27/03/11

Rony Brauman sobre a Líbia

Considerando que, na Líbia, a "exclusão aérea" deu lugar a uma guerra e a uma série de bombardeamentos "convencionais", Rony Brauman, numa entrevista publicada em português pelo esquerda.net, procede a algumas distinções importantes, acentuando que a condenação da execução do mandato das Nações Unidas — pelo menos, tal como está a ser interpretado, acrescentaria eu —, não implica que devamos cruzar os braços, desistindo de impor aos governos da UE que apoiem a luta contra Kadhafi. Como diria o Pedro Viana, a margem de acção é estreita, mas existe e pode ter um peso decisivo.

Entre a guerra e o statu quo há uma margem de acção: o reconhecimento do Conselho Nacional (órgão político dos rebeldes) por parte da França foi um gesto político relevante. É preciso continuar a apoiar militarmente a insurreição, fornecer-lhe armamento e assessoria militar para reequilibrar a relação de forças no terreno, assim como fornecer informação sobre os movimentos e os preparativos das tropas inimigas. O embargo comercial, o embargo de armas e o congelamento dos activos do clã Kadafi são outras medidas de pressão em relação às quais o regime de Trípoli não pode permanecer insensível.

Aqui, é importante notar que nem os deputados portugueses do BE, Miguel Portas, Marisa Matias e o independente Rui Tavares, nem eu próprio nos diferentes posts que escrevi sobre o assunto, escrevemos que uma intervenção em defesa dos insurrectos deveria ser o tipo de intervenção criticado por Braunam: quando muito, e no que se refere à "exclusão aérea", adiantámos que, a ser levada a cabo, deveria limitar-se a ser isso mesmo e não assumir a feição de um conflito "clássico". Pelo meu lado, tal como Rony Brauman insisti desde o início na necessidade de, não nos resignando à "Europa realmente existente", reivindicarmos o reconhecimento dos organismos provisórios coordenadores da revolta e o apoio militar, como a "aliados", aos resistentes que se batem contra Kadhafi. Daí, a insistência que pus em distinguir entre uma intervenção dos governos da UE — intervenção arrancada a ferros às oligarquias europeias — e uma operação da NATO, bem como na exclusão de soluções que implicassem a ocupação e administração da Líbia por forças estrangeiras. Ou retomando a conclusão de um post de há dias:

1. Que o apoio aos insurrectos líbios não exceda o mandato das Nações Unidas e sirva efectivamente para os ajudar a abreviarem os dias da ditadura na Líbia — escapando às perspectivas de entrada no país de forças terrestres de interposição ou (co-)administração "provisória". Assim, uma vez garantida a no fly zone, a intervenção internacional deve limitar-se a manter a vigilância, abstendo-se de outras acções de combate. O que não obsta a que nós, aqui, devamos continuar a exigir dos governos da UE e da própria UE que apoie o campo dos insurrectos na guerra civil em curso (meios logísticos, armamento, assistência médica e sanitária, etc.).

2. Que o "governo transitório" da resistência a Kadhafi assuma uma identidade mais clara e apresente o seu programa mínimo, comprometendo-se com a garantia das liberdades e direitos fundamentais. Este aspecto é, de resto, fundamentalmente urgente para viabilizar as pressões sobre a UE no sentido de um apoio "aliado", e que não se lhes substitua, aos que lutam contra Kadhafi .

11 comentários:

Niet disse...

MS.Pereira, oh, meu caro: O R.Brauman acha que os bombardeamentos são uma ilusão tecnológica... E no site que o Vias tem do "Counterpunch", Vijay Prashad, jura que " nada de bom vai sair da intervenção na Líbia..." Texto fortissimo traduzido também no Esquerda.Net. Por outro lado, David Lindorff, blogger associado do Washington Post, revela que os bombardeamentos na Líbia estão a usar munições com urânio- para furar tanques e abrigos...- que fazem muito mal à população.Entretanto, como era previsivel desde o inicio, a NATO anunciou hoje ao Mundo que tomava conta das operações! A Contra-espionagem russa diz que- se Kadaffi " resistir "- deve ocorrer uma invasão de tropas da coligação NATO em finais de Abril, princípios de Maio. As únicas pessoas que juram pela idoneidade dos lideres do Conselho Nacional provisório líbio, são o Sarkozy e o B-H.Levy, que os encontrou em Banghazi há uns dias...Niet

Anónimo disse...

Ou os neo-conservadores não radicassem, nas origens mais remotas, a sua doutrina em Trotsky.

Mea Culpa Mea Maxima Culpa Miserere Dominus Meo disse...

que quando o regime cair

seja em semanas ou meses

as multidões desavindas se unam

e surjam messias

os projécteis com penetradores cinéticos são de urânio devido à densidade

são do armamento convencional
ficará radiação residual mínima tal como nos balcãs

e tal como com karzai

também haverá problemas com a futura divisão de despojos

e as multidões armadas não vão ajudar muito

na estabilidae do ou dos países formados com a queda do regime

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Niet - de acordo, e então? O Rony Brauman tem ou não razão no que diz, independentemente das intrigas das cortes contra as quais se bate?
Eu acho que sim, que tem razão, sobre esta e muitas outras questões, e que a lucidez política e democrática de que aqui dá provas - como noutros casos - pode ser muito útil neste debate.
Bom vento!

msp

Incógnito disse...

Lamento dizer mas se os nossos bloggers críticos do Vias de Facto - nem todos, é certo - não conseguem ver o óbvio, e não se mostram capazes de - perdoem-me a expressão - «engolir muito do que escreveram» sobre a tão celebrada «zona de exclusão aérea», então isso é muito mal sinal. Revela tiques que me dispensava de adjectivar.

E se a juventude de um Rui Tavares pode explicar muita coisa, a experiência e maturidade do Miguel Serras Pereira deveria permitir-lhe lucidez e clarividência crítica sobre as dinâmicas em desenvolvimento da actual ordem internacional


Mais a mais sabe-se que as operações aéreas já tinham sido planeadas antecipadamente, com a escolha de alvos seleccionados, o que desmente integralmente a propaganda que as operações visariam proteger os civis da ofensiva governamental.

Para quem ainda se recusa a ler a realidade, deixo o link para a notícia da revista Visão:

http://clix.visao.pt/rebeldes-avancam-com-apoio-da-nato=f596295

Rebeldes avançam com apoio da NATO

Caças franceses atacaram vários veículos blindados do exército leal ao líder líbio, Muammar Kadhaf. Enquanto isso, os rebeldes líbios tomaram a importante cidade produtora de petróleo de Brega, numa operação em que tiveram o apoio dos aviões de combate da NATO que estão na Líbia.

Niet disse...

MS.Pereira: Justamente,meu caro, o mandato das Nações Unidas tem muita água turva no seu conteúdo, inclusivé, dizem os especialistas de Direito Internacional,favorece uma invasão territorial pela ambiguidade e extensão textual- jurídica e política,claro- das suas prerrogativas ondulantes...Outra das questões, que toma inesperado volume no contexto do conflito- esta-se a falar de guerra civil ou de retaliação politico-militar estrangeira?- prende-se com o valor estratégico das reservas de hidrocarbonetos que possui a Líbia. Parece dispiciendo mas,no interior de um cartel mundial feroz e "totalitário" como é esse,o " caso líbio " toma vulto e parece ter muito valor.E há o facto político de ser o elo mais " fraco " de uma cadeia de produtores situado numa zona vital com 75 por cento das reservas mundiais. Se se pensar, sem peias nem melodramas, que a China tem projectos de investimento a rondar os 120 biliões de dólares para modernizar todo o sistema de extracção e refinamento do " ouro negro " iraniano, confrontamo-nos, frontalmente, com a delicadeza e importância vital de todo o complexo problema exposto no confronto Líbia/NATO. Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Viriato,

sempre defendi que deviamos pressionar o apoio dos governos da UE aos insurrectos, como iniciativa independente, à margem da NATO, não recusando o apoio das Nações Unidas, mas avançando eventualmente sem ele, como a urgência das circunstâncias tornava necessário.

Logo no início dos acontecimentos, escrevi: "é por impor aos governos uma redefinição das posições e políticas da UE no que se refere à região do Mediterrâneo que devemos lutar, lutando ao mesmo tempo por uma Europa que exista de outro modo — em vez de nos limitarmos a reivindicar a inacção da "Europa realmente existente" e a continuação, a título de mal menor ou sabe-se lá de quê, da inexistência da UE" (http://viasfacto.blogspot.com/2011/02/contra-resignacao-europa-realmente.html).
Tratava-se - e continua a tratar-se -, como escrevi pouco depois, de "saber quem apoiamos e de tirar daí as devidas consequências. Exigir, por exemplo, dos governos de Portugal e da UE que reconheçam uma coligação provisória dos revoltosos e intervenham, de acordo com eles, em seu apoio. Não ficando à espera das Nações Unidas, embora cedendo-lhes o lugar e a coordenação logo que possível. Desfazendo uma parte do mal que fizeram. Sendo obrigados a mudar de rumo e alianças. Exigi-lo por solidariedade com os revoltosos e também movidos pelo interesse próprio que ponhamos na democratização da UE, no desenvolvimento das capacidades políticas dos cidadãos que somos, assumindo a nossa força, organizando-a e impondo o seu reconhecimento. É intolerável que, à política de mau pagador e de cumplicidade com Kadhafi da UE no que se refere ao povo líbio, se suceda agora o lavar das mãos da não-ingerência, pintada de respeito pelo direito à "independência nacional" — verniz com que os seus governos, acolitados pelos "anti-imperialistas" interessados ou idiotas úteis de serviço, tentam dissimular o sangue que, de mistura com o petróleo, lhes encharca as mãos" (http://viasfacto.blogspot.com/2011/03/nao-abandonar-revolta-libia-contra.html).
Mais tarde - perante a internacionalização explícita do problema - deixei claro que a "exclusão aérea" a apoiar deveria fazer-se nos termos em que a evocavam Miguel Portas e Marisa Matias, que essa "solução" não deveria impedir-nos de reivindicar uma intervenção autónoma (que defini quase palavra por palavra nos termos em que agora se exprime R.B.) e que a NATO não deveria chefiar as operações, ao mesmo tempo que mostrava que o embargo da "Líbia" era um contra-senso ou, na alternativa, uma medida cínica destinada a inflectir nos interesses das oligarquias o "processo de mudança" e o afastamento de Kadhafi.
Podia multiplicar as citações dos posts e comentários em que deixei clara a minha posição, que é, no essencial, solidária da Brauman. É preciso que a dupla oposição que assumamos - contra Kadhafi, contra os governos oligárquicos globalmente dominantes - não se traduza em paralisia, e dê lugar a propostas e pressões democráticas que as veiculem - exprimam alternativas tanto em relação à situação líbia como à "resignação à Europa realmente existente".

Saudações democráticas

msp

Niet disse...

MS.Pereira: Uma achega importante para aprofundares a tua posição humanista. A U.E. e as Nações Unidas têm como " braço militar " essencial a NATO.Cada vez mais estilizado e refinado. Até por razões de capitais interesses geopolíticos, muitos deles inconfessáveis e tabus.A guerra de afrontamento partilha da lógica intrinseca da Mundialização,meu caro. Como sublinhou o Baudrillard, "os discursos e as morais oficiais despareceram ", e, o que é o pior," a discriminação e a exclusão não sãouma consequência acidental,constituem a lógica essencial da mundialização ". Como é fácil de ver.E sabes que a NATO já está em guerra no Afeganistão, directamente, e no Iraque, sob a capa de uma força multinacional integrando a maioria militar de países fundadores da Aliança Atlântica. E por que se arrasta essa situação, meu caro? As posições humanistas e pacifistas do Brauman colidem com um ponto delicado: mais de um milhão de mortos já custou a invasão do Iraque! Niet

Pedro Viana disse...

"Mais a mais sabe-se que as operações aéreas já tinham sido planeadas antecipadamente, com a escolha de alvos seleccionados, o que desmente integralmente a propaganda que as operações visariam proteger os civis da ofensiva governamental."

Antecipadamente relativamente a quê? Ao momento da intervenção? Sabe há quanto tempo é que se andava a discutir uma zona de exclusão aérea? Acha que os responsáveis por implementar tal deviam ser suficientemente estúpidos para começarem a planear apenas após obterem autorização? E as operações aéreas protegeram ou não os civis prestes a serem massacrados em Benghazi? Sim, ou não? Custa-lhe responder? Onde é que está a sua capacidade crítica?

Sim, os rebeldes têm aproveitado os ataques aéreos para avançar. Ataques esses feitos esticando ao limite a interpretação da resolução da ONU. Preferia que os rebeldes avançassem pelos seus próprios meios. Mas não possuem o armamento necessário, e ainda não os conseguiram. E por isso fazem bem em aproveitar a convergência do seu interesse com o interesse de terceiros: acabar o mais rapidamente possível com o conflito na Líbia, fazendo desaparecer a opressão exercida por Kadhafi sobre os líbios.

Quanto à entrevista de Brauman, a dada altura afirma algo a propósito do conflito no Ruanda que acho arrepiante: "Teria sido melhor aceitar a violência daquele momento do que congelar, por um período necessariamente limitado, a relação de forças." A qual revela o cúmulo da arrogância do intelectual, que na sua arrogância se acha capaz de prever com tanta precisão o futuro, que está preparado para deixar que outros (sempre outros...) sejam sacrificados no presente.

Zuruspa disse...

Bem, se o Sarkozy jura pela sua idoniedade, já sabemos a cambada de facínoras que seräo!

O Roxo bem diz!

Incógnito disse...

Ao ler o arrazoado do Pedro Viana fiquei com a sensação de estar a ouvir mais uma arenga do deputado Ricardo Gonçalves.
Não sabia que o Vias de facto era tão bem frequentado. Por isso, lembrei-me desta citação:

«Quand un imbécile fait une action dont il a honte, il prétend toujours que c'est par devoir.» Bernard Shaw