05/07/15

Reflexão pós-referendo grego

O programa social-democrata que deu a vitória eleitoral ao Syriza era contra a troika e a austeridade, denunciava que a dívida era impagável e teria de ser reestruturada e defendia, para que tudo isso fosse possível, um aumento e reforço da integração europeia (orçamental "social" e política). Aliás, esta perspectiva "europeísta" surgia não só em todos os discursos de Tsipras como era reitrada com insistência pelo filósofo Zizek (por sinal, não raro, embora também nem sempre, com uma argumentação mais coerente do que é seu timbre). Devia ser evidente para todos que este programa se situava nos antípodas do soberanismo e do nacionalismo e, nomeadamente, da apologia das virtudes do Estado-nação e das independências nacionais entoada noutras paragens — caso da região portuguesa, por exemplo — pelas "esquerdas da esquerda" locais. Tive, de resto, ocasião de sublinhar várias vezes essa novidade do Syriza, ao mesmo tempo que evitei sempre considerar politicamente satisfatória a sua lógica representativa e eleitoralista.

Uma vez no governo, sob a pressão dos seus parceiros da desastrosa coligação por que optou e sob a pressão também  das alas soberanistas e nacionalistas do próprio Syriza, o programa social-democrata e o seu "europeísmo" passaram a ser acompanhados de reclamações cada vez mais soberanistas e patrióticas e de gestos — por exemplo, em relação à Rússia e a propósito da Ucrânia — que contradiziam a aposta no reforço da integração da UE acima referido. Nas últimas semanas e, sobretudo, após a decisão de recorrer ao (mistificador) referendo que se sabe, passou a predominar no discurso de Tsipras e Varoufakis uma nota como que esquizofrénica, cada vez mais exasparada: as declarações nunca abandonadas de um (verbalmente, pelo menos) incondicional "europeísmo" combinavam-se contiguamente apelos soberanistas cada vez mais altissonantes que esvaziavam de sentido a via social-democrata apostada no reforço da "solidariedade" através do da integração (e/ou vice-versa). Digamos que, após a celebração do referendo, esta contradição está a atingir o seu ponto máximo e uma tensão explosiva. Com efeito, todos os objectivos negociais do governo grego enunciados por Tsipras e Varoufakis têm como condição e eventual corolário um aprofundamento de tipo social-democrata  da integração orçamental, fiscal e política da UE incompatível com a reactivação da plenitude da soberania nacional e que, por isso mesmo, qualquer avanço institucional  do nacionalismo(regressivo e reaccionário, por mais de vermelho que se pinte), tanto na Grécia como a nível europeu,  só pode inviabilizar.

Dito isto, o facto de termos boas razões para pensar que o programa eleitoral social-democrata do Syriza, a sua concepção e a sua prática da divisão do trabalho  político, não podem garantir uma democratização efectiva das relações de poder dominantes — uma democratização radical das insituições, da divisão política do trabalho à divisão do trabalho político, que atribua aos homens e mulheres comuns que somos o direito e a responsabilidade de participarem igualitariamente nas decisões que lhes dizem respeito, conquistando a condição plena de cidadãos que só na medida em que sejam simultaneamente governantes consintam em ser governados — o facto, dizia eu, de termos boas razões para contestarmos a divisão estrutural e permanente entre governantes e governados, que o programa eleitoral do Syriza reproduzia como pressuposto da sua acção política, esse facto, repito, não deve impedir-nos de ver que a alternativa nacionalista e soberanista é um remédio pior do que o mal, uma ameaça de morte para tudo o que nos resta de cidadania activa e de conquistas democráticas na Grécia, na Europa e no mundo.

4 comentários:

Francisco disse...

"Uma vez no governo, sob a pressão dos seus parceiros da desastrosa coligação..." Foi mesmo isto que se passou? Não foi antes a total recusa das "Instituições" em ajustarem as suas exigências ao programa "social democrata" do Syriza? Ainda não perecebes-te que programas "social democratas" como o do Syriza são incompatíveis com a tua querida UE e que uma maior integração significará apenas mais neo-liberalismo e menos democracia?

O pior cego é mesmo aquele que não quer ver...

Miguel Serras Pereira disse...

Francisco,
era melhor ler o qiue eu escrevi — aqui e noutros posts — sobre a necessidade de combater e fazer recuar a oligarquia na UE e as suas políticas austeritárias. Aliás, o que neste post exponho são as teses sobre a Europa do programa do Syriza e são elas que pressupõem condições de mudança na Europa que têm como corolário o aprofundamento da integração. Na qual, pelo menos até ao momento, o governo grego continua a apostar. Que esta aposta é incompatível com o reforço do soberanismo e com uma linha nacionalista, parece-me bom de ver. E foi isso que entendi sublinhar.

msp

Francisco disse...

"a necessidade de combater e fazer recuar a oligarquia na UE e as suas políticas austeritárias" é impossível fazer isto sem atacar o maior baluarte institucional/regulatório dessas oligarquias. A própria Uniao Europeia
"pressupõem condições de mudança na Europa" Mudar a europa só é possível se assumirmos que europa Não é sinónimo de UE! Só é possível implementar políticas alternativas ao dictact neo-liberal em combate com a UE. Sem antes quebrar com a UE e reforçar a democracia onde isso é possível, no estado nação. Poderá ser possível contruir uma outra europa solidária e fraterna.
Mais, o internacionalismo será fundamental nesse processo, e está a florescer com a postura de confronto do Governo Grego!

"Sobre a pressão da crise revelou-se que a UE longe de conduzir a condições mais iguais, veio agudizar as desigualdades sociais entre os povos dos diferentes estados-nação. Acresce que esta construção é feita sob um pano de fundo em que não há grandes raízes históricas e culturais que forneçam algum cimento solidário. Não vejo como é que isto pode servir de base à construção de qualquer internacionalismo. Pelo contrário, o agravar da crise irá provocar recriminações, desprezo e ódio entre os povos acorrentados a esta construção supra-nacional autoritária, desigual e austeritária.
O maior contributo que poderia existir para o reforço do internacionalismo proletário seria uma ruptura progressista com o actual paradigma, uma ruptura que só poderá ocorrer onde o povo tem o poder para o fazer, no estado-nação. Seja em Portugal, na Grécia ou numa nação que reconquiste um estado e a independência como a Catalunha ou a Escócia. Isso daria um enorme exemplo às classes trabalhadoras noutros locais. Isso sim iria impor a questão da solidariedade internacionalista, existiria um projecto em concreto para defender. Por sua vez, onde conquistarem o poder, os sectores populares terão mais instrumentos à sua disposição para apoiar lutas noutros países e no palco Europeu. Seria extraordinário se isso fosse feito em simultâneo em vários países, mas parece-me muito difícil e não ganhamos nada em ficar uns à espera dos outros. Quanto mais cedo isso for feito num dado local, mais força dará a todos os outros. A solução terá de começar pelo plano nacional e a partir daí poderá haver força para influenciar decisões no plano Europeu. Eu sei bem do que é que a Helena Matos tem medo!"
https://5dias.wordpress.com/2014/02/02/a-republica-popular-da-escocia-e-a-questao-nacional/

Miguel Serras Pereira disse...

Francisco,

sobre a minha própria posição política, expliquei-me o suficiente no post.
Por agora, limito-me a objectar-lhe que a sua posição não é a do governo grego nem a adoptada pelo programa social-democrata e europeísta do Syriza. E que você apoia não o governo grego, mas o que pensa que este será obrigado a fazer, numa perspectiva do quanto pior melhor.
Suponho que fomos os dois suficientemente claros.

msp