01/11/10

Re: Semântica do trabalho

Em resposta/comentário a mim e a Nuno Ramos de Almeida, Filipe Moura escreve:
Para o comunista, assim, o trabalho será algo que se destina principalmente ao bem comum, e só depois deste viria eventualmente o trabalho destinado ao indivíduo, em contraste com o autonomista, para quem deveria sempre prevalecer o trabalho destinado ao indivíduo, algo "que fazemos porque gostamos", usando as palavras do Miguel. Se isto for mesmo assim, gostaria de saber quem limpa as retretes dos autonomistas. Será que o autonomista gosta de limpar retretes (deve ser único no mundo)? Ou será que quem lhas limpa é a empregada doméstica? Fico curioso.
Em primeiro lugar, a dicotomia que o Filipe faz entre trabalho destinado ao bem comum vs. trabalho destinado ao individuo/"que fazemos porque gostamos" não faz grande sentido: ao que parece, ele está tratando as dimensões "trabalho destinado ao bem comum vs. trabalho destinado ao individuo" e "trabalho que fazemos porque temos que fazer vs. trabalho que fazemos porque gostamos" como a sendo a mesma dimensão, quando me parecem largamente ortogonais (pode haver "trabalho destinado ao bem comum e feito porque gostamos de o fazer", "trabalho destinado ao bem comum e feito porque temos que o fazer", "trabalho destinado ao individuo e feito porque gostamos de o fazer" e "trabalho destinado ao individuo e feito porque temos que o fazer").

Mas, mais importante, com o seu exemplo da limpeza das retretes, o Filipe acaba por por também em causa também o marxismo ortodoxo, que sempre defendeu ideias como a superação da escassez, ou a substituição do "reino da necessidade" pelo "reino da liberdade". É verdade que tal pode ser visto em termos de aproximação assimptótica (estilo "haverá sempre alguma «necessidade», mas cada vez menos") mas o mesmo pode ser dito, p.ex., para os "situacionistas" - veja-se Raoul Vaneigen em "Da Greve Selvagem à Autogestão Generalizada": .-
61. Não é certo, contudo que todos os trabalhos difíceis sejam imediatamente suprimidos. É preciso, por, velar para que:

a) que sejam de curta duração

b) que sejam reservados para os que têm prazer em fazé-los

c) que sejam automatizados prioritariamente
Parece-me que a posição do Filipe é que o ponto b) é irrealista para alguma profissões, mas de qualquer forma o conjunto da passagem parece indicar que Vaneigen também não acreditava na abolição total e imediata dos trabalhos difíceis.

7 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente resposta, caro camarada Miguel M

Uma achega só: creio que podemos pensar o triunfo da liberdade sobre o reino da necessidade, antecipando não a sumária abolição da necessidade - que tem na economia, produção, gestão, distribuição tanto de bens de consumo como de equipamentos, etc., um dos seus nomes maiores -, mas a sua conjugação pela liberdade colectiva e individual que corresponde ao pleno exercício da cidadania democrática (autonomia).
Castoriadis indica lucidamente como encarar o problema:

"Numa sociedade autónoma, é necessário que exista um verdadeiro mercado, e não só liberdade, mas também 'soberania' do consumidor: cabe aos consumidores decidirem que bens específicos devem ser produzidos para consumo, e isso or meio desse voto quotidiano que são as suas compras, valendo cada voto o mesmo que o de cada um dos outros. Hoje, o voto de um grande financeiro (…) vale um milhão de vezes mais do que o voto do americano médio. (…) Mas são necessárias decisões de ordem geral sobre, pelo menos, dois pontos: a distribuição do produto nacional, ou do rendimento nacional, entre consumo e investimento, e a parte respectiva, no consumo global, do consumo privado e do consumo público (…) Sobre estes pontos, será necessária uma decisão colectiva. Serão necessárias propostas e debates, e que as consequências das decisões sejam claras aos olhos de todos (…) Tem de poder dizer-se qualquer coisa como: se vocês decidirem que é necessário tal nível de investimento, eis os níveis de consumo aproximativos com que poderão contar ao longo dos próximos anos. Se querem investir mais, terão de consumir menos. Mas talvez possam consumir mais daqui a cinco anos (…) Todas estas alternativas deverão ser postas claramente, e não podem ser resolvidas em termos razoáveis devido ao simples funcionamento das forças do mercado (…) Mas não aceito a ideia daqueles que, como Habermas, pensam que, a partir do momento em que se tem um sistema, é preciso aceitar um certo tipo de alienação ou de heteronomia (…)". (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva, Lisboa, 90 Graus, 2006, pp. 261-263).

Abraço

miguel sp

Anónimo disse...

O Filipe Moura que me desculpe, mas o que vou dizer não tem qualquer intuito ofensivo. O exemplo das retretes (embora eu perceba o que ele quer dizer) não tem qualquer cabimento.

Porquê? Porque o trabalho de limpar retretes não tem que existir. Explico: na sanha sanitária do nosso mundo moderno, inventou-se o WC e, com ele, a necessidade de limpar o WC. Ora, o WC destina-se a eliminar um subproduto das digestões que é um precioso elemento de fertilização dos campos. De onde que haja muito boa gente a congeminar formas de recuperar tais subprodutos para os campos, como adubo. Desde as retretes secas até às sofisticadas redes de reciclagem urbana dos dejectos humanos e animais para produção de fertilizantes e energia. O que era um «trabalho difícil» [eu diria antes «chato»] poderá passar a ser um interessante objecto de investigação e acção produtiva.

Quero dizer com isto que não se podem analisar estes problemas isoladamente, duma forma, digamos, ligeira. Há que inseri-los na nossa história como seres vivos e sociais.

Por outro lado, no texto do Vaneigen há uma passagem que dá que pensar: « É preciso, pois, velar para que: […] c) que sejam automatizados [os trabalhos chatos] prioritariamente».

Numa palavra: aí está a promessa de que o trabalho será, à la longue, automatizado, e, assim, suprimido, a começar pelo trabalho chato. O futuro é um gajo porreiro: como não está aqui para se defender, a gente pode responsabilizá-lo por tudo. E pô-lo a fazer aquilo de que a nossa imaginação sem freios se lembre. O futuro, pois, que suprima o trabalho e, pronto, já está suprimido! Embrulhe-se, passemos à questão seguinte.

Ora, não é assim tão simples. E aqui é que a IS estava também imbuída de um cientismo fácil que assimilava o socialismo com o fim do reino da necessidade e o princípio do reino da liberdade, entendendo-se por isto o fim de *todos* os constrangimentos: o ser humano libertar-se-ia, pura e simplesmente, porque escaparia às leis da natureza, dominando-as a elas (leis) e a ela (natureza). O proletário passaria a ser ser-humano pela abolição do trabalho, realizada esta, por sua vez, pela automatização do trabalho.

Será preciso lembrar a quantidade de energia – vulgo petróleo – necessária para se chegar a tal estádio? Não me vou estender muito neste aspecto. Só queria concluir dizendo que a liberdade é um conceito político, e, portanto, social, e, portanto, colectivo. O socialismo ou o comunismo ou a sociedade da autonomia, como quiserem, precisa de um quadro colectivo de liberdade e só nesse quadro eu posso ser livre, o eu pode ser livre. Assim como não abolirá as dores de cabeça, o socialismo, ou o comunismo, ou a sociedade da autonomia, como quiserem, não abolirá *todos* os constrangimentos. Bem basta que permita abolir a expropriação da vontade colectiva pelo interesse privado, restituindo aos indivíduos a possibilidade de determinarem em conjunto a repartição das tarefas chatas.

Manuel Resende

Miguel Serras Pereira disse...

Nem mais, certeiro e sempre intrépido Manuel Resende.
É justamente o que eu também penso sobre a democratização do trabalho e da economia. E da natureza de criação/instituição social e histórica, colectiva, desse indivíduo livre de mudar e decidir, de participar na definição das leis que o governam, a que chamamos cidadão.

Solidário abraço democrático

miguel (sp)

Niet disse...

Castoriadis analisa a vossa pública questão-Realidade Económica e Formas Jurídicas- através de um texto com demarcações nítidas da argumentação formulada por Engels, Trotski e Lénine, texto que data de 1949.O interessante da cena é que estas notas que cito de Castoriadis vão ao encontro dos problemas levantados, quer por Filipe Moura, quer pelo M. Madeira, por um lado, e aos de MS. Pereira e Manuel Resende.Ora vamos tentar ser pedagógicos, citando com o máximo dos cuidados. Depois de frisar que, analisando a questão- O que é a Propriedade?-de Proudhon por Marx, o autor de " O Capital"induzia taxativamente uma análise geral das Relações de Produção; e, de apontar que Engels preconizava uma " expressão sistemática " entre o Direito e a conjuntura económica e que o preço do seu sucesso é a" evanescência crescente da fidelidade do reflexo das relações económicas"...; Castoriadis insiste: " O fundo da questão reside no que se pode chamar a dupla função do Direito e de toda a Superestrutura. O Direito como toda a forma ideológica numa Sociedade de Exploração, joga quer o papel de forma adequada da realidade, quer o de forma mistificadora. Forma adequada da realidade para a classe dominante, de que exprime os interesses históricos e sociais,não passa de um instrumento de mistificação para o resto da sociedade.(...) De cada vez que se acelera o desenvolvimento da economia e da civilização, mais a função essencial do Direito se torna em não reflectir mas, justamente,em esconder/iludir/disfarçar a realidade económica e social. Lembremo-nos da hipocrisia das Constituições burguesas comparada com a sinceridade de Luís XIV proclamando: " O Estado, sou eu! ".(...) o Direito é a expressão abstracta da Realidade Social. Exprime-a, o que significa que, mesmo sob as formas mais mistificadoras,guarda uma relação com a realidade; pelo menos,no sentido que deve tornar possível o funcionamento social no interesse da classe dominante". Mas, e aqui, Castoriadis cita a Crítica do Programa de Gotha de K. Marx," como expressão abstracta, o Direito, representa ineluctavelmente uma expressão falsa, porque no plano social toda a abstracção que não é conhecida como tal é uma mistificação ". Outras questões enunciadas mereciam mais alguma dissecação analítica amigável e fraterna. Por exemplo, sobre Raoul Vaneigem e os autonomistas - Castoriadis ou Pannkoek?- que são citados; mas importa, para já, dizer que Debord se afastou de Vaneigem por achar que ele era " nulo", o que tinha escrito,obviamente; e Castoriadis e Pannkoek acabaram por ter a herança marxista como disputa política exacerbada.Liberté et égalité. Niet

Miguel Madeira disse...

"O proletário passaria a ser ser-humano pela abolição do trabalho, realizada esta, por sua vez, pela automatização do trabalho.

Será preciso lembrar a quantidade de energia – vulgo petróleo – necessária para se chegar a tal estádio?"

A realidade parece indicar o contrário - os países em que a produtividade do trabalho (ou seja, a automação) é mais elevada são também, em regra, os que consomem menos energia por unidade de produto.

[Sim, é verdade que esses países são os que consomem mais energia; mas isso é porque produzem mais, não porque a sua tecnologia seja especialmente consumidora de energia - se os EUA ou a França usassem a sua tecnologia para produzirem ao nível da Índia, consumiriam muito menos energia do que a Índia consome]

Anónimo disse...

M.Madeira quanto ao seu último comentário gostaria de relembrá-lo que: um prédio no país de primeiro mundo x onde trabalhem y engenheiros que consome z de electricidade e factura w milhões, enquanto a fábrica na Índia tem 100y trabalhadores sem qualificações a ganhar uma miséria, consome 1000z para produzir os mesmos w milhões. (pense só na electricidade que consomem um motor!). Por isso, a utilização do indicador intensidade energética deve ser usado com muito cuidado.
(E nesse indicador Portugal fica mais uma vez na cauda da Europa.)

Anónimo disse...

Caríssimo Miguel Madeira:

Com essa é que me deixou desbulhoado. De facto, os países chamados desenvolvidos reduziram significativamente a sua intensidade energética medida pelo PIB. Mas que mede o PIB? O PIB considera um dólar ganho por um advogado ou pelos serviços financeiros igual a um dólar ganho por uma indústria siderúrgica. Ora, os países desenvolvidos exportaram grande parte da sua produção material (isto é, dos seus anteriores gastos de energia) para os países emergentes (a propósito, a China é o recordista do mundo da redução da intensidade energética; hoje em dia está ao nível da Europa, sensivelmente) e expandiram consideravelmente sectores como as finanças.

Mais: os países desenvolvidos exportaram as suas indústrias mais devoradoras de energia para o sul.

Assim, é fácil.

(Não quer dizer que não tivesse havido uma melhoria do rendimento energético em muitos sectores, quer na produção, quer noutros, nomeadamente no sector habitacional ou nos transportes).

Mas o problema não é esse. O problema é que uma automação completa da produção, que é a "utopia" tecnológica para abolir o trabalho significaria uma mutação maior da sociedade e dos gastos energéticos. Para resumir: a quantidade de calorias para manter viva a população continuaria praticamente inalterada; mas uma fracção significativa dessas calorias hoje é investida no trabalho, pelo que teria de ser suprida pelas máquinas, o que implicaria um aumento significativo do consumo energético.

Ora, já como estamos põem-se delicados problemas de abastecimento, quanto mais com essa mutação!

Claro que não acredito nisso, nem acredito na "utopia" tecnológica por muitas outras razões - a energia foi apenas o argumento mais simples (simplista?) que me veio à cabeça.

Manuel Resende