23/03/13

O conteúdo da forma - I

Inauguro hoje uma rubrica que espero cumprir com alguma regularidade aqui no Vias de Facto: a utilização de materiais audiovisuais como ponto de partida para reflexão de aspectos da vida social, política e económica. Há falta de melhor, "o conteúdo da forma" foi a única denominação que me ocorreu.




Na semana que terminou dois jovens universitários portugueses venceram um concurso internacional de produção de um video para a multi-badalada banda rock britânica Muse. Tendo recebido uma repercussão razoável nos meios de comunicação deste país, a esmagadora maioria das abordagens mencionaram apenas o engenho dos criadores do video como resultado de um putativo know-how luso. Felizmente o video vai muito para além da comemoração patriótica e o resultado é o que vai acima.

Em termos de leitura do video, chamo a atenção para a veia directamente política do objecto. Do meu ponto de vista, o video é muito bem conseguido na descrição das ambiguidades com que todo um senso comum de esquerda tem tido sobre a actual conjuntura social e económica: confusão entre capitalismo e especulação; omissão da exploração económica e sua substituição pela extorsão bancária; os problemas sociais derivados do dinheiro e não das relações sociais. Nesse sentido, a eficácia narrativa do video é máxima na descrição de aspectos estruturantes das ambiguidades com que a própria esquerda se tem confrontado.


Dos efeitos da desalavancagem bancária sobre as pessoas ao capitalismo sem crédito. Da mutilação provocada pela austeridade para repor os rácios de capital, à auto-fagocitação dos próprios especuladores. Do trabalho assalariado como o grande ausente do enredo à crítica do dinheiro. Das formas monetárias descarnadas de relações sociais. Do fetiche do dinheiro como pretenso móbil das acções humanas. Da passividade inata dos oprimidos que esperam a auto-flagelação dos poderosos para poderem exprimir-se. Certamente que os autores não realizaram o video a pensar nestas questões. Pouco importa a intenção. O que fica de qualquer obra de arte ou de qualquer objecto cultural é a sua estrutura de sentido. Essa é sempre mais rica do que o ponto de partida subjectivo de quem quer que seja.

1 comentários:

Xavier disse...

Para além de tudo o que já foi dito de forma excelente pelo João Valente, chamo a atenção para o fato de que a reação final dos oprimidos - que coroam a autoflagelação dos poderosos com o fogo - é apenas destrutiva e está longe de apresentar qualquer perspectiva de construção alterativa e autônoma de novas relações sociais. E isso, inevitavelmente, nos lembra que - no geral, é claro - grande parte das correntes de esquerda (com seus líderes) e mobilizações de rua (um pouco mais soltas) hoje provocam essa reação de vontade de "tirar esses políticos corruptos e que não nos representam do governo" e a sensação é de que apenas esperam que se troquem os governantes por "'gente mais honesta e competente". E isso que está, de fato, a nos flagelar e é nesse sentido que a força de trabalho é atingida tanto por seus patrões, como por suas organizações que deveriam ser o espaço de resistência.