A propósito da morte de Chavez, tenho encontrado aqui e ali algumas declarações elucidativas da abordagem com que muita gente que se considera de esquerda endereça ao ex-presidente venezuelano. Escolho duas delas: "Oh, ainda hoje chorei pelo falecimento do Chavez. Que não desapareça nunca! Que tudo o que o povo venezuelano tem mostrado nestes dias se prolongue por milénios!"; "Choramos a partida de El Protector". Também na caixa de comentários do blog de um destacado militante do PCP se encontra a inscrição de que haveria "mortos que não morrem". Dentre o rol de características totalmente opostas a uma noção democrática, ponderada e autónoma de lutas sociais (e, por isso mesmo, totalmente opostas ao princípio internacionalista de que "a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores") encontram-se: a solidariedade lacrimosa com o dirigente; a santificação de figuras políticas; a evolução de um processo político colocada nas mãos de um líder protector; a eternidade do líder enquanto o real portador de um projecto político.
Curiosa e tristemente, é na esquerda "revolucionária" e nacionalista dos últimos 100 anos que as manifestações de maior fervor emocional pelo falecimento de líderes paternalistas e protectores mais se fez sentir. Se os fascistas se notabilizaram por enaltecer a morte numa operação de profundo desprezo pela vida (quem não se lembra do delirante "Viva la muerte"?), a esquerda nacionalista de raiz leninista e/ou terceiro-mundista prefere canonizar os seus líderes entretanto falecidos. Se há óbvias diferenças, também há um campo comum irracionalista. Quando os mortos são o farol da vida então é porque a política já transporta algum grau de redenção escatológica. Claro que é legítimo cada um ver a política e a vida como melhor lhe aprouver. Duvido é que, por este caminho, alguma coisa se possa modificar nos fundamentos sociais do capitalismo, da exploração económica e da opressão política.
Quando um dirigente da esquerda é recordado fundamentalmente a partir de aspectos estritamente emotivos, então já se está no plano do irracional. A transformação que o "povo de esquerda" faz dos seus líderes em ícones religiosos e dos respectivos destinos post mortem em celebrações litúrgicas, só demonstra a penetração do irracionalismo no seu seio.
Há uns anos atrás a moda na esquerda era "ser-se ético". Hoje, com a deflagração da crise económica, e com o fim da panaceia do "capitalismo de rosto humano", há que distribuir fé em abundância onde a racionalidade parece escassear. Da moral dos "valores" à moral da fé há todo um cardápio de possibilidades e de imagens a escolher...
No entretanto, a reflexão crítica da ligação de Chavez (e de outros processos políticos) a temas, práticas e personalidades da direita mais extrema continua de fora do circuito de preocupações da esquerda... Para quê reflectir sobre isso se só faltam terços e cruzes para canonizar o santo venezuelano?
(cont.)
13/03/13
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15 comentários:
Completamente de acordo.
Um abraço,
Pedro
Caro João Valente Aguiar,
Subscrevo a sua crítica. São salutares a atenção e a acutilância que os autores do Vias (nomeadamente o João, o Pedro Viana e o Miguel Serras Pereira) dedicam às manifestações de adulação duma boa parte dos que se dizem esquerdistas.
Não percebo o que quero dizer com o seguinte, porém: "Quando os mortos são o farol da vida então é porque a política já transporta algum grau de redenção escatológica." Que essa «canonização» remeta para um ideário próprio dos caríssimos senhores da direita e que seja incompatível com uma democracia verdadeira, parece-me claro. Mas não entendo como articula aqui a conceito de redenção. (Não é que veja a coisa como um problema por querer reclamar uma redenção noutros termos ou algo nessa linha. Trata-se duma dúvida meramente discursiva, se quiser.)
Com cumprimentos democráticos,
José
Considero este post do Aguiar uma ofensa aos católicos.
Carlos Marques
Os católicos, bem ou mal, assumem a sua fé. Pior do que isso são os que se assumem como laicos e acabam por copiar boa parte do mesmo irracionalismo. Não sei até que ponto a fé de muita gente à esquerda não é, neste momento, emocionalmente mais forte e expressa de modo muito mais intenso em Chavez do que da parte dos católicos em Bento XVI ou em Francisco I... Basta pensar nas 24 a 36 horas que a população tinha de esperar na fila para ver Chavez em câmara ardente... Se isto não é fé, então o que é a fé?
Caro José,
por redenção quero falar em "salvação". Ou seja, não estou aqui a fazer evidentemente uma abordagem aprofundada a conceitos religiosos, mas parece-me que o facto de existir uma adulação aos "líderes" paternalistas e protectores (e que no caso de Chavez se exponencia com o seu falecimento), significa que a política é, para muita gente e acima de tudo, um espaço de debate moral. Não digo que não o possa ser, mas apenas secundariamente pois as coordenadas das lutas sociais dos trabalhadores foram sempre em torno de aspectos como os da exploração económica e da opressão política. Se assim é, ou seja se essa adesão à luta política se faz nalguma esquerda a partir do emotivo e do irracional, então as suas coordenadas passam em visualizar qualquer alternativa de sociedade a partir de marcos moralizantes, em que face às agruras da vida quotidiana, as soluções autoritárias e nacionalistas personificariam um escape redentor, de expiação pelas dificuldades anteriores. Mesmo que elas se mantenham em boa parte no plano material como tive oportunidade de abordar noutro texto linkado abaixo...
Cumprimentos!
Pedro,
Um abraço!
Obrigado.
Entendi, creio. Poder-se-ia dizer também — e não quero vergar esta leitura, que me parece adequadíssima — que a adulação dos queridos líderes poderá contemplar uma transcendência para os trabalhadorezinhos, incapazes, impróprios, carentes. O carácter redutor duma democracia assim configurada evidencia-se. Renovadamente obrigado.
Quanto à política enquanto espaço de debate moral, talvez discordemos. Mas não sei se o entendi bem. Se o que critica, por princípio, é uma sobrelevação da moral — da ética — que prefigure um político indissociável do ético enquanto modo de organização e de vida (à maneira aristotélica, se quiser), então creio que discordamos. Se se refere àquela moral de pacotilha, que se esgota no apupo ou na bajulação, então creio que concordamos.
Cumprimentos!
P.S.: Noto que creio muito (ou pouco). Sendo franco, do que não duvido é de que sou imberbe nestas matérias. Também por isso lhe agradeço e aproveito para estender o agradecimento ao resto dos autores do Vias, que sigo atentamente. (E já pareço um adulador.)
Caro José,
a crítica da sobrevalorização da ética em detrimento da política conduz-nos, por mais admirável que a moral em causa nos pareça, a um beco sem saída. Muito aristotelicamente, eu diria que uma ética consequente implica o reconhecimento do primado da política (a mais arquitectónica de todas as artes), pois que uma justa arquitectura das relações de poder na cidade é condição da moralidade e de qualquer aperfeiçoamento moral que consideremos. Qualquer moral é, com efeito, tributária de uma socialização e de uma formação dos indivíduos (paideia), que, por sua vez, só uma certa configuração das instituições e do governo da cidade podem assegurar. Isto vale tanto para a "moral oligárquica" como para a "moral democrática", tanto para a moral que afirma os direitos e o desenvolvimento da consciência individual, a participação e a cidadania activa, enquanto condições da "vida boa", como para a moral que subordine o indivíduo a instrumento de fins superiores, sobre os quais ele não tem o direito de se pronunciar. Em suma, a autonomia moral dos agentes humanos, a atitude crítica e interrogativa que essa moral implica perante a ordem existente, a justiça, os fins ou valores fundamentais, etc., é uma criação social-histórica singular, inseparável de condições que a moral individual por si só não pode fornecer. Esquematicamente, o solo que sustenta ou o húmus que alimenta o sujeito moral autónomo não pode responsavelmente ignorar as suas condições políticas de possibilidade. Em rigor, não há "moral privada" que não tenha a montante a instituição social da "intimidade", uma paideia que a estipule e torne possível. Creio que Aristóteles não diria coisa muito diferente - ou que, se o dissesse, não honraria suficientemente a sua própria ideia da "vida boa" e da ética correspondente.
Abraço
msp
Caro msp,
Como disse, talvez eu não tenha entendido o João Valente Aguiar. Pareceu-me que o João secundarizava a importância da moral na construção da cidade nos termos com que V. a fundamenta. Isto é, que, para o João, o caminho para a verdadeira cidade se desbravaria com a "mera" acção duma luta de classes encerrada sob si mesma. (A este respeito, poderá ripostar-se que a luta de classes convoca já uma organização da cidade que não descure esse político aristotélico ou quasi-aristotélico. Mas não creio que assim seja.) Por isso escrevi eu "sobrelevação", querendo referir-me a uma elevação quanto à consideração de hoje sobre a relação entre o político e o ético. Deveria ter escrito, pois, elevação (ou valorização, como é mais pertinente) e explicitado melhor.
Porque eu subscrevo, por inteiro, o que V. diz e escreve muito bem, como é seu hexis. O que eu defendo é, também, que esse bios politikos se ponha em actualização.
Abraço,
José
Ola,
Estou completamente de acordo com o que diz o Miguel Serras Pereira.
A separação entre ética e politica não é apenas um contrasenso, é uma ideologia, que pode ter sido util quando se tratava de combater a hegemonia de uma determinada "moral" de cariz religioso mas que, no fundo, assenta sobre pressupostos incompativeis com as raizes da esquerda, tais como a sacralização da liberdade individual numa perspectiva formalista, em detrimento da preocupação genuina de criar um espaço real onde ela se possa manifestar concretamente.
A politica é completamente ética, por definição e a melhor prova é que a separação entre politica e ética assenta, ela propria, numa visão moralista e, por sinal, anti-politica, das coisas...
Espera ai, vous ali abaixo ver se é mesmo isso que diz o Miguel.
Ja fui. Com certeza que é. Eu bem sabia !
Abraços éticos e politicos a todos.
Boas
A moral não é separável da política. Nem isso me interessa discutir.
Contudo, as lutas sociais têm resultados práticos muito precisos. E das duas uma. Ou transformam as estruturas sociais e políticas de tal modo que estas se passam a organizar em torno de relações solidárias, participadas e democráticas. Ou, de outro modo, são derrotadas e novas hierarquias surgem a partir do seu seio. Neste último eixo, os protagonistas da base percepcionam a realidade como se estivessem a concretizar o primeiro caso. Ora, quando na realidade ocorre o contrário, esses protagonistas tornaram-se em massas que apenas se agregam colectivamente em manifestações mas que não difundem novas relações sociais. Nesse contexto de retracção, o que mobiliza essas ditas massas é o seguimento de chefes e de líderes. O que me leva a colocar a aproximação aos líderes e aos dirigentes numa via irracionalista, pois que desfasada entre o que, no caso venezuelano, percepcionam por "soberania bolivariana" ou "construção do socialismo do século XXI e a realidade da sua transformação em carne para canhão na remodelação das hierarquias sociais. Esta sim protagonizada por novas elites, mas percebida pelos trabalhadores como "deles". O elo que liga os dois processos é, no caso chavista, e claramente agravado com o falecimento de Chavez, a moral enquanto escatologia de uma falsa libertação social. A questão da escolha do termo "moral" prende-se acima de tudo com um propósito figurativo, nomeadamente na forma como as "massas" populares e o "povo de esquerda" se agregam em torno de um líder recentemente falecido e já praticamente canonizado. Entretanto, as práticas políticas continuam intactas aos olhos dos seus próprios apoiantes entretidos que andam a chorar pelo santo padre Hugo...
Muito bem. Estou esclarecido. Subscrevo o que diz, então.
Cumprimentos seculares!
OK, parece então que estamos todos de acordo. A imagem de um cristo redentor não serve a politica, antes a oculta e a menoriza abusivamente. O facto de estarmos perante um cristo redentor Cheguevarizado não muda rigorosamente nada à questão.
Mas reparem que a galvanização em torno da imagem de um cristo redentor não é censuravel por ser moral ou ética, mas por ser ma moral e ma ética (porque é ma politica).
Boas
É isso mesmo, caro João Viegas.Difícil dizer mais e melhor tão lapidarmente.
Voltando um pouco atrás, aproveito a deixa para mais uma precisão: o sofisma dos que opõem e sobrepõem a ética à política torna-se evidente quando nos damos conta - e como não daremos? - de que uma ética laica não pode deixar de interrogar-se sobre as suas condições sociais de possibilidade e/ou existência, nem ser-lhes indiferente. Ora, estas condições sociais são por excelência e essência uma questão política maior, inseparável da questão do regime e forma de vida da cidade. O que faz com que, como procurei já mostrar, a depreciação ou ignorância da política em nome da superioridade da ética seja eticamente inaceitável.
Um abraço
miguel (sp)
Não é irracional, mas é dificil de entender, como é que um sociólogo e investigador, estranha que as pessoas (poderia dizer povo) tenham idolos que admiram e por vezes idolatram! Para além disso, nunca vi o pcp praticar o culto a personalidade a chavez ou a nenhum outro icone de esquerda.
Este artigo, assim como muitos outros do Dr. João, demonstram claramente o distanciamento que tem com sociedade portuguesa e pelos vistos com sociedade venezuelana.
Não acrescenta nada de novo e aparenta querer dar uma lição de ética e costumes aos "falsos revolucionários" e ao "povo venezuelano ignorante"!
Mas o mais incrível, como já disse, é um especialista da área não querer entender um vulgar fenómeno de popularidade de um líder político, simplesmente por si, querendo-lhe atribuir um significado para além do óbvio! Ou seja, o Dr. JVA pretende com as mais diversas casualidades mundanas justificar a sua cruzada contra a "falsa esquerda".
Pedro Martins
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