«Como a ideologia não só reflecte a prática mas permite também idealizá-la, Perón encontrou no plano dos discursos a estabilidade e a conjugação simultânea dos pólos extremos que lhe faltaram na prática. O justicialismo, explicado pela primeira vez por Perón em Abril de 1949, pretendia manter um equilíbrio mutável entre o materialismo, o idealismo, o individualismo e o colectivismo. Tratava-se de uma expressão perversa da realidade, que ao mesmo tempo lhe indicava os problemas e os resolvia num nível estritamente intelectual. Aí tudo é possível, mesmo o equilíbrio que materialmente foi impossível, e só um regime fascista que não conseguiu conjugar as forças necessárias ao fascismo poderia inventar o justicialismo. Dançando ora num pé ora noutro, Perón procurou realizar diacronicamente uma articulação social e política que só em sincronia podia resultar. O peronismo foi uma fuga em frente, um fascismo «a partir de cima» que perdeu o eixo conservador — o exército e a Igreja — e passou a apoiar-se apenas no eixo radical — o partido e os sindicatos — esforçando-se a partir daí por estabelecer o equilíbrio necessário ao fascismo enquanto regime, e jamais o conseguindo. Mas esta falta de consistência gerou paradoxalmente uma durabilidade histórica no plano da ideologia. E assim se enraizou entre os trabalhadores argentinos o mito do peronismo como bandeira da luta da sua classe quando ele pretendera ser o quadro de conciliação das classes, um caso de distorção da memória único nos fascismos, a tal ponto que em nenhum outro se mantiveram alas marxistas, pouco significativas numericamente, mas persistentes e muito activas no plano ideológico».
A segunda parte deste texto do João Bernardo sobre o fascismo do casal Perón pode ser lida integralmente aqui.
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