Na sequência deste texto da Raquel Varela sobre o assunto, aqui fica um complemento à demonstração de que a actuação do PCP relativamente às primeiras greves de 1974 foi claramente a de as conter. Abaixo segue excerto de um artigo que publiquei aí há coisa de um mês no Passa Palavra e aqui reproduzo. Nesse texto citei apenas os exemplos da manifestação que a Intersindical convocou e que acabou por ter como uma das suas palavras de ordem "Não à greve pela greve" e da Lei da Greve de Agosto de 1974 aprovada pelo governo de Vasco Gonçalves. Como se poderá ler abaixo é interessante verificar que a legislação contra as lutas autónomas da classe trabalhadora tenha sido levada a cabo, pela primeira vez em democracia, por um governo de esquerda e liderado por uma figura próxima ao PCP. Seria bom que alguns meninos que se têm dedicado a amanteigar o PCP nos últimos meses se lembrassem do que lhes (e nos) aconteceria num contexto de fortes lutas sociais que escapassem ao controlo deste partido: condenação política das acções autónomas da classe trabalhadora, utilização dos sindicatos e das forças armadas para as controlar ou reprimir, legislação criminalizando os conflitos sociais que se dirigissem a tentar controlar a produção a partir dos próprios trabalhadores nos locais de trabalho e de forma democrática. A ingenuidade ou a cegueira em nome de alianças circunstanciais em nome de princípios vagos nas lutas que se têm desenvolvido e que se avizinham pagam-se caro. A Revolução de 1974-75 foi derrotada militarmente em Novembro de 75 porque antes houve quem conseguisse ajudar a inverter o processo de lutas autónomas que tinham estado em crescendo até meados desse ano.
Greve dentro da empresa: estação central de Correios em Maio de 74 (Lisboa)
«O papel histórico do PCP sempre foi o de, por todos os meios ao seu alcance, atacar as formas autónomas de luta da classe trabalhadora. E se se pensa que esse legado apenas se expressa no plano teórico, o erro de perspectiva não poderia ser maior.
Lembro apenas que no contexto de maiores lutas sociais em Portugal, o PCP atacou por diversas formas todas as iniciativas autónomas da classe trabalhadora nos anos de 1974 e 1975. E aqui podemos citar os comunicados na sua imprensa, que, logo nas primeiras greves registadas após a queda do regime fascista na TAP e nos CTT, o PCP as comparou torpemente a um “serviço” que jogaria em favor do retorno das forças do anterior regime. Cito só um exemplo dentre dezenas de possíveis.
«A arma da greve – que é um direito agora conquistado – não pode ser usada com leviandade. No contexto político actual é preciso esgotar outras formas de luta, tais como a negociação com o patronato, na obtenção das justas reivindicações e só então – com os olhos postos no que é fundamental e no que é secundário – a arma da greve deve ser usada como forma justa de vencer a resistência do patronato» (PCP, “O principal problema do momento político”, Avante, editorial de 31 de Maio de 1974).
No dia seguinte, portanto, a 1 de Junho, a Intersindical Nacional (a futura CGTP) realizou uma manifestação em que uma das palavras de ordem seria “Não à greve pela greve”. Ironia das ironias, a realização da manifestação no Dia Mundial da Criança só demonstra a maneira paternalista como o PCP sempre considerou os trabalhadores: seres incapazes de se autonomizarem política e socialmente por si mesmos e para quem as suas manifestações espontâneas de autonomia e de democracia organizativa mais não seriam do que birras infantis… E para que o poder paternal da burocracia partidária e sindical do PCP se pudesse impor, nada melhor do aceitar e apelar à participação do Movimento das Forças Armadas (MFA) no controlo dos conflitos sociais.
Neste quadro, não foi aleatória a aprovação da Lei da Greve de 27 de Agosto de 1974 pelo II governo provisório de Vasco Gonçalves (militar muito próximo do PCP) e José Costa Martins (um capitão de Abril) como Ministro do Trabalho. Entre alguns dos pontos, o dedicado às «formas ilícitas da luta laboral» – ou, por outras palavras, formas de luta autónomas – é o mais confrangedor para quem se dizia defensor dos interesses dos trabalhadores. O mesmo diploma legal proibia a «cessação isolada de trabalho por parte do pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa, com o fim de desorganizar o processo produtivo», bem como era «proibida a ocupação dos locais de trabalho durante a greve, sem prejuízo de poderem os grevistas formar piquetes externos com vista a assegurar que o trabalho não seja exercido por trabalhadores estranhos à empresa» e que «a greve deve ser obrigatoriamente precedida de um período de negociações e de tentativa de condições ou mediação com a entidade patronal nunca inferior a trinta dias» e só poderia ser convocada por sindicatos (veja aqui)».
Com a condenação legal das greves de gato selvagem (wildcat strikes) nas empresas, e com a condenação legal das lutas e das greves dentro das empresas o PCP e os governos de Vasco Gonçalves contribuíram de maneira decisiva para que o confronto do poder capitalista nas empresas deixasse de ocorrer dentro dos locais de trabalho. Doravante, nas próximas décadas, as lutas ficariam à porta das empresas e nas ruas. Com os conflitos afastados do espaço directo de produção (espaço por excelência onde se desenrola a exploração económica), os capitalistas poderiam finalmente dormir descansados.
2 comentários:
Muito bem, João.
Resta apenas sublinhar que no modo de acção que descreves está inscrito o modelo de sociedade ou de "construção do socialismo", de relações de poder e formas de governo, que o PCP visa. Diz-me como lutas e dir-te-ei o que queres - ou como queres exercer o poder. E é este ponto, a meu ver decisivo, que muitas vezes se perde de vista nas discussões sobre a questão de decidir se o PCP foi ou não "revolucionário", no sentido de ter procurado ou não, e em que momentos, tomar o poder ou assegurar nele uma participação dominante.
Abraço
miguel(sp)
Sem dúvida. O que o PCP defende enquanto modelo de sociedade é, bem vistas as coisas, uma aplicação do modelo sumamente hierárquico, repressor dos "inimigos internos" e sem espaço para qualquer contestação externa de base popular.
O que me pasma nesta situação toda é a tolerância com que algumas personalidades e organizações que desde há algum tempo e até recentemente criticavam com substância o PCP numa perspectiva democrática e libertária, e agora parecem fechar os olhos a todo o "património de luta" anti-autonomista do PC. Esquecendo-se que a tolerância não é assim tão recíproca como possa aparentar.
Um abraço!
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