02/07/15

Referendo grego - neste momento cancelar a consulta seria o pior

Neste ponto, tenho que discordar com o Miguel Serras Pereira: por mais objeções que se possam levantar ao referendo grego, cancelá-lo nesta altura (ou talvez ainda pior, amanhã) seria mesmo "o pior"; e seria "o pior" tanto do ponto de vista de fazer um acordo com os credores como do ponto de vista de fazer frente aos credores.

Do ponto de vista de chegar a um acordo, com um referendo é fácil chegar a um acordo - é só votar "sim"; claro, vão-me dizer que "as instituições" disseram que aquela proposta já não está sobre a mesa, mas se o povo grego infligir uma derrota ao seu próprio governo e votar a favor do acordo há uns dias proposto pelos credores, seria politicamente muito difícil a estes não voltarem a considerar o acordo (iam dizer o quê? "Esta nossa proposta era para ser rejeitada - quando a fizemos não estávamos à espera que a fossem aceitar"? "As nossas propostas são como aquelas propostas de venda de time sharing que as pessoas têm que aceitar na hora sem terem tempo para pensar; não admitimos que sejam sujeitas a debate público antes de serem assinadas"?). Em compensação, em caso de cancelamento do referendo, é possível, mesmo que o governo grego viesse agora aceitar tudo o que lhe tinha sido proposto, "as instituições" iriam recusar, alegando não ter confiança no governo para executar o plano e que este só o tinha aceite em último recurso e preparado para revogar o acordo à primeira oportunidade (é verdade que o mesmo se poderia dizer em caso de vitória do "sim" no referendo, mas aí o peso político de os votantes gregos terem votado pelo "sim" dava uma dimensão completamente diferente à coisa).

Já para fazer frente aos credores, um "não" no referendo dá muito mais força ao governo do que a sensação de balbúrdia que era o governo convocar um referendo e depois ser obrigado a desconvocá-lo no último momento.

11 comentários:

José Guinote disse...

Eu subscrevo, no essencial esta leitura. Acho, no entanto, que o referendo conduziu a uma polarização que coloca os votantes no Sim como defensores da Grécia no euro e na Europa e os votantes no Não como opositores dessa relação política,digamos assim. Por muito que Tsipras e Varoufakis falem é esse o sentimento dominante e a direita cavalga essa onda.
A propósito, notícias frescas, desmentem a sondagem que dava vantagem ao Sim, esta manhã.
No Guardian o instituto autor do estudo denuncia os resultados divulgados como pouco credíveis. Acontece de tudo neste atribulado processo.
"The opinion poll which showed the Yes campaign at 47% and the No campaign at 43%, is not as straightforward as first thought. GPO, the polling company which carried it out, has released a statement which says the survey was released without its permission, and is only a fragment of its research." in
http://www.theguardian.com/business/live/2015/jul/02/greek-debt-crisis-athens-creditors-referendum-yes-no-live

joão viegas disse...

Mas porque carga de agua é que o chefe do governo grego (eleito) havia de precisar de "força" para dizer não ? Não precisa de nada em particular. E' facilimo dizer não. Chega perto dos parceiros europeus e diz : "olhe, muito obrigado mas, pensando bem, não". Onde esta a dificuldade ?

E também não vejo o problema de se anular o referendo. A unica consequência seria obrigar o chefe do governo grego (eleito) a tomar uma decisão politica, ou seja a fazer aquilo para que foi eleito. São momentos dificeis, é certo, mas afinal de contas faz parte das coisas que podemos ter que fazer quando ocupamos cargos politicos. Normalmente os candidatos devem saber à partida, quando se candidatam, que podem ter de tomar decisões...

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Miguel, os teus argumentos não me convenceram. Resumindo, as minhas objecções são simples:
1. Uma vitória do Sim enfraqueceria o governo grego nas negociações, a que teria de proceder desautorizado pelos seus eleitores, e, em contrapartida, daria mais força à ala mais dura e aos falcões do austeritarismo. Talvez seja por isso que hoje Varoufakis já disse que, em caso de vitória do Sim, ele, pelo menos, se demitiria. E, com efeito, é extremamente duvidoso que o actual governo de coligação pudesse manter-se, etc., etc.
2. Uma vitória do Não deixaria Tsipras e Varufakis, toda a "esquerda europeísta" do Syriza, encurralado pelo "esquerda soberanista" do seu próprio partido e pelos Gregos Independentes, e seria ou forçado a capitular, encetando um caminho de ruptura com a Zona Euro e com a UE, ou a demitir-se — tudo isto enquanto a pressão dos "falcões" do austeritarismo aumentaria desmesuradamente e encorajaria ainda mais os nacionalistas de todas as cores na sua aposta na ruptura com a UE.
3. O cancelamento do referendo levaria a que as negociações fossem retomadas em condições apesar de tudo (porque a política de bluffs e de catavento adoptada por Tsipras e Varoufakis os deixou em piores condições do que antes) menos perigosas para a Grécia e para UE do que, em caso de realização da consulta, uma vitória do Sim ou do Não.

Abraço

miguel(sp)

Miguel Madeira disse...

1 - No caso de vitória do "sim", penso que seria ainda mais radical - acho que aí nem faria sentido continuar negociações: o que o governo grego teria a fazer seria aceitar a proposta dos credores

2 - Há uma coisa que não nos podemos esquecer: qualquer negociação tem implícita uma hipotese de uma rutura nas negociações (no caso especifico de uma negociação de renegociação de dívida, tem sempre implícito a possibilidade de um default unilateral; se não for assim, que incentivo têm os credores para aceitarem um acordo?); quanto maior for a probabilidade estimada de uma das partes estar disposta a sair da sala sem um acordo, maior a probabilidade de essa parte conseguir um bom acordo - pelo contrário, se uma das partes seguir a regra "tem que haver um acordo, custe o que custar", que poder negocial tem (imagine-se, a um nível micro, a situação de um trabalhador que precisa desesperadamente de um emprego)? O resultado disso é que tudo que ocorra, na política interna grega, para fortalecer a posição "europeísta de esquerda" será também o que favorece a posição "soberanista" (quase tudo o que reforce a possibilidade da solução "Grécia não assina acordo e entra em rutura com os credores" reforça também a possibilidade da solução "Grécia consegue acordo bastante favorável"); onde se pode combater a tentação soberanista a favor do europeísmo de esquerda é a nível internacional - aí as regras invertem-se: quanto maior a solidariedade internacional para com a Grécia, mais força terá (memo dentro da Grécia) a tendência europeísta de esquerda e menos a tendência soberanista.

Miguel Madeira disse...

Esta passagem deste artigo sobre Porto Rico é uma boa ilustração de que uma renegociação de dívida requer a possibilidade de um default unilateral:

Most bankruptcy laws, for instance, protect debtors’ assets and incomes from being seized, at least temporarily. And in the case of sovereign nations like Greece, it’s almost impossible for any court, foreign or domestic, to force the country to pay monies it doesn’t want to pay.

Puerto Rico, by contrast, is stuck in the worst of all worlds. It has to abide by the rulings of New York courts, should bondholders file suit. And at the same time, it’s not allowed to file for — and receive the protections of — bankruptcy. (US municipalities, like Detroit, can file under Chapter 9 of the American bankruptcy code; Puerto Rico, which is a territory, cannot.) As a result, Puerto Rico is at the mercy of the courts, which will take one look at the island’s unambiguous bond contracts and declare that it has to pay its debts, in full.

When Puerto Rico says that it wants to negotiate with its creditors, then, it’s in a very, very weak negotiating position: the rational response for the creditors to take is, essentially, “fuck you, pay me”.

Miguel Serras Pereira disse...

Miguel,
não vejo que vantagem nas negociações possa o governo tirar de um Não se a ideia é aceitar o acordo (que nunca chegou a haver) que o Não recusa. Tirando isto e a questão da forma inaceitavelmente opaca do referendo e da inaceitável inadequação extrema das condições em que os cidadãoa são chamados a votar, os meus argumentos não mudaram e os teus também não. Para já, eu, pelo menos, não vejo mais nada de útil que possa dizer.
Mas até ao lavar dos cestos é vindima.
Abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Meu caro Miguel Madeira,

Acho que estas a confundir as regras da negociação internacional com as do poker. O que pode garantir um bom resultado é, quanto muito, a representação que a outra parte tem da realidade do risco de ruptura, e dos custos desta ruptura. No nosso caso, a jogada de Tsipras, que nem sequer assume que a vitoria do "não" possa traduzir-se pelo abandono do Euro ("meninos é para dizer "não" muito alto, mas cautela que é so a fingir, o que a gente quer mesmo são melhores condições para dizer "sim"") deixa-me sérias duvidas. Sobretudo que o custo da Grécia sair, para os conservadores liberais europeus (que existem, ou ja se esqueceram ?), tende para zero. Para eles, apenas reforçaria a ideia de que as tentativas de criar espaço politico para uma Europa que não seja liberal estão irremediavelmente condenadas a falhar. Portanto é relativamente discutivel que isso os impeça de dormir à noite...

Por acaso até temos alguma experiência dos resultados desse tipo de jogada. Com o não ao tratado Europeu, diziam alguns na altura que as esquerdas iriam aparecer rapidamente com um projecto alternativo que ia fazer estremecer a direita. Uma Europa mais democratica. Uma Europa dos povos. Uma Europa social. O resultado esta à vista...



Abraços,

Miguel Madeira disse...

MSP: " ideia é aceitar o acordo (que nunca chegou a haver) que o Não recusa."

João Viegas: "("meninos é para dizer "não" muito alto, mas cautela que é so a fingir, o que a gente quer mesmo são melhores condições para dizer "sim"") "

Mas o "não" no próximo referendo supostamente é ao acordo concreto que foi proposto em meados da semana passada, não a um acordo em abstrato

joão viegas disse...

De facto a questão colocada no papel aparenta ser esta, o que mostra bem o absurdo da situação. Mas, como é obvio, e como alias devemos supor para acreditar nas virtudes que tu vês no referendo, trata-se na pratica de dizer sim ou não às condições que estão hoje sobre a mesa para chegar a acordo, portanto ao acordo possivel hoje. A ideia que se trata apenas de um referendo para continuar a negociar é outra falacia. A opção de continuarmos a negociar eternamente não existe e, tanto quanto percebo, se não chegarmos hoje a acordo, a Grécia não se pode manter no Euro...

Abraço

Anónimo disse...

O texto de ontem da famosa advogada e deputada dos Verdes, Eva Joly, no Libération, é uma peça de alto valor politico e táctico de apoio à causa do lider do Syriza. E que não ilude os problemas reais da politica actual grega, no entanto,nem confunde os niveis de argumentação. Joly diz logo de inicio que " o referendo de Domingo é a consequência da intransigência da Troika ",já que, sublinha " " Para que o Podemos não avance mais em Espanha, é preciso absolutamente fazer perder o Syriza na Grécia ". Exorta. por isso, a criar um espaço civico solidário em torno do governo grego "cujo projecto não é soluvel nos dogmas da finança"; e nele verão, pelo contrário," a ocasião de um sobressalto ". Ao mesmo tempo, a deputada europeia valoriza a "determinação lucida " de Tsipras que persiste em manter a tese que uma alternativa ao austeritarismo é possivel; apontando que o peso da razão económica está do lado do actual governo grego.Tucidides historiador do séc.IV AC contemporâneo de Péricles,cujos ensinamentos e textos de analise inspiraram muito Maquiavel e Rousseau,gostava de precisar: " Quando não existe um equilibrio entre dois potentados, os mais fortes fazem o que podem- isto é, literalmente tudo o que podem- e os mais fracos cedem ..." Niet

rui cs disse...


Em resumo, o que me parece que vai ser referendado no próximo domingo são dois packs (ou conjuntos): no primeiro temos o acordo proposto pelas instituições, que seguirá o modelo de todos os acordos propostos pela UE/FMI desde 2010/11, portanto, com austeridade, com necessidade de prosseguir privatizações, cortes nos serviços públicos, desemprego constantemente elevado, uma dívida que vai aumentando em percentagem do PIB à medida que o mesmo PIB vai definhando.
No segundo ''pack'' temos um não que abarca várias posições: haverá um 'não' que defende a saída da Grécia do euro (quer porque são ideologicamente soberanistas, quer porque crêem que nas presentes circunstâncias o euro não permite uma saída para a austeridade e para a crise, um 'não' encontram-se aqueles que irão votar não - como diz oficialmente o Syriza - porque querem que um acordo com as instituições e a manutenção no euro, simplesmente querem mostrar pelo peso do seu voto, imaginemos se este ''não'' tiver mais de 55% ou 60%. Portanto, há diferentes ''não''. Aliás, o lado ''soberanista'' não se pode localizar sumariamente no ''não'', bastando para isto pensar que o KKE apela ao voto nulo, recusando responder ''sim'' ou ''não'' ao referendo.
Assim, creio que nas presentes circunstâncias, o governo do Syriza é aquele que na União Europeia mais pode influenciar uma viragem desta mesma união, e uma vitória do SIM irá evidentemente enfranquecê-lo, porque será sempre lido como uma vontade de do povo grego de manter-se na União Europeia MAS IGUALMENTE de aceitar um acordo que perpetuará a austeridade. Só uma vitória do não dá força negocial ao Syriza e àqueles que (podendo defender a manutenção no euro ou a saída do euro) têm em comum a recusa da austeridade.
Em duas frases: não há interlocutores na União Europeia que perante uma vitória do SIM possam aceitar negociar com um governo grego um acordo que não implique austeridade. No caso de uma vitória do NÃO essa possibilidade abre-se, porque reforçado o apoio do Syriza neste referendo, este poderá escolher qual o caminho que mais se aproxima do seu objectivo: recuperar a economia da Grécia sem aplicar mais austeridade recessiva, quer esse caminho possa ser feito dentro do euro (com um acordo satisfatório) ou quer esse caminho passe por sair do euro.
Rui Costa Santos