25/07/15

Êxodos

De uma troca de mensagens com o João Bernardo a propósito da situação na Grécia:

«Aconselho-vos a lerem integralmente este despacho acerca da transferência de empresas gregas para a Bulgária, que mostra que, enquanto se discute se a Grécia deve ou não manter-se no euro, os empresários gregos, esses, trataram de arranjar condições para se manter no euro. Embora a Bulgária não pertença ainda à zona euro, está na fila de espera e o lev está alinhado com o euro. Os capitalistas gregos que se transferiram para a Bulgária mudaram-se de um país em que a adesão ao euro permanecia incerta para outro em que a adesão ao euro se afigura certa e próxima. Ao mesmo tempo, notem que, enquanto o salário médio mensal líquido em 2014 era 1262 € na Grécia, na Bulgária era 325 € ou, segundo outros cálculos, 1004 € e 356 € em 2013 e 2015, respectivamente, ou seja, correspondia na Bulgária a quase 1/4 ou quase 1/3 do montante na Grécia. Conheço outras estimativas, mas todas elas dentro dos mesmos parâmetros. Assim, os capitalistas gregos conseguiram não só assegurar a sua manutenção no euro como ainda colocar a força de trabalho que deles depende num contexto de redução dos salários muito mais considerável do que qualquer coisa que estivesse a ser discutida em Bruxelas. E é nesta época de transnacionalização do capital que os meninos e meninas da esquerda retrógrada invocam as soberanias, aplaudem os referendos ou consideram uma grande vitória andar à pedrada numa praça de Atenas. Ora, só uma luta da classe trabalhadora conduzida directamente no quadro global da zona euro poderia enfrentar estratégias como a seguida neste caso pelos capitalistas gregos. Enquanto a esquerda for o que é, os capitalistas podem dormir descansados»

João Bernardo

Da minha parte acrescento apenas o seguinte. Há quem na esquerda admita que os capitalistas actuem e decidam as coisas no plano transnacional. O maior problema não está aí mas no facto de desenvolverem uma crítica nacionalista: isto é, à transnacionalização querem opor-lhe uma nacionalização política. Não por acaso estes activistas da esquerda falam sempre contra o capital europeu, a finança internacional, etc. que oprimiriam os povos e retirariam a soberania aos países. A isto acrescentam a fantasia de que a democracia apenas é possível no Estado-nação...

Em suma, a crítica de grande parte da esquerda ao capitalismo passa por um processo de transformação da economia numa mera realidade física e geográfica: capitalismo = transnacionalização/globalismo/Europa/UE, socialismo = Estado-nação/soberania nacional. Ora, a questão geográfica é simplesmente a tradução espacial de realidades que não têm aí génese. Repare-se que o que define o capitalismo em qualquer parte do mundo tem a ver com o controlo do tempo de trabalho e os mecanismos sociotecnológicos de criar mais tempo de trabalho e, por conseguinte, mais valor dentro de cada hora de trabalho. Ou seja, enquanto a dinâmica fulcral de determinação do capitalismo se opera sobre o tempo, esta esquerda "pensa" que o capitalismo se inicia a partir de um processo de controlo do solo e da geografia. Ora, esta segunda visão tem paralelismos fortes com a visão que a extrema-direita construiu no passado. Quando a esquerda reduz o capitalismo à Alemanha e processos emancipatórios/socialistas à Grécia (ou à Venezuela, à Argentina, a Cuba, etc.) verifica-se a total obliteração da divisão interna e transversal entre produtores e apropriadores de mais-valia. Salienta-se e valoriza-se assim um conflito entre nações, fundindo trabalhadores e determinadas franjas de empresários (não por acaso os situados em sectores menos inovadores e menos concorrenciais) numa comunidade nacional que se degladiaria contra outra comunidade nacional.
Na década de 30 a transnacionalização económica era ainda uma miragem e não eram poucos os capitalistas e gestores que usavam o argumentário nacionalista para resolver os seus conflitos internos. Hoje, enquanto os capitalistas mais lúcidos e as empresas mais avançadas buscam integrar-se globalmente e através de consensos internos à sua classe que extravasam as fronteiras, grande parte da esquerda faz do retalhamento nacional e do reforço das fronteiras nacionais (*) a sua bandeira.
As diferenciações socioeconómicas desaparecem para dar lugar a choques entre nações. O tempo desaparece. Fica só o espaço. A processualidade dos fenómenos esfuma-se, a cristalização telúrica e fronteira ao tribalismo ascende. O tempo desaparece, a possibilidade de mudança estrutural desaparece.

(*) O que é a soberania nacional senão o postulado do reforço do Estado nacional e da sua capacidade de determinação de decisões sobre e dentro das fronteiras? Como para bom entendedor meia palavra basta, se o Estado é simultaneamente produto e produtor de divisões sociais entre governantes e governados, então um reforço da soberania nacional - que é sempre um reforço do aparelho do Estado na economia e na vida quotidiana em geral - não equivale a uma democratização mas a um reforço de hierarquizações internas, precisamente porque mais facilmente mascaradas e diluídas no seio do discurso da unidade nacional.

18 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

João,
sublinho a tua nota final, que formula com toda a clareza a necessidade em que eu próprio tenho insistido noutras ocasiões de pensarmos e praticarmos a democracia contra o Estado (os aparelhos classistas e hierárquicos tanto do Estado amplo como do Estado restrito, para evocar a distinção clássica do João Bernardo). Propor e defender a "união nacional", ainda que se lhe chame "povo unido" (cf. http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/07/e-o-povo-unido-pa.html ), contra "os alemães", ou, mais geralmente, identificar o Estado-nação como condição necessária — e não mecanismo de esconjuro — desse exercício do poder por iguais e entre iguais que, só ele, merece o nome de democracia, é uma mistificação ideológica retrógada que apresenta como libertação popular o regime de opressão totalitária que nasceria fatalmente da unificação política das esquerdas nacionalistas com os partidos ou movimentos do tipo Front national ou de Beppe Grillo.

Abraço

miguel(sp)

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

a grande falácia é a de que por estar mais perto as decisões do Estado nacional seriam mais facilmente controladas pelos cidadãos. Ora, isto não faz sentido por três razões: 1) se o critério fosse a proximidade, e se se seguisse esse prisma, então a esquerda deveria defender as juntas de freguesia ou as câmaras municipais contra o Estado central... 2) com a crescente integração global da economia as decisões de Estados nacionais - sobretudo em Estados relativamente irrelevantes em termos económicos globais - só servem para enganar meninos e insuflar-lhes uma noção - ilusória - de accomplishment nacional. A festarola após o referendo grego vem precisamente neste sentido: uma explosão de alegria efémera, ilusória e que não serve de nada, a não ser a criação de sentimentos nacionais que em nada decidem sobre o que é estrutural. A esquerda que perde tempo a clamar por traição e capitulação, deveria era perguntar-se porque os mecanismos políticos nacionais não têm influência sobre determinações muito mais vastas. 3) como eu disse nos comentários a um post anterior a propósito da tese de que a emissão de moeda própria a partir de um Estado nacional e que «isso seria sintoma de um controlo da vida económica "pelo povo"... Ou seja, a tese é a de que um banco central supranacional é mau porque está em Frankfurt e porque o Banco de Portugal, ou da Grécia, não têm poder de decisão. O que, por sua vez, significaria um afastamento dos cidadãos dos mecanismos de decisão... Como se alguma vez o cidadão comum tivesse sido e achado quando o Banco de Portugal, por exemplo, decidia desvalorizar sistematicamente o escudo e com isso comer grande parte dos salários... Como se alguma vez houvesse algum tipo de influência do cidadão comum na tomada de decisão em instituições controladas por tecnocratas, sejam eles portugueses ou estrangeiros. Em vez de se analisar a dimensão classista do exercício do poder, a esquerda que se diz defensora dos trabalhadores constrói uma mundivisão completamente afastada dos mecanismos de produção da vida social, política e económica, substituindo-os pela cisão nacional/exterior. (...)
O nacionalismo não é apenas um slogan. É a transformação da forma de pensar a partir de slogans (a Grécia, a Alemanha) e é a transformação total da forma de raciocinar em termos geoestratégicos, abandonando o pressuposto da distinção classista. Ou alguém acha que só por ser patriótico e de esquerda um administrador do Banco de Portugal se tornaria num trabalhador?».
4) As teses soberanistas, no actual mundo global, não servem para outra coisa senão criar e reforçar linhas divisórias entre trabalhadores dos diversos países europeus. E para reforçar o Estado nacional, a instituição hierárquica por excelência da modernidade.
O reforço dos Estados nacionais não corresponde a uma maior coesão dos explorados, mas a uma coesão reforçada entre os explorados localizados num pedaço territorial e uma nova liderança exploradora. A esquerda deveria aprender alguma coisa com o "Animal Farm".

Abraços
João

João Valente Aguiar disse...

A propósito do reforço do Estado que falo no comentário anterior e no post, é bom recordar que isso não deriva simplesmente de um postulado ideológico. Na sua concretude, um reforço do Estado significa uma utilização colossal de meios de opressão e de vigilância. Aliás, é bom de ver que era isso que eventualmente os ministros mais anti-euro do Syriza tinham em mente: http://www.publico.pt/mundo/noticia/os-rocambolescos-planos-b-dos-ministros-gregos-para-voltar-ao-dracma-1703221
No fundo, uma versão de um quero, posso e mando que em nada se coaduna com os princípios mais básicos de uma democracia. A tal que os defensores de uma saída do euro dizem querer proteger...

joão viegas disse...

Ola,

Bom, para ser mais exacto, o que dizem os nacionalistas neste momento, com uma pertinência aparente, é que os Estados nacionais têm hoje mais "legitimidade democratica" e que estão correlativamente sujeitos, defendem eles, a um maior controlo democratico, por comparação com a União europeia e os seus orgãos burocraticos (o unico que aparenta ser representativo, o Parlamento, não tem poderes nenhuns), os seus mecanismos de decisão opacos, etc.

A falacia é esta e é falacia porque, neste momento, e tal como estão organizados, os Estados nacionais (e especialmente os do sul da Europa) não decidem nem controlam coisissima nenhuma, uma vez que as grandes e as pequenas questões economicas são decididas a nivel europeu (por decisores nacionais, mas a nivel europeu). Alias, o que se passa é caricato : os decisores nacionais, quando vão a eleições, ja não se dão ao trabalho de propor coisa alguma, apenas se lamentam e atiram culpas para cima dos outros, quer para cima dos "burocratas de Bruxelas" (como se esses burocratas não obedecessem a instruções), quer para cima dos governos anteriores que não souberam respeitar as exigências internacionais (as tais que passarão a ser "exigências dos burocratas de Bruxelas" quando isto passar a dar mais jeito), quer para coma das realidades economicas e da concorrência internacional (variante : da crise internacional ; variante ainda pior : dos estrangeiros)). Portanto o sofisma é afirmar que o Estado nacional é a unica realidade que respeita a democracia, quando na verdade foi ele que começou por decidir fazer das questões politicas importantes questões supra-nacionais. Dito por outras palavras : vocês viram por ai soldados europeus de metralhadora em punho a obrigar as pessoas a pagar as suas compras em Euro ? Eu não ! Que eu saiba, a nossa participação na Europa foi decidida pelos nossos representantes nacionais. Mas parece que isso ja não teve a ver com soberania...

Na verdade, o Miguel tem perfeitamente razão : a crise europeia, não passa da expressão geografica da falência do Estado nacional como sistema democratico. Isto tem a ver, como é obvio, com a concentração do poder economico. Mas também, convém não esquecer, com uma confrangedora falta de exigência democratica por parte das pessoas. Nenhuma democracia podera sobreviver, nem sequer a nivel europeu, com o mecanismo de diluição da responsabilidade que vemos funcionar diante dos nossos olhos sem levantarmos o dedo.

Devemos exigir que a democracia seja exercida de forma eficiente e substancial, levando a vontade dos cidadãos aos verdadeiros centros de decisão, nomeadamente economicos. Mas devemos também exigir que os processos de decisão se mantenham democraticos, com o controlo efectivo das populações, o que implica alguma forma de organização politica de base. Não podemos continuar tranquilamente a comer o que nos servem no prato e contentarmo-nos com levantar a cabeça de quatro em quatro anos a ver qual é o preço do milho. Os movimentos tipo Podemos, Syriza, e outros, mostram que as pessoas estão a começar a compreender isto.

Esta é que é a verdadeira e unica forma de lutar contra a burocracia e contra o abandono da soberania. E isso tera necessariamente de fazer-se a nivel europeu, sob pena de um fracasso total, que seria também um fracasso da democracia...

Abraços

Miguel Madeira disse...

Não vejo onde é que as propostas, tanto do Varoufakis (que não era uma proposta para sair do euro, note-se) como Lafanzanis, seriam particularmente opressivas (bem, aquela parte de prender o governador do banco central parece-me realmente entrar por um mau caminho).

O que causou algum escandalo no caso da proposta do Varoufakis era a parte do hacking, mas aí tratava-se de "hackear" informação que normalmente está sempre nas mãos do estado (só não estava na Grécia porque o sistema era gerido pelos técnicos da troika)

Ricardo Noronha disse...

Mais do que aferir a natureza de semelhantes propostas dos ministros gregos, acho que é bom começar por aferir a seriedade da notícia e das respectivas fontes. Os argumentos contra o Estado-nação são suficientemente numerosos e sólidos para dispensarem este tipo de incursões no mundo da fantasia.

João Valente Aguiar disse...

Diz o Ricardo que «Os argumentos contra o Estado-nação são suficientemente numerosos e sólidos para dispensarem este tipo de incursões no mundo da fantasia». Utilizando um tom acintoso e desproporcionado, é curioso ver como o Ricardo se foca num detalhe de um comentário e não no conjunto de argumentos centrais do texto e da discussão que se vinha fazendo. Certamente porque não é fantasia nenhuma que entre esses argumentos centrais se encontram vários «numerosos» e «sólidos» argumentos com que ele certamente se identifica, não obstante andar esquecido de os apresentar.

E depois deste parêntesis de fait-divers, voltemos à substância das coisas.

Assim, num quadro estruturante de discussão, vale a pena repescar o argumento do João Viegas da ausência de debate sobre a democratização em todas as esferas de poder e de que modo ele tem sido reduzido, à esquerda, ao exercício do poder do Estado. Historicamente, de onde vem esta adoração perene do Estado pela esquerda, que faz com que todas as vias que apresenta acabem sempre por reduzir as encruzilhadas económicas e sociais a problemas político-estatais?

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,

olha que se o teu comentário não é uma manobra de diversão, corre o risco de o parecer a qualquer leitor de boa-fé. Lamento dizê-lo. Tanto mais que os argumentos numerosos e sólidos que referes existirem contra o Estado-nação, esses, ou são os em boa parte os que o João e eu próprio apontamos, ou a serem outros, opostos ou solidários, tu evitas dizer quais.

Abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola,

Desculpem intrometer-me e desculpem-me se percebi mal, mas o que vejo é que o Ricardo põe sobretudo em causa a realidade da noticia e pede fontes. Ora bem a fonte esta mencionada no post, é a AFP e a noticia parece-me corresponder a esta : http://www.afp.com/fr/info/la-bulgarie-inattendu-havre-de-paix-pour-entrepreneurs-grecs. O Ricardo dispõe de elementos que nos levem a duvidar do que descreve a mini-reportagem da AFP ?

Quanto ao resto, julgo que todos concordamos que a crise europeia mostra as limitações do Estado-Nação (e convém lembrar que a ideia do Estado-Nação, à partida, era exactamente o contrario de uma forma de separatismo, de isolacionismo, ou de proteccionismo, a soberania nacional da revolução francesa, tanto quanto julgo saber, pretendia convidar o povo a libertar-se dos laços particulares que o prendiam às mil e uma parvonias do reino, para se libertar numa perspectiva mais ampla, que de resto queria ir ao encontro das aspirações de todos os povos europeus, portanto o nacionalismo apresenta-se numa larga medida como uma forma de perversão, mas adiante). No entanto, pessoalmanente, compreendo que as pessoas hesitem e julgo que não devemos menosprezar o argumento do déficit democratico. A resposta à dificuldade passa, de facto, pelo aprofundamento da noção de democracia e pela analise da contradição intrinseca no argumento : vocês defendem que a soberania nacional é uma garantia fundamental e que não podemos abdicar dela sem abdicar da democracia ? Ora bem, reparem que foram precisamente os representantes das nações, em nome dos povos soberanos, e em perfeita sintonia com as regras democraticas que vocês defendem, que criaram a situação que vocês criticam hoje. Por conseguinte, a ideia de que a soberania nacional é uma realidade inultrapassavel, tem bastante que se lhe diga...

Abraços a todos

Miguel Madeira disse...

Acho que a questão do Ricardo sobre as fontes terá a ver com os planos B, não com o post original

Ricardo Noronha disse...

De facto dizia respeito ao Plano B e não à Bulgária (uma vez que referi explicitamente "propostas dos ministros gregos" e não as transferências dos capitalistas gregos, pensei que isso ficaria claro), mas cá fico com o meu tom acintoso, que reservo exclusivamente para as manobras de diversão. Para a próxima vez que quiser introduzir uma nota dissonante num concerto tão afinado terei o cuidado de acrescentar um desenho, não vão os leitores de boa-fé ficar desconcertados.
Se querem passar a temas substanciais, eu aproveito para vos fazer ver que, se há democracia para além do Estado, também há comunismo para além da democracia, sendo que o princípio da minoria e da maioria não tem que imperar sobre todas as decisões para que se consiga viver uma vida boa. Serão outros carnavais, mas como tenho reparado que vem havendo aqui um forte investimento numa concepção ahistórica de democracia, que nos condena a viver para todo o sempre amarrados à condição de cidadania e ao exercício do poder, cá ficam as minhas objecções a semelhante ideia.

joão viegas disse...

OK, caros, li mal. As minhas desculpas ao Ricardo. Quanto ao resto, acho que a ultima critica dele é injusta. O que estamos a dizer é que o défice democratico que muitos denunciam nas instituições europeias, é o produto do défice democratico do Estado-Nação tal como (dis)funciona hoje e que pensar que o remédio esta num refugio quimérico na soberania nacional (do Estado) não responde minimamente à questão. Não estamos a defender que o défice democratico não seja um problema que pede uma solução, e mesmo uma solução urgente. Mas que a solução não reside no Estado nacional, e isso precisamente em nome da historia...

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,
tu escrerves: "se há democracia para além do Estado, também há comunismo para além da democracia, sendo que o princípio da minoria e da maioria não tem que imperar sobre todas as decisões para que se consiga viver uma vida boa". Pões, sem dúvida, um ou dois problemas fundamentais, mas creio que não o fazes da melhor maneira. Com efeito, se não só há democracia para além do Estado, como podemos dizer que a democratização substitui ao poder seprado do Estado, ao poder dos governantes sobre os governados, o exercício do poder pelo conjunto dos cidadãos comuns, que só aceitam ser governados por um governo no qual participem como iguais, já não percebo muito bem o que pode significar o "comunismo para além da democracia" — pelo menos, se por isso entendes um regime que dispense o critério da participação igualitária de todos os interessados quando têm de ser tomadas decisões ou opções que a todos dizem respeito e a todos vinculam. E, para concretizar, a menos que digas que numa sociedade comunista deixarão de ser necessárias decisões políticas em matéria de gestão da economia e da produção, em matéria de ordenamento urbano e do território, em matéria de educação, formação e ensino e por aí fora, não vejo que outro critério que não o da deliberação e da decisão democráticas poderá essa sociedade adoptar. Poderia, de resto, recordar-te a este respeito algo que decerto não ignoras, mas que a tua argumentação deixa na sombra: a autonomia designa, em termos sociais e individuais, não uma sociedade sem instituições e sem lei, mas uma sociedade que se reconhece como origem das suas instituições e da sua lei e assume a responsabilidade correspondente, do mesmo modo que instaura modos de socialização dos indivíduos que os tornem capazes de distância e reflexão em relação à sociedade em que vivem, indivíduos que tenham aprendido a dessacralizar as próprias instituições que os criaram, etc., etc. Aqui chegado, creio que já tivemos uma discussão semelhante a este mesmo propósito e parece-me que teremos de a tornar a ter, se quisermos pelo menos clarificar as questões em jogo.

miguel(sp)

Ricardo Noronha disse...

Diria que o problema reside precisamente na definição do que a todos diz respeito e a todos vincula. Não me parece que a tua definição de autonomia, Miguel, seja para gravar na pedra, mas também não sinto a necessidade de aprofundar a discussão ao ponto de te dizer o que se fará a respeito de todos os aspectos da vida em sociedade. Limito-me a considerar que o comunismo é a eliminação/superação das diferenças que resultam das relações de propriedade e da separação dos indivíduos relativamente às condições da sua existência, de forma a que outras e mais relevante diferenças se possam exprimir, correspondentes à livre afirmação do que há de único e singular em cada indivíduo. E isso está, necessariamente, para além da participação igualitária nisto e naquilo, não cabendo no terreno da democracia, que é sempre o de uma igualdade formal e abstracta.

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,

escreves que "o comunismo é a eliminação/superação das diferenças que resultam das relações de propriedade e da separação dos indivíduos relativamente às condições da sua existência, de forma a que outras e mais relevante diferenças se possam exprimir, correspondentes à livre afirmação do que há de único e singular em cada indivíduo". Enfim, eu preferiria falar de "relações de poder" e de subordinação hierárquica, pois as "relações de propriedade" a que te referes — supondo que tens em vista a "separação entre produtores e meios de produção" — são apenas um caso particular, ainda que de grande importância do problema. Mas não é aqui que o ponto bate. Eu diria que aquilo a que chamas "livre afirmação do que há de único e singular em cada indivíduo" tem por condição necessária a democratização das relações de poder, embora, evidentemente, não possa ter lugar apenas no espaço público formal da decisão política. Ou, dito de outra maneira, no que podemos conceber de uma sociedade autónoma ou, mais imediatamente, da luta pela conquista da autonomia, o indivíduo, cada um de nós, não pode nem deve ser apenas um cidadão que participa entre iguais nas decisões comuns e no exercício democrático da deliberação governante — a dimensão da cidadania governante não é a única da existência nem absorve ou anula todos os outros modos de "livre afirmação" individual e/ou colectiva. Porque, bem vistas as coisas, uma sociedade democrática contém muito mais coisas do que as que cabem na sua ecclesia ou assembleia governante. E, mais ainda, porque a produção social-histórica do cidadão pressipõe a montante e a jusante da participação igualitária e formal nas decisões toda uma série de condições relativas ao modo de viver e procurar individual e colectivamente a "vida boa" que não cabem na ecclesia: pressupõe, por exemplo, uma ágora de relações colectivas informais, um reconhecimento e garantia pelas instituições de um espaço de "intimidade" e de "afinidades" que elas não regulam a não ser negativamente, etc., etc. Mas dizer que a democracia não esgota a "livre afirmação" do singular e do único e que esta está para além e para aquém do exercício da autonomia democrática não significa que essa livre afirmação possa dispensar a democracia ou que não tenha na autonomia democrática a garantia, não infalível decerto, mas mais eficaz das suas condições de existência.

miguel(sp)

João Bernardo disse...

Estive a ler os comentários. E assim se conseguiu que a propósito de um texto em que se chama a atenção, não na teoria mas nos factos, para a realidade transnacional do capital e para a necessidade de prosseguir num quadro além-fronteiras a luta da classe trabalhadora, senão ela não terá nenhuma eficácia, que a propósito de um texto assim nem uma palavra tivesse sido dirigida para o assunto. E a Grécia não é só um país de onde saem os capitalistas e de onde emigra a força de trabalho mais qualificada, é igualmente um país aonde chegam milhares e milhares de migrantes ilegais vindos através do mar, ou seja, é um país atravessado em ambas as direcções pela internacionalização dos trabalhadores. Mas os nefelibatas da política preocupam-se pouco com a realidade social da classe trabalhadora.

João Valente Aguiar disse...

João Bernardo,

Mas para a maioria da esquerda a classe trabalhadora não é uma abstracção? Para quê discutir as classes se podemos ter as nações?

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,
há pouco esqueci-me de acrescentar que a "livre afirmação do que há de único e singular em cada indivíduo" é uma "escolha" social-histórica e política por excelência. O próprio indivíduo deixado a si mesmo nunca se saberia exprimir nem como singular e único nem como coisa nenhuma. Garantir que cada indivíduo exprima, entre iguais, e potencie, entre iguais, uma afirmação semelhante pressipõe uma certa forma de sociedade e determinadas condições institucionais de formação do indivíduo. Noutras sociedades, a concepção da vida boa exigiria antes que cada um se esforçasse ao máximo por se dessingularizar e desunicizar, se me permites o neologismo. Daí que seja ainda mais estranho para mim que não vejas como a democratização das relações de poder é, de facto, uma condição necessária de qualquer reivindicação razoável de livre afirmação individual nos diversos planos da existência.

miguel(sp)