo Portugal. De tal maneira que a maior parte do petróleo líbio era controlado por empresas ocidentais, como a ENI italiana. Os países ocidentais apenas reagiram por pressão das suas opiniões públicas, e com receio de se tornarem ainda mais odiados pela juventude árabe sedenta de mudança, que veriam a inacção ocidental como uma traição.

Em terceiro lugar, ter um pensamento autónomo, crítico e independente, quer dizer exactamente isso: que se analisa cada situação tendo em conta as suas características particulares, admitindo diferentes respostas em situações distintas. É o contrário de lançar da boca para fora sempre a mesma cassete, neste caso do imperialista-mau-tão-mau-que-pior-não-existe.

Em quarto lugar, sim, apoio a "libertação da Arábia Saudita, da Coreia do Norte e da China". Não através duma intervenção militar, seja de que natureza fosse, acima de tudo porque nesses locais o ditador-em-residência não está presentemente a massacrar o povo que oprime. E, obviamente, mesmo que tal estivesse a acontecer, um aintervençao militar só seria defensável se o número de mortos dela resultante não se suspeitasse vir a ser em muito superior ao número de vítimas dos massacres em curso.

"Será que a plebe tem de tomar partido nas guerras das elites?"

Mas vê alguma elite entre os revolucionários líbios? Ou esqueceu-se deles? Paracem-me plebe genuína...

"Será que temos de ser os bobos da corte abrindo o caminho aos militares da NATO?"

Eu teria preferido outro caminho, de solidariedade internacional por parte de movimentos progressistas. Por exemplo, que Chavez tivesse enviado armas defensivas para os rebeldes. Mas em vez disso preferiu apoiar o seu "amigo anti-imperialista Kadhafi". Assim se vê quem é bobo... bobos não são quem coloca a sua vida em perigo na luta contra a opressão, e como resultado aceita qualquer apoio que lhe permita sobreviver e manter viva a esperança da revolução.

"Não podemos tão só lutar contra a dominação e a opressão onde se manifeste mas com propostas próprias, e autónomas, em relação à lógica dos donos do Poder?"

Tudo bem, claro. Mas exactamente o que é que tem em mente no caso do conflito líbio? Que nos reunamos para estudar essas propostas, e para a semana dizemos aos rebeldes como os vamos ajudar? Não me parece má ideia, mas temo os problemas de comunicação que teríamos ao tentar contactar os rebeldes debaixo de sete palmos de terra...

Miguel Serras Pereira disse...

Pedro, não podias dizer melhor.
Grande abraço

miguel (sp)

Niet disse...

Existem muitas contradições no ar das especulações postas na resposta ao anónimo das 2o.48. Em primeiro lugar, a intervenção demorou muito tempo a ser deliberada. O que vai- quase pela certa - implicar a intervenção de tropas no terreno. O que agrava políticamente a jogada- e sabe-se já quem "deliberou"-iniciativa tricotada em forcing final pelos USA na ONU- com o interesse seguidista/eleitoralista de Sarkozy e a fidelidade "canina " de Cameron. Quem viu ontem a CNN, de certo, ficou estupefacto com o arbitrário, a precipitação e o "enrascanço " do almirante do Pentágono na primeira conferência de Imprensa... E a grande manipulação posta em acto pela cadeia. Com efeito, ninguém assume prazos e, com o tempo real perdido, os bombardeamentos vão ser ultra sangrentos, com as consequências políticas inerentes de alta gravidade para o Mundo, em geral, e a tensão explosiva que se vive no Médio Oriente. Há alta preocupação com o facto da opinião pública árabe se estar a, supersonicamente,polarizar e radicalizar. Com a Argélia a " torcer " por Khadaffi, e o Egipto e a Arábia Saudita a fornecerem ajuda aos revoltosos. Quer a OUA, quer a anunciada participação da F.Aérea do Qatar, entre outras,falharam ao rendez-vous. E parece, tudo o leva a crer, que a NATO está implicada no assalto.Obama parece ter sido " forçado " pelo clan Clinton- que domina o aparelho de Estado USA- a enviar os misséis de cruzeiro.Niet