23/03/13

Óscar Lopes:o testamento de um "cavaleiro da fé"

Tendo a pensar em Óscar Lopes como num marxista kierkgaardiano, que, tal como o pensador dinamarquês pretendia converter os cristãos a Cristo, intervinha animado pela vontade de converter os comunistas ao comunismo, mas fazê-lo, ao contrário de Kierkgaard, que desafiou abertamente a hierarquia da sua igreja, no interior do seu partido e a partir do seu "socialismo real". Aposta ainda mais arriscada do que a de Kierkgaard, uma vez que, para este, a conversão ao cristianismo passava pela ideia de que o cristão nunca poderia possuir-se nem pretender-se definitivamente tal, mas apenas tentar por tornar-se/devir cristão, devendo para isso romper com a inércia da igreja instituída— enquanto Óscar Lopes, "cavaleiro da fé" que não enjeitaria decerto a primeira parte de uma formulação semelhante sobre o "devir comunista", ambiciona converter os comunistas ao comunismo, não recusando e denunciando, mas reforçando as formas ou organizações que se reclamam da sua posse e dos termos de uma sua definição estanque. Não quero deter-me aqui nas consequências a que este "salto da fé" marxista acaba — tal como o outro — por conduzir e que, do ponto de vista político, comportam uma desvalorização ou subalternização da  autonomia democrática em benefício do mito de uma sociedade transparente, sem instituições nem leis, e, no caso de Óscar Lopes, também, de certo modo, sem morte. Mito de omnipotência e imortalidade que tem por efeito, ao mesmo tempo que o seu reconhecimento mais ou menos lúcido, na condição de ser retrospectivo, a absolvição e a aceitação preliminares de todas as injustiças ou crimes, sempre provisórios, da "igreja" que o mito consagra.

Castoriadis diz algures, referindo-se a Marx, que um grande pensador pensa sempre para além dos seus meios. E o caso de Óscar Lopes demonstrá-lo-ia também sobejamente. O seu pensamento, as ideias mais vivas que o animam, as perspectivas que abre, não se deixam esgotar por aquilo a que poderíamos chamar a dimensão ou conclusão mítica da sua visão, porque, até mesmo quando parecem resolvê-las, reactivam as tensões que os trabalham e inspiram.

Aqui ficam algumas linhas de uma sua leitura de Almeida Faria (cf. Os Sinais e os Sentidos. Literatura Portuguesa do Século XX, Lisboa, Caminho, 1986) que, escritas em 1966, poderiam ser o seu testamento e profissão de fé final, forçando a admiração de quem procura resistir à tentação do "salto da fé" que Óscar Lopes quis dar de olhos abertos e, ao contrário de muitos outros, sem dissimular o seu credo quia absurdum.

O sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana, que é mais ou menos comum a todas as mitologias antigas, e até pela Árvore edénica de Adão se representa, esse sonho implicaria, entre outras coisas, a ressurreição de toda a paixão histórica que alguma vez germinou desde que há vida. Isto é um absurdo. Mas isto é o único Happy End cósmico, a única escatologia que realmente interessa, pelo menos a pessoas como eu. Agradeço a Almeida Faria a revivificação do mito que mais amo, e que Teilhard de Chardin se esforçou por baptizar, dando-nos conta daquela ambivalência do Pecado Original, que já Milton tão bem exalta no Paradise Lost: o Pecado de desobediência à Ordem pretensamente Natural, Teológica, mas que é também o de cada revolução social ou simplesmente técnica e científica.

1 comentários:

Anónimo disse...

Maravilhoso comentário de MS. Pereira.Homenagem justissima e comovente a um pensador extremo, a um homem bom e cheio de sensibilidade activa e pletórica. Óscar Lopes foi muito activo na distinção em Maio 68 de dois jovens autores no prémio Inova/Almeida Garrett: MS Pereira( poesia) e M.Silva Ramos pelo romance " Os três seios de Novélia ". Tudo isso marcava e celebrizou uma viragem singular, frenética e profunda nas letras nacionais. Que depois o grande linguista e critico literário aprofundou de forma fantástica e única no panorama literário nacional. Pensa-se, por comparação, nas obras de Caio Prado Júnior, de Roland Barthes ou de Harold Bloom , face às quais, o seu incansável labor e determinação, se perfila de igual-para-igual. " Permanecer sensivel às condições iniciais, aos efeitos de turbulência, mas também guardar a sensibilidade face às condições finais, uma hipersensibilidade a essas mesmas condições finais, isto é, à predestinação e à fatalidade, a única forma de preservar uma Paixão pelo Acontecimento- do objecto e do acontecimento como destino, e não como factor objectivo "( Jean Baudrillard). Salut! Niet