22/07/15

Era uma vez, ...


...uma manhã muito cedo, numa sala de espera de um aeroporto do sul. Eu procurava um jornal do dia. A menina da loja propôs-me o único que tinha acabado de chegar. Uma coisa com o nome de Jornal de Negócios. Como é que eu posso ler um jornal com aquele nome? E não é que, na primeira página do pasquim, uma foto me atrai a atenção? A Mariana Mortágua em entrevista! Comprei! E li as duas ou três páginas da entrevista, com umas púdicas fotos glamour da deputada da extrema-esquerda à mistura. A Mariana Mortágua é uma mulher inteligente. Diz muitas coisas justas, bem ditas, fala dos bancos, da fusão entre o sistema financeiro e o mundo político. Enfim, fala do único país no mundo onde, apesar de Fátima, o espírito santo foi à falência! Ela fala pouco de capitalismo, provavelmente para não molestar os clientes do Negócio que são alérgicos a palavras feias, explica que não há que se fixar no Salgado, que não é uma questão de indivíduos, que o problema é o sistema. Tenho de reconhecer que, no pequeno país, palavras destas são raras e trazem um ar fresco agradável. No fim da leitura fica uma ideia central na qual a Mariana Mortágua acredita. A possibilidade de controlar o sistema, o mundo do lucro, de o regular, de o tornar mais justo e mais humano. Um erro que pode ser comprovado pelo movimento da História e a evolução das sociedades. O capitalismo não pode ser regulado, é um sistema desequilibrado, instável, violento. Tal é a sua dinâmica e ele nunca poderá vir a ser um sistema humano. Podemos recusá-lo, lutar contra ele e, em situações históricas particulares, participar da sua subversão. A única força que podemos pretender controlar é a da nossa própria actividade colectiva contra o sistema. A partir daí outros possíveis se abrirão. Mas acreditar que um grupo, um partido, pode influenciar as forças complexas e potentes do capitalismo afim de modificar a sua natureza, é uma ilusão voluntarista, que se paga caro. Não há volta a dar e acaba por ser o sistema que dá a volta aos que entram nas instituições com ilusões. Como observamos hoje na Grécia. E se aqui ao lado ainda há dúvidas é justamente porque o motor de Podemos é ainda alimentado, e em parte controlado, pela energia e pela dinâmica de um movimento colectivo que revindica princípios horizontais e de democracia de base.
Mas porque razão, com que objectivo, a Mariana Mortágua anda a falar com esta gente dos negócios ? Obviamente, são as necessidades da política que o explicam, a necessidade de ser reconhecida por eles como alguém de sério e responsável, provar que possui os atributos que o famigerado sistema exige para fazer política no quadro que é imposto e que ela e os seus amigos aceitam. Há também a necessidade de justificar o seu trabalho de política junto dos seus eleitores. E, do outro lado da mesa, porque razão os homens dos negócios se interessam pela Mariana Mortágua? Diria eu que, paradoxalmente, também eles partilham esta mesma ideia da utopia invertida, de um bom capitalismo, justo. O que ela diz acaba por lhes servir de boa consciência a eles, eles que, no fundo, sabem que só pode ser assim e que nada mudará.
E depois, há o poder da comunicação social. Dizia um conhecedor que no meio de comunicação social a mensagem é o meio de comunicação social. Isto é, não há ali conteúdo separado da forma, e a forma do meio de comunicação social é, por si mesmo, o conteúdo do que é dito, escrito, que orienta, impõe as regras e os limites, canaliza, manipula. Falámos do Podemos. Para ilustrar a vivacidade e a vigilância que animama base do partido,aqui deixo uma citação de um texto de uma amiga que, num dos blogues do movimento, discute justamente o papel da comunicação social na vida política: «agentes políticos de primeiro plano que impõem a ordem dos trabalhos e a hierarquia dos temas; que põem o selo da verdade em certos acontecimentos e negam a existência de outros; que dão voz a quem consideram relevante, enquanto condenam outros ao silêncio, construindo assim a realidade que nos é oferecida, o desenho imaginário do mundo em que vivemos.»
Descolagem, as nuvens, o céu azul infinito, e esqueço o Jornal de Negócios. (…)

[Ler a continuacão da crónica Felizmente continua a haver luar ! no último número do MAPA. Um jornal que se encontra nas boas livrarias e outro lugares de convívio, e que pode e deve ser também apoiado por assinatura.]

2 comentários:

Anónimo disse...

Um jornal reaccionário onde se podem ler estas lindezas:

"De caçadores recoletores passámos a agricultores e pastores. Assim viveram os nossos antepassados durante milénios. Até há pouco tempo, nessa escala temporal, a relação com a terra e as florestas moldava o nosso dia-a-dia, a nossa própria identidade. No entanto, no curto intervalo de algumas décadas, a maioria da população converte-se em meros consumidores e a paisagem em postal ilustrado, com a agravante de tão pouco questionarmos a nossa condição e inclusive pensarmos que sempre foi assim. Durante centenas de gerações de ocupação do território, os nossos antepassados viveram com as florestas e do que estas lhes ofereciam. Hoje, poucas gerações depois, já nem sabemos o que são."

Sangue e Terra. Sem uma relação pagã com a floresta para nos moldar a identidade que será de nós como povo?

Você tem razão, o movimento operário já deu o que tinha a dar, mas os que ficaram órfãos dele parece que reverteram para um anticapitalismo reaccionário. É que uns foram para França porque se aborreciam de morte nas férias do Verão enquanto outros não tinham o que comer vivendo tão juntinhos da terra.

Ex-esquerdalho.

Anónimo disse...



"Ex-esquerdalho", olá,

Repara que é o mesmo jornal Mapa que publicou no número aqui anunciado uma resposta a esse artigo que tanto te incomodou. A nós também (os autores da resposta), mas não parece que esse debate em torno das ideias de natureza ou da historia rural se resolva com os epíteto de "reacionário". Porque se para alguma ecologia o passado natural é sinónimo de éden redentor, para algum marxismo é sinónimo de desgraça e fome, que o progresso soube também suplantar. Uma e outra identidade (como lhe chamas) constituem uma dupla armadilhada (da modernidade?) que será preciso romper criticamente e desconstruir "juntinhos da terra". Não?

Abraço
Miguel