Nuns comentários mais abaixo, Sérgio Pinto pergunta (a Miguel Serras Pereira) o que seriam as opções viáveis para o Syriza.
O que na minha opinião se deveria ter feito na Grécia:
Em primeiro lugar, acho que a estratégia seguida até há umas 3 semanas foi a correta (a derrapagem começou aqui) - adiar o embate até ao último momento, o que poderia ter dado tempo para preparar uma estratégia de resistência.
No Facebook tenho visto muitos comentários a dizer que o governo devia ter tomado mais cedo medidas contra a "fuga de capitais" - mas o que essas pessoas estão se a esquecer é que, enquanto o BCE autorizava o Banco da Grécia a financiar os bancos gregos, a "fuga de capitais" (isto é, os levantamentos massivos de depósitos) era a melhor coisa que estava a acontecer à Grécia.
Explicando melhor o que estava a acontecer:
Imagine-se um banco grego com o seguinte balanço (os números, claro, são claramente imaginários - isto é só um exemplo estilizado).
Ativo
Empéstimos concedidos 9.000
Dinheiro em reserva 1.100
Total 10.100
Passivo
Depósitos 10.000
Capital Próprio 100
[Para quem não perceba esta terminologia contabilística - o "Ativo" são os bens que uma empresa possui; o "Passivo" são as dívidas dessa empresa (no caso de um banco, os depósitos são "passivo" - é dinheiro que o banco deve aos clientes - e os empréstimos "ativo" - é o que os clientes devem ao banco); o "Capital Próprio" é a diferença]
O que acontecia quando alguem levantava 100 euros? O banco dava os 100 euros ao cliente (-100 euros no dinheiro em reserva e também -100 euros nos depósitos) e depois pedia emprestado algum dinheiro (p.ex., 90 euros) ao Banco da Grécia para cobrir a redução das reservas; o Banco da Grécia imprimia os 90 euros (que eram contabilizados como uma dívida de 90 euros do Banco da Grécia ao BCE) e enviava-os para o banco em questão. Agora o balanço do banco era:
Ativo
Empéstimos concedidos 9.000
Dinheiro em reserva 1.090
Total 10.090
Passivo
Depósitos 9.900
Dívidas ao Banco da Grécia 90
Capital Próprio 100
E era isto que nos últimos meses estava a acontecer - cada dia que passava os bancos gregos tinham menos depósitos e mais dívidas ao Banco da Grécia (e este cada vez devia mais ao BCE). E isto era bom porquê? Imagine-se o caso extremo de todos os depósitos nos bancos gregos terem sido levantados antes do BCE cortar o financiamento à banca grega - nesse momento, o BCE tornava-se uma pistola de água: mesmo que cortassem o financiamento, que mal isso faria? As pessoas já teriam lavantado todo o dinheiro que teriam para levantar; o único resultado de uma rutura entre o BCE e a Grécia seria o BCE correr o risco de nunca vir a ver o dinheiro que o Banco da Grécia lhe deve. Infelizmente o BCE cortou (ou não aumentou o limite, o que é quase o mesmo que cortar) o financiamento num momento em que ainda havia dinheiro depositado nos bancos, mas provavelmente o efeito negativo disso para a economia grega seria muito maior se as pessoas ainda não tivessem feito reservas de euros nos colchões (como terão feito nestes últimos meses).
Na verdade suspeito que a ambiguidade semântica em torno da palavra "dinheiro" contribui para algumas confusões na perceção do que se passou e está a passar na Grécia: conforme o contexto, "dinheiro" tanto pode se referir ao valor contabilístico dos depósitos bancários, como ao dinheiro físico (notas e moedas) que está efetivamente nos cofres dos bancos; como se ouve e lê notícias dizendo "nos últimos meses, foi levantado muito dinheiro dos bancos gregos" e outras dizendo "os bancos gregos estão quase sem dinheiro" há uma tendência para ligar uma coisa à outra, esquecendo que "dinheiro" significa coisas diferentes aqui (no primeiro caso refere-se ao valor contabilístico dos depósitos, e no segundo às notas e moedas físicas existentes nos cofres - enquanto o BCE manteve o financiamento, a redução do "dinheiro" no primeiro sentido não significou uma redução do "dinheiro" no segundo sentido).
Mas agora vamos ao que interessa - quando finalmente chegou o momento da verdade e a Grécia não pagou ao FMI, o que deveria ter sido feito?
- Suspender os pagamentos ao credores e apresentar uma proposta de reestruturação da dívida (isto foi feito)
- Caso o BCE cortasse o financiamento aos bancos, congelar ou limitar os levantamentos bancários (de novo, feito)
- Anunciar uma proposta radical de reestruturação do sector bancário, em que a parte dos depósitos que ultrapassasse o valor das reservas de dinheiro físico nos cofres dos bancos fosse convertida em obrigações dos bancos (essas obrigações seriam como obrigações normais que rendem um juro periódico e ao fim de alguns anos são reconvertidas em dinheiro, podendo os seus donos vendê-las antes disso, se encontrarem comprador); a partir do momento em que o valor dos depósitos fosse correspondente ao valor do dinheiro físico que os bancos detinham, já não havia o perigo dos bancos não conseguirem dar aos depositantes o seu dinheiro, nem necessidade de apoio do BCE
- Até há poucos meses a Grécia tinha um superavit primário (isto é, tirando os juros da dívida recebia mais de impostos do que as despesas que tinha); se ainda o tivesse o Estado grego não precisaria dos credores para nada (já que não teria que pedir dinheiro emprestado), mas provavelmente já não o tem (ainda mais com a crise dos últimos dias). Assim, parte dos salários dos funcionários públicos seriam pagos não em dinheiro mas em "vales" dizendo algo como "Vale 100 euros (este documento é válido para pagar impostos devidos ao Estado grego e poderá ser convertido em dinheiro quando for possível)" - reconheço que é duvidoso que tal situação se pudesse manter muito tempo (enquanto o Estado emitisse menos vales do que recebesse em impostos, provavelmente esse "euro escritural" valeria quase o mesmo do que as verdadeiras notas de euro, mas a partir do momento em que houvesse mais "vales" em circulação do que os contribuintes precisassem para pagar impostos os "vales" começariam a desvalorizar - ou seja, ao fim de alguns meses, ou o Estado grego conseguia um superavit primário, ou teria que começar a pensar em lançar uma nova moeda)
- Convocar um referendo sobre o acordo com os credores (isto foi feito), explicando claramente qual era o plano a seguir (isto é, os pontos acima) em caso de vitória do "não" (isto não foi feito, até porque já se percebeu que não havia plano nenhum)
Depois, esperar para ver (ver se a economia grega começava a recuperar e se o superavit regressava; ver se apareciam movimentos de massas a favor da reestruturação geral das dívidas no espaço da UE; ver se o Podemos em Espanha e o BE e o Livre tinham grandes votações em Portugal, etc.)
13/07/15
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1 comentários:
Miguel Madeira,
Obrigado por enunciar de forma tao clara e completa o que acha que a Grecia deveria ter feito. O unico ponto de discordancia refere-se ao facto de dizer que nao havia plano nenhum para o pos-referendo. Aparentemente (ou, pelo menos, segundo o que Varoufakis diz), havia um plano, mas era o de Varoufakis e ele estava em minoria - de forma que me continua a parecer incompreensivel, Tsipras preferiu a capitulacao total. De resto, o plano dele nao parece extraordinariamente diferente do seu: He said he spent the past month warning the Greek cabinet that the ECB would close Greece’s banks to force a deal. When they did, he was prepared to do three things: issue euro-denominated IOUs; apply a “haircut” to the bonds Greek issued to the ECB in 2012, reducing Greece’s debt; and seize control of the Bank of Greece from the ECB.
http://www.newstatesman.com/world-affairs/2015/07/exclusive-yanis-varoufakis-opens-about-his-five-month-battle-save-greece
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