...uma manhã muito cedo, numa sala de espera
de um aeroporto do sul. Eu procurava um jornal do dia. A menina da loja
propôs-me o único que tinha acabado de chegar. Uma coisa com o nome de Jornal de Negócios. Como é que eu posso
ler um jornal com aquele nome? E não é que, na primeira página do pasquim, uma
foto me atrai a atenção? A Mariana Mortágua em entrevista! Comprei! E li as
duas ou três páginas da entrevista, com umas púdicas fotos glamour da deputada da extrema-esquerda à mistura. A Mariana
Mortágua é uma mulher inteligente. Diz muitas coisas justas, bem ditas, fala
dos bancos, da fusão entre o sistema financeiro e o mundo político. Enfim, fala
do único país no mundo onde, apesar de Fátima, o espírito santo foi à falência!
Ela fala pouco de capitalismo, provavelmente para não molestar os clientes do Negócio que são alérgicos a palavras
feias, explica que não há que se fixar no Salgado, que não é uma questão de
indivíduos, que o problema é o sistema. Tenho de reconhecer que, no pequeno
país, palavras destas são raras e trazem um ar fresco agradável. No fim da
leitura fica uma ideia central na qual a Mariana Mortágua acredita. A
possibilidade de controlar o sistema, o mundo do lucro, de o regular, de o tornar
mais justo e mais humano. Um erro que pode ser comprovado pelo movimento da
História e a evolução das sociedades. O capitalismo não pode ser regulado, é um
sistema desequilibrado, instável, violento. Tal é a sua dinâmica e ele nunca
poderá vir a ser um sistema humano. Podemos recusá-lo, lutar contra ele e, em
situações históricas particulares, participar da sua subversão. A única força
que podemos pretender controlar é a da nossa própria actividade colectiva
contra o sistema. A partir daí outros possíveis se abrirão. Mas acreditar que
um grupo, um partido, pode influenciar as forças complexas e potentes do
capitalismo afim de modificar a sua natureza, é uma ilusão voluntarista, que se
paga caro. Não há volta a dar e acaba por ser o sistema que dá a volta aos que
entram nas instituições com ilusões. Como observamos hoje na Grécia. E se aqui
ao lado ainda há dúvidas é justamente porque o motor de Podemos é ainda alimentado, e em parte controlado, pela energia e
pela dinâmica de um movimento colectivo que revindica princípios horizontais e
de democracia de base.
Mas porque razão, com que objectivo, a Mariana
Mortágua anda a falar com esta gente dos negócios ? Obviamente, são as
necessidades da política que o explicam, a necessidade de ser reconhecida por
eles como alguém de sério e responsável, provar que possui os atributos que o
famigerado sistema exige para fazer política no quadro que é imposto e que ela
e os seus amigos aceitam. Há também a necessidade de justificar o seu trabalho
de política junto dos seus eleitores. E, do outro lado da mesa, porque razão os
homens dos negócios se interessam pela Mariana Mortágua? Diria eu que,
paradoxalmente, também eles partilham esta mesma ideia da utopia invertida, de
um bom capitalismo, justo. O que ela diz acaba por lhes servir de boa
consciência a eles, eles que, no fundo, sabem que só pode ser assim e que nada
mudará.
E depois, há o poder da comunicação social. Dizia um
conhecedor que no meio de comunicação social a mensagem é o meio de comunicação
social. Isto é, não há ali conteúdo separado da forma, e a forma do meio de
comunicação social é, por si mesmo, o conteúdo do que é dito, escrito, que
orienta, impõe as regras e os limites, canaliza, manipula. Falámos do Podemos. Para ilustrar a vivacidade e a
vigilância que animama base do partido,aqui deixo uma citação de um texto de
uma amiga que, num dos blogues do movimento, discute justamente o papel da
comunicação social na vida política: «agentes políticos de primeiro plano que
impõem a ordem dos trabalhos e a hierarquia dos temas; que põem o selo da
verdade em certos acontecimentos e negam a existência de outros; que dão voz a
quem consideram relevante, enquanto condenam outros ao silêncio, construindo
assim a realidade que nos é oferecida, o desenho imaginário do mundo em que
vivemos.»
Descolagem, as nuvens, o céu azul infinito, e esqueço o Jornal de Negócios. (…)
[Ler a
continuacão da crónica Felizmente continua a haver
luar ! no último número do
MAPA. Um jornal que se encontra nas boas livrarias e outro lugares de
convívio, e que pode e deve ser também apoiado por assinatura.]
2 comentários:
Um jornal reaccionário onde se podem ler estas lindezas:
"De caçadores recoletores passámos a agricultores e pastores. Assim viveram os nossos antepassados durante milénios. Até há pouco tempo, nessa escala temporal, a relação com a terra e as florestas moldava o nosso dia-a-dia, a nossa própria identidade. No entanto, no curto intervalo de algumas décadas, a maioria da população converte-se em meros consumidores e a paisagem em postal ilustrado, com a agravante de tão pouco questionarmos a nossa condição e inclusive pensarmos que sempre foi assim. Durante centenas de gerações de ocupação do território, os nossos antepassados viveram com as florestas e do que estas lhes ofereciam. Hoje, poucas gerações depois, já nem sabemos o que são."
Sangue e Terra. Sem uma relação pagã com a floresta para nos moldar a identidade que será de nós como povo?
Você tem razão, o movimento operário já deu o que tinha a dar, mas os que ficaram órfãos dele parece que reverteram para um anticapitalismo reaccionário. É que uns foram para França porque se aborreciam de morte nas férias do Verão enquanto outros não tinham o que comer vivendo tão juntinhos da terra.
Ex-esquerdalho.
"Ex-esquerdalho", olá,
Repara que é o mesmo jornal Mapa que publicou no número aqui anunciado uma resposta a esse artigo que tanto te incomodou. A nós também (os autores da resposta), mas não parece que esse debate em torno das ideias de natureza ou da historia rural se resolva com os epíteto de "reacionário". Porque se para alguma ecologia o passado natural é sinónimo de éden redentor, para algum marxismo é sinónimo de desgraça e fome, que o progresso soube também suplantar. Uma e outra identidade (como lhe chamas) constituem uma dupla armadilhada (da modernidade?) que será preciso romper criticamente e desconstruir "juntinhos da terra". Não?
Abraço
Miguel
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