08/03/11

Sapere aude

Dificilmente alguém tão sucintamente diria tão bem como José Vítor Malheiros, nestes passos da sua crónica de hoje, a urgência da velha divisa Sapere aude e da sua exortação a que ousemos saber — ousemos saber  que e o que sabemos. Do mesmo modo, dificilmente alguém poderia enunciar tão ágil e claramente as razões e condições gerais da autonomia democrática — ou seja, da acção que a visa e à míngua da qual, para o dizermos com Alexandre O'Neill, "perfilados de medo agradecemos / o medo que nos salva da loucura", ou "já vivemos tão juntos e tão sós / que da vida perdemos o sentido":

Hoje, vivemos um momento inédito na nossa civilização. Pela primeira vez desde que se inventou o progresso, não vemos razões para acreditar que os nossos filhos vão viver melhor do que nós ou num mundo melhor do que o nosso, com mais bem-estar, mais paz e mais liberdade. E os nossos filhos também não vêem.

Sabemos que esse mundo é possível, sabemos que há ferramentas que permitem construir esse mundo, descobrimos aqui e ali pequenos exemplos desse mundo, sabemos como se faz, conhecemos inúmeras armadilhas que podemos evitar, sabemos como a guerra é destruidora, sabemos como a liberdade é preciosa, ensinámos milhões a sonhar e a criar, produzimos suficientes alimentos para acabar com a fome e suficientes medicamentos para salvar as vidas de milhões. Sabemos como se produzem bens e como se inventa, temos muito boas ideias sobre a melhor forma de organizar uma empresa, uma aldeia ou uma escola, sabemos que a liberdade de expressão e de reunião não só fazem bem à alma como geram as melhores soluções, como nos ensinou John Stuart Mill. Percebemos o que quer dizer liberdade, igualdade e fraternidade. Inventámos as mais fantásticas tecnologias e até nos sabemos organizar sem chefes.

E, apesar de tudo isso, vemos as desigualdades aumentarem, o espaço da cidadania encolher, os privilégios das oligarquias reforçarem-se, o apelido valer mais que a competência, a corrupção instalar-se, a justiça desviar os olhos dos poderosos e pôr na cadeia o autor de um graffito, um diploma passado ao domingo valer mais do que um passado à segunda-feira, os salários a diminuírem e os lucros dos bancos a engrossarem, os prejuízos nacionalizados e os lucros privatizados, o desemprego a subir e os salários dos jotas a crescer, a Segurança Social a pagar pensões de miséria a uns e várias pensões de luxo a outros - tudo enquanto nos louvam as vantagens da flexibilidade laboral, do despedimento fácil, nos explicam que os salários portugueses estão demasiado altos, que os nossos call centers têm o melhor nível de escolaridade do mundo, que as manifestações só se devem fazer no Norte de África, que a democracia prejudica a produtividade e que os direitos dos trabalhadores são a razão do nosso atraso.

1 comentários:

rui disse...

é o paradoxo em que vivemos. e que é necessário questionar. daí a falar em "primeira vez" que os jovens têm perspectivas piores, é um enorme passo só possível de dar depois de esquecer a história do século XX (e fiquemos por aí). Por outro lado, se se admite que ontem (antes do precipitar da crise global) se atingiu "o pico" das expectativas ( e eu até nem discordo muito disso, particularmente se falarmos em grande parte da "decadente europa"(um outro cliché que anda no ar, pelo menos desde que "a europa" torceu o nariz- pelas suas razões mais ou menos obscuras ou respeitáveis, não interessa ao caso - ao aventureirismo militar do início de século XXI americano))... está-se a ver as ilações que se podem tirar...