A leitura que os nacionalistas (vd. aqui e aqui) têm feito deste gráfico parece-me enviesada em vários aspectos. E demonstra como uma análise precipitada e unilateral tem por detrás consequências ideológicas muito mais profundas.
Por um lado, porque fazem crer que o euro apenas teria beneficiado a Alemanha. Ora, entre 2001 e finais de 2005, o desemprego cresceu de modo muito vincado precisamente na Alemanha... De facto, em 2008, as taxas de desemprego na zona euro, na França e na Alemanha eram muito idênticas e só com a crise de 2008-09 as taxas de desemprego começam a divergir. Ora, foi a crise económica e financeira, a maneira como cada país reagiu à crise e as diferentes estruturas produtivas que, articuladas no seu conjunto, despoletaram a disparidade que se tem verificado. Espantoso como em vez de defenderem uma convergência das políticas económicas e das estruturas produtivas da zona euro - o que criaria mais emprego e modernizaria a economia - os dois interlocutores acima citados acabam por só querer ver do euro o que lhes interessa. Goste-se ou não, o euro não começou em 2008. Quando a taxa de desemprego foi superior na Alemanha entre 2001 e 2008 também não vivíamos todos no euro e a economia alemã já não era nessa altura a mais poderosa economia da zona euro? Mais clarividência exige-se!
Por outro lado, as interpretações nacionalistas destes dados são aterradoras. Lendo o que o Nuno Serra e o Tiago Saraiva escreveram sobre o assunto fica-se com a impressão de que a diminuição do desemprego na Alemanha terá sido conseguida à custa do aumento do desemprego da França e da restante zona euro... Ou seja, colocam na concorrência entre trabalhadores a determinação da taxa de desemprego. Ou se se quiser, o euro estaria a servir uns trabalhadores (os alemães e os nórdicos) contra os outros todos... Não me parece inocente que a escolha de ambos tenha sido um gráfico sobre desemprego, uma dinâmica macroeconómica que afecta acima de tudo os trabalhadores e que, consciente ou inconscientemente, acaba por colocar trabalhadores alemães de um lado (os beneficiados), e trabalhadores do resto da Europa do outro (os prejudicados). Temos assim uma cisão provocada pela própria esquerda nacionalista que introduz um factor nacional de diferenciação numa condição de exploração económica que é transversal a todos os trabalhadores. Dá-se assim a substituição da discussão em termos de classes exploradas e classes exploradoras para a dinâmica de nações exploradas e nações exploradoras. Pode ser parecido para os mais desatentos, mas existe uma diferença colossal. Enquanto a dinâmica de classe estrutura todas as dimensões sociais e laborais a partir da exploração económica de que todos os trabalhadores são alvo dos capitalistas, a dinâmica nacionalista perspectiva a exploração em termos dos trabalhadores e dos patrões de um país que, em conjunto, explorariam, os trabalhadores e os patrões de outro(s) país(es). Em resumo, em vez de explicar dinâmicas socioeconómicas a partir de vectores da mesma natureza, o nacionalismo passa a explicar as dinâmicas socioeconómicas a partir de factores de ordem político-territorial.
Ora, para se ter uma ideia um tanto ou quanto diferente vale a pena verificar os custos unitários de trabalho entre Portugal e a Alemanha. Se as bases de funcionamento da economia capitalista descritas pelo Marx não são mais audíveis pela própria esquerda que se reivindica do marxismo, então ao menos que se atente no facto de a evolução dos salários dos trabalhadores na Alemanha, em termos de custos unitários do trabalho (que mede a relação entre os custos nominais do trabalho e o nível real de produção, em termos de ganhos de produtividade), ter sido inferior à registada em Portugal. Partindo de uma base 100 em 2005 verifica-se que os custos unitários na Alemanha em 2011 estavam em 105,3 e que nos anos de 2006, 2007 e 2008 chegaram mesmo a diminuir, face ao valor inicial, até aos 98,0, aos 97,2 e aos 99,4. Inversamente, em Portugal, para uma base própria de 100 verificou-se uma subida praticamente ininterrupta até 2011. Neste último ano, o nível atingido cifrou-se nos 106,6 e chegou mesmo aos 109,0 em 2009 (ver aqui). O que isto demonstra é que no caso alemão os salários foram crescendo e acompanhando a produtividade. Aliás, nalguns anos a própria produtividade cresceu acima do ritmo dos salários. Inversamente, em Portugal, a tendência dominante foi para que os salários subissem a um ritmo superior à produtividade. Nesse sentido, em termos do rácio entre o volume despendido em capital variável e o volume de mercadorias produzidas, a tendência foi claramente no sentido de cavar um fosso maior entre os trabalhadores alemães e as empresas onde trabalham. Ou como a esquerda de outros tempos gostava de falar, a taxa de exploração é maior sobre os trabalhadores alemães do que sobre os trabalhadores portugueses. Mas porque falo aqui de uma dinâmica social e económica como a exploração, e que os nacionalistas apenas concebem no plano moral ou territorial?
Na tabela seguinte que retirei daqui, verifica-se como a taxa de crescimento dos salários nominais (A) foi sempre superior à taxa de crescimento da produtividade (B).
1995 | 1996 | 1997 | 1998 | 1999 | 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A | 6,7 | 9,0 | 3,8 | 4,3 | 4,0 | 6,9 | 5,2 | 3,8 | 3,2 | 3,3 | 3,3 | 2,6 |
B | 5,8 | 3,6 | 2,4 | 2,6 | 3,1 | 1,8 | 0,2 | 0,1 | -0,7 | 1,0 | 0,2 | 0,2 |
Fonte: Olivier Blanchard, «Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, vol. 6, nº1, 2007, págs. 4-5.
Ora, neste cenário importa também referir que a perda de competitividade da economia portuguesa advém muito mais da sua baixíssima produtividade que, de acordo com dados retirados daqui, rondará os 30% da produtividade irlandesa e cerca de 40% da produtividade alemã. Refira-se ainda que, de acordo com os dados do Eurostat coligidos no link anterior, entre 1999 e 2011 a produtividade portuguesa média aumentou cerca de 11%, ao passo que a alemã aumentou em 16,5%, mesmo sabendo que a sua base de partida já era superior à portuguesa. Por conseguinte, é dos diferenciais de produtividade que surgem grande parte das discrepâncias económicas e laborais dentro da zona euro. E se parte dos diferenciais de produtividade derivam da evolução da zona euro, importa perceber então:1) porque a esquerda nacionalista sempre tão afoita a criticar a UE e o euro, raramente critica os capitalistas portugueses pela sua contínua aposta num modelo de baixa produtividade? Aliás, se até um economista da área do PCP como Eugénio Rosa lembra que até Junho do ano passado mais de 6.600 milhões de euros de fundos europeus para formação, aumento da competitividade tecnológica, etc. não foram utilizados, então porque a crítica política sobre a baixíssima produtividade da economia portuguesa só se confina à UE e não se alarga aos principais culpados dessa situação, os capitalistas portugueses? Nesse sentido, se algumas das críticas à UE e ao euro são justas, no sentido em que a UE não conseguiu contrabalançar o modelo económico de partida português, importa que elas assumam a igual responsabilidade dos capitalistas portugueses na manutenção de um modelo português pouco produtivo e sem uma recomposição tecnológica do seu parque industrial. Uma esquerda que se funda na crítica quase exclusiva a um sector dos capitalistas, ainda por cima, colocando a tónica no facto desses capitalistas serem alemães ou norte-europeus e não por serem.. capitalistas, então essa esquerda só pode ter como ambição uma aliança nacionalista entre os trabalhadores e sectores industrialistas e exportadores dos capitalistas portugueses. Nomeadamente, com alguns dos mesmos que até hoje mais têm contribuído para o atraso estrutural dos índices de produtividade da economia portuguesa;
2) porque um país como a Irlanda conseguiu, no quadro do euro, aumentar a produtividade em cerca de 41%, para o mesmo período entre 1999 e 2011 e de, em 2011, ter uma produtividade 22% superior à alemã, quando a sua base de partida, em 1999, era praticamente a mesma. Deixando de fora a questão da banca irlandesa, importa lembrar que o euro forte não foi nunca um problema para a contínua evolução positiva do sector produtivo-industrial irlandês. Nesse sentido, o euro valorizado actuou sobre uma condição estrutural produtiva já existente e desenvolveu em espiral a tendência que já estava imanente. No caso português, não conseguiu aproximar os índices de produtividade do resto da Europa. No caso irlandês, exponenciou uma base muito mais sólida. Por conseguinte, onde a esquerda deveria reivindicar (e nunca reivindicou) a existência de transferências compensatórias dirigidas especificamente para o desenvolvimento tecnológico das zonas mais desfavorecidas e menos apetrechadas tecnologicamente da UE, a esquerda nacionalista prefere colocar o problema numa ficcional exploração entre nações. Se esta fosse real como afirmam os nacionalistas, então a Irlanda não poderia ter crescido no quadro do euro, pois este estaria apenas destinado para favorecer a Alemanha (e eventualmente mais um ou dois países).
Do ponto de vista económico, o modelo que a esquerda nacionalista apresenta de aposta na desvalorização monetária será concretizado à custa de um aprofundamento ainda maior da exploração dos trabalhadores e de uma aposta nos mecanismos da mais-valia absoluta, como defendi aqui, aqui , aqui e aqui. Mas a crítica da esquerda anticapitalista não se pode circunscrever ao plano económico, apesar deste ser o seu ponto de partida.
Do ponto de vista político, o modelo económico que a esquerda nacionalista defende beneficiará exclusivamente determinados sectores exportadores nacionais e o novo Estado que pretendem construir com «uma liderança forte para que não houvesse nenhuma turbulência», de acordo com a limpidez de pensamento que sempre caracteriza o economista Jorge Bateira. Em simultâneo, ao erigirem outras nações como responsáveis de uma dinâmica totalmente derivada de processos classistas, os nacionalistas portugueses estão a contribuir para colocar trabalhadores contra trabalhadores, ao mesmo tempo que amarram os trabalhadores nacionais aos objectivos de determinados sectores das classes dominantes. Dentro deste triângulo a) de transformação da luta de classes numa luta entre nações, b) de divisão nacional dos trabalhadores europeus, c) e de aliança nacional entre trabalhadores e capitalistas, o que daqui germinar não será certamente uma alternativa de esquerda. Pelo contrário, são ingredientes imanentes a uma fascização da sociedade portuguesa. Como alguém escreveu há dez anos atrás, e com toda a razão, «não se pode fazer a crítica do fascismo em geral se não o reconhecermos como um nacionalismo de base proletária» (Bernardo, 2003: 217). Mesmo que venham posteriormente a ser tragicamente engolidos pelos nacionalistas mais à direita, é deste tipo de fascização que sectores nacionalistas de esquerda contribuirão para lançar se o seu projecto de saída do euro vencer.
1 comentários:
Caríssimo JVA, o que nos diz é evidente!! Consabido e elementar, apesar do esconjuro às evidencias por uns e outros!! A questão, pertinente, que se coloca, hoje e ontem, é a de como proceder à correcção - Se pela via real (inflação - desvalorização- moeda própria) ou se pela via nominal (euro) - isto pelo pressuposto, que hoje parece evidente e inelutável, da indisponibilidade, por ausência do crédito necessário e suficiente, para a correcção suave!! Ambas são vias penosas, como bem se pressupõe!! Do lado a que o caro JVA apelida de nacionalistas há um pressuposto que o meu caro JVA parece querer ignorar persistentemente, que se sustenta na experiência histórica de que a menor qualidade fiduciária da moeda e a sua sucessiva erosão determinarão uma dinâmica económica assente na troca e investimento forçados como forma de evitar a erosão natural do capital em moeda perecível avessa à lógica de acumulação nominal, ainda que a taxa de juro a possa de algum modo tentar compensar!! Do seu lado, onde creio estar a grande maioria das pessoas e onde, moralmente, me posso incluir, a virtualidade assenta na correspondência do rendimento com a produção de riqueza, uma espécie de padrão ouro avançado e o carácter de absoluta fidúcia oferecida à moeda com curso legal, impedindo a instrumentalização do esforço dos indivíduos na produção de riqueza.
Ambos os lados trazem pesadelos...
Estou em crer que o meu caro perde muito com os brocardos laterais do nacionalista / internacionalista, que pouca tem que ver com as verdadeiras questões!!!
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