20/06/10
Divagações à Esquerda
por
Pedro Viana
Desenvolver o ponto de vista que expressei no comentário que o João Tunes aqui transcreve, requer alguma clarificação prévia. Parece-me inequívoco que falharam as tentativas práticas da Esquerda, pelo menos de quem se reinvidinca de Esquerda, para substituir (através da omnipresença dum Estado centralizado) ou controlar (através da social-democracia) o Capitalismo (entendido como qualquer sistema em que a acumulação de capital é permitida de forma irrestrita). O Capitalismo é um sistema económico-social predador, incapaz de se auto-regular, gerador de instabilidade, e indiferente perante as consequências das acções dos seus agentes. E por isso falhou a social-democracia, mesmo nas suas variantes mais progressistas (implementadas nos países nórdicos), incapaz de resistir à ofensiva neo-liberal nascida na década de 70 do século passado. É uma enorme ilusão pensar que alguma vez será possível voltar às "gloriosas décadas" de 50 e 60, ao auge da social-democracia no Ocidente, até porque então, tal como agora, o sistema económico assentava numa exploração insustentável dos recursos naturais. Não é possível voltar atrás. O apetite dos agentes do sistema capitalista é incontrolável e insaciável, sendo por isso necessário e urgente substituir tal sistema antes que o desastre social e ambiental crescente se torne irreversível. O problema é que a única via até hoje efectivamente tentada (em larga escala), que passa pela omnipresença controladora dum Estado centralizado, implica ter constantemente medo da perseguição arbitrária e uma perda substancial da autonomia individual, condições que obstam ao pleno desenvolvimento pessoal. Novas vias são necessárias.
O que acabei de dizer implica que nem o PS (expoente cada vez mais baço da social-democracia em Portugal) nem o PCP (defensor do Estado centralizado como condutor da sociedade) têm interesse em implementar as políticas necessárias para criar um novo sistema sócio-económico, que na minha opinião deve assentar na extensão dos princípios da democracia participativa a todas as vertentes da vida em sociedade. Nem é previsível que tal mude. Em particular, o PS nunca tentará efectivar, por sua exclusiva vontade, qualquer mudança no sistema sócio-económico que faça perigar as actuais relações de poder. Simplesmente porque o PS há já muito tempo que é controlado por aqueles que entram nos partidos como forma de alcançarem mais poder pessoal, os quais nunca colocarão em causa o sistema político e sócio-económico através do qual ambicionam obter esse poder. O que aconteceu ao PS é um processo inevitável em qualquer movimento/colectivo, e a rapidez com que ocorre é proporcional ao poder que tiver quem o controlar. É por isso que a possibilidade dum movimento/colectivo implementar mudanças radicais após obter o poder para o conseguir está restrita a uma janela temporal muito estreita.
Portanto, o PS nunca será o veículo através do qual a Esquerda que pretende uma mudança radical do sistema sócio-económico conseguirá os seus intentos. Daqui decorre que não interessa a esta Esquerda, na qual me incluo, que o PS admita ser possível alguma vez repetir a maioria absoluta de deputados que obteve nas eleições legislativas de 2005. O PS tem de ficar numa situação de permanente resignação perante a necessidade de fazer alianças à sua Esquerda para poder alcançar o governo, criando-se deste modo a possibilidade (mesmo que ténue) de implementação de políticas de transformação sócio-económica radicais por pressão dos partidos mais à Esquerda com que o PS terá de se coligar. Idealmente seria que um outro partido se tornasse maioritário à Esquerda, sem o lastro daqueles que entram nos partidos para obter poder pessoal.
As actuais condições políticas e sócio-económicas têm o potencial para produzir rupturas no panorama partidário em Portugal. É exactamente a isso que temos assistido quer na Europa quer nos EUA. O que várias eleições têm demonstrado é que existe uma forte hostilidade aos partidos existentes, em particular relativamente aos que estão ou estiveram recentemente no governo, a qual se materializa no apoio a partidos vistos como marginais/exteriores ao sistema político, sejam eles pré-existentes ou novos. Estou convencido que se aparecesse um novo partido de Esquerda, talvez fruto da dissolução do BE numa nova estrutura que captasse militantes publicamente identificados com o PCP e PS (Carvalho da Silva e Manuel Alegre, respectivamente, seriam os melhores exemplos), alguns meses antes das próximas eleições legislativas, talvez já em 2011, seria possível a este novo partido disputar a liderança da Esquerda com o PS.
Chegados aqui, posso finalmente responder de forma mais directa ao João Tunes. Neste momento as sondagens sugerem que PSD, sozinho ou em coligação com o CDS, poderia obter maioria absoluta de deputados na AR caso as eleições legislativas se realizassem agora. Isto apesar do PSD não apresentar quaisquer políticas alternativas às do PS, fortemente impopulares, propondo pelo contrário reforçá-las, agravando os seus impactos sociais, caso chegue ao governo. Parece-me que a maior parte do eleitorado que pretende mudar o seu sentido de voto está a fazê-lo por razões que não são ideológicas, e talvez reconsiderasse a sua posição se ficasse ciente das consequências sociais da sua escolha. Esta situação só poderá ser alterada se PCP e BE mantiverem as suas críticas ideológicas às políticas do governo do PS, ao mesmo tempo que associam o PSD a essas mesmas políticas: ie. para que fique claro que só quem quer mais do mesmo, mas para pior, é que pode contemplar votar no PSD. O tempo corre contra o PSD, que não fossem as eleições presidenciais já teria feito cair o governo. Abdicar de criticar as políticas do governo e do PS não permitirá ao PCP e BE ganhar qualquer eleitor ao PS, pelo contrário, nem sequer aumentar a probabilidade de sucesso da candidatura de Manuel Alegre. Esta só tem a ganhar em se afastar do governo, pois a sua única possibilidade de sucesso é se fôr vista como marginal/exterior ao sistema político, apresentando Cavaco Silva como expoente máximo desse mesmo sistema. Uma frente de Esquerda, unida no seu apoio a Manuel Alegre, nem que fosse apenas na aparência, seria sempre implicitamente vista como apoiando (mesmo que envergonhadamente) o governo do PS, o que levaria à derrota do seu candidato.
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16 comentários:
Caro Pedro Viana: A social-democracia, " agência declarada do capital ", como lembrava Trotski,atravessa hoje uma crise tremenda e fatal, se bem que tenha resistido mais tempo histórico que as soluções estatistas degeneradas pela má aplicação do marxismo-leninismo através do globo...E o PS nacional dificilmente terá cura...por causa da sua periférica e anquilosada mediocridade e a ausência de valores humanos e culturais suficientes para imporem uma mudança radical. Por isso, a sua hipótese de o " PS ter ficar numa situação de permanente resignação perante a necessidade de fazer coligações à sua Esquerda ",não me parece muito exequível no sentido em que, o Pedro Viana, aponta para a construção de " Novas Vias". E depois o PC e o BE são estruturas quase monolíticas, onde os erros tácticos e os impasses estratégicos geram - com a lógica do desenvolvimento desigual que se aplica também à prática política, como é evidente- situações, de facto, de grave compromisso político e de cretinismo parlamentar. A opção ecológica pode ser dinâmica numa sociedade menos traumatizada e carenciada do que a portuguesa. Mesmo em França, a " nebulosa ecológica "de expressão politica transversal só agora parece encaminhar-se para a constituição de um pólo político estruturado, coeso e estável. Como se desenrola num perverso rame-rame - de nepotismo,corrupção e gravíssima crise económica e social -tudo leva a crer, sem espaço para dúvidas maiores, que iremos assistir nos próximos anos em Portugal aos efeitos de um pesadelo moral e político sem alternativa e hipótese de mudança, caso não se produzam rupturas efectivas no modo de pensar e fazer a política visando mais igualdade e mais liberdade.O que, o Pedro Viera, tem também o mérito de apontar e perspectivar. Niet
Pedro, excelente post.
Estou de acordo com quase tudo, mas não entendi o fim. Mais concretamente: com os dados que estão no terreno, o que «aconselhas» então à esquerda (restrita, aqui: PC, BE, etc.) na próxima campanha das presidenciais? Ausência, não apoio a quem quer que seja? Um outro candidato?
Talvez me tenha escapado algo.
Caro Niet,
Também não estou optimista, em particular devido às resistências óbvias de quer PCP quer BE, o qual ainda assim apresenta maior abertura ideológica, a encetarem uma profunda revisão programática que incorpore as propostas de transformação radical dos sistemas político e sócio-económico que surgiram nos últimos 30 anos. No entanto, a não ser que coloquemos a hipótese do golpe de Estado como modo de obter os meios para induzir a mudança, com os riscos inerentes de desvio cuadilista, não há outra via que não actuar dentro dos constragimentos da actual sistema político. O que implica que os partidos continuam a ser a única via para induzir uma mudança sistémica. Isto não quer dizer que não haja outros modos de influir o curso de acontecimentos, mas sim que toda a acção acabará por ser inútil se não tiver repercussões no interior dos partidos e na sua performance eleitoral.
Cumprimentos.
Sim, meu caro Pedro, mas a tua resposta ao Niet não impede que uma das condições daquilo que apesar de tudo é comum e mais importante no que tu próprio e o João Tunes defendem não tenha de passar por partidos/movimentos/formas de organização institucionalmenmte alertnativas - seja através de uma transformação das organizações existentes, seja através da criação de outras.
Quanto aos outros pontos, talvez eu volte à discussão mais tarde. Mas para já, só três notas:
1. É inconcebível qualquer alternativa política de ruptura/transformação democrática com ou do regime actual que não passe pela mobilização da área do PS e pela capacidade que tivermos de a interpelar.
2. A solução tipo "socialismo real", que justamente denuncias, concretizou-se num regime em que todos os traços decisivos do capitalismo ocidental, enquanto regime e economia política de classe, se mantiveram e agravaram: separação entre os produtores e os meios de produção, desigualdades de poder no que se referia à disposição das alavancas do poder económico, confiadas quase sem restrições à burocracia governante, eliminadas ou radicalmente erodidas que foram pelos regimes em causa as organizações de defesa dos trabalhadores e cidadãos em geral, etc., etc. De onde, muito rapidamente, se segue que, não tendo o PCP no essencial repudiado esse modelo, mas tendendo antes, e nos últimos tempos mais vigorosamente do que antes, a adoptá-lo, quer como horizonte histórico, quer em termos de prática imediata (organização interna, gestão das lutas, linha sindical, etc.), a sua direcção deve, nas nossas contas, ser somada à do PS como obstáculo maior a tudo aquilo a que possamos chamar uma reanimação e redefinição de uma acção política participativa e igualitária capaz de marcar a agenda política e de travar a ofensiva da oligarquia governante.
3. Resta pois a hipótese da dissolução do BE ou da sua transformação profunda através da fusão num movimento mais vasto e, sobretudo, desembaraçado da reprodução da ordem institucional existente e das formas de organização hierárquicas associadas à política profissional. A emergência, sob uma ou outra forma, de uma alternativa deste tipo (através de uma organização ou da associação de várias organizações, não obrigatoriamente coincidentes com um partido) parece ser de facto a condição de possibilidade de uma "revolução" nas áreas de influência PS e PCP, à falta da qual a situação actual e as relações de força em favor da oligarquia governante tenderão a consolidar-se e a impor a sua vontade e direcção da economia e do Estado.
Abraço para ti
miguel sp
Olá Joana,
Quanto às presidenciais, acho que Manuel Alegre (MA) beneficiará se: (1) quer BE quer PS optarem por se apagarem da campanha presidencial, evitando por exemplo que quer Louçã quer Sócrates apareçam juntos com MA, incentivando no entanto os seus membros a apoiarem activamente a candidatura de MA (ie. esta tem de ser vista efectivamente como extra-partidária, porque o eleitorado valorizará tal e como modo de ultrapassar o paradoxal apoio simultâneo de BE e PS); (2) o PCP propuser um candidato próprio, de preferência que não seja militante do partido, para evitar a fuga para a abstenção na 1a volta de parte do eleitorado de Esquerda, e portanto aumentando a probabilidade de haver segunda volta (até porque quer MA que Cavaco Silva vão disputar a 1a volta no centro político, porque sabem que é esse eleitorado que vai decidir se há ou não 2a volta).
Votarei de certeza MA numa 2a volta, apesar da pessoa não me entusiasmar do ponto de vista ideológico e em termos de personalidade. Voatrei de certeza na 1a volta em alguém que não Cavaco. Em quem dependerá da lista final de candidatos.
Um abraço,
Pedro
Caríssimo Pedro Viana: Gostava que nos revelasse mais os seus fundamentos teóricos, que são muito apreciáveis. Eu tenho andado numa roda-viva nas últimas semanas a reler os grandes clássicos do M-L.: Rosa Luxemburgo e L.D. Trotski.E tudo porquê, a que fim: por causa da grande obra de Castoriadis, claro! O P. Viana coloca a hipótese da formação de um novo partido à esquerda do PCP? Com a " nata " do PS e do BE- que dificilmente já coabitam - e onde, muito dificilmente, se descortina uma ideia composta, estruturada e trabalhada sobre o futuro de Portugal e dos portugueses? Os políticos portugueses sofrem( e fazem sofrer) muito por causa da sua ignorância, meu caro P. Vieira. Veja-se,para não irmos mais longe, o processo de lenta e irredutível " integração " de MM. Carrilho? Como é possível o " introdutor " abalizado e admirável em Portugal de Deleuze,Foucault, Rorty e Cavell, entre muitos outros, ter aceite o " exílio " dourado na UNESCO, ter " arrumado " a luta ideológica contra Sócrates e começado a citar Attali e Lipovetsky? E há mais casos emblemáticos, como sabe. Eu não sou pessimista, tento é não ser muito realista.Como sublinha G. Debord -citando Homèro - " uma geração de homens passa tão depressa como uma geração de folhas de árvore ". Salut! Niet
Entendido, Pedro, obrigada.
Olá Miguel,
Concordo com tudo o que dizes. Relativamente ao ponto 1, não se deve confundir as pessoas que ideologicamente se situam na "esquerda moderada", e que habitualmente votam PS, com as suas estruturas partidárias. Estas não são apenas imunes mas também hostis, a qualquer apelo a mudanças programáticas que ponham em causa as actuais relações de poder na sociedade. O PS não é reformável. Portanto, a estratégia à Esquerda deve ser levar as pessoas que habitualmente votam PS a mudarem o seu sentido de voto, até ao ponto em que o PS fique dependente de forma permanente do apoio parlamentar de outros partidos de Esquerda para formar governo. Como "partido de poder", há medida que tiver cada vez menos deste para distribuir pelos membros das suas estruturas, o seu suporte social poderá mesmo esvaziar-se repentinamente levando ao seu colapso.
Em relação ao ponto 2, é verdade que o PCP parece mais impermeável que o PS à mudança ideológica e programática. Mas não nos devemos esquecer que o PCP assume-se como contra o actual sistema sócio-económico (apesar de não tão profundamente como gostaríamos, concordo), o que mantém entreaberta a porta em termos ideológicos a todas as vias que partilham essa raiz comum. Creio que uma evolução geracional pode induzir mudanças programáticas, e uma maior abertura ideológica. O PS, pelo contrário, está no poder, partilha o poder, e assume-se como pretendendo apenas "melhorar" o actual sistema sócio-económico. Assim, quer ideologicamente quer estruturalmente o PS não estará nunca interessado em sequer contemplar qualquer mudança programática que ponha em causa o poder politico que partilha com outros, e que dá acesso ao poder sócio-económico.
Um abraço,
Pedro
Pedro Viana,
Foste claríssimo. As nossas diferenças/divergências mais claras ficaram ainda. E julgo que a nossa "desgarrada" atingiu os seus objectivos. Tanto mais que outros se juntaram ao debate.
Abraço.
E é para debater, e identificar o melhor modo de agir, que aqui estamos.
Um abraço,
Pedro
Caro Pedro,
o ponto a debater entre nós parece-me o seguinte. Se acho como tu improvável que o PS mude de programa e se auto-transforme democraticamente, entendo que, sem renunciarmos a esse juízo nem o escondermos, não podemos limitar-nos a ele quando interpelamos a área socialista. Aos que, nessa área, não desistiram de pensar na construção de um poder democrático participado pelos cidadãos na base de uma igual liberdade de intervenção e proposta para todos, temos de pedir e podemos exigir que ajam em consequência dentro ou fora do PS, insistindo em que é manifesto que a direcção do partido tudo tem feito no sentido de reforçar a situação existente e de combater qualquer perspectiva de democratização económica e política (e uma coisa porque outra). É uma questão ao mesmo tempo de ética democrática e de eficácia na comunicação e na reunião das condições do debate.
Quando escreves, por outro lado, que "o PCP assume-se como contra o actual sistema sócio-económico (apesar de não tão profundamente como gostaríamos, concordo), o que mantém entreaberta a porta em termos ideológicos a todas as vias que partilham essa raiz comum", não posso deixar de discordar da formulação. O que a política do PCP actualiza e prefigura é um "regime em que todos os traços decisivos do capitalismo ocidental, enquanto regime e economia política de classe, se mantiveram e agravaram: separação entre os produtores e os meios de produção, desigualdades de poder no que se referia à disposição das alavancas do poder económico, confiadas quase sem restrições à burocracia governante, eliminadas ou radicalmente erodidas que foram pelos regimes em causa as organizações de defesa dos trabalhadores e cidadãos em geral, etc., etc.". A recusa liminar desse modelo e da transposição na acção presente e quotidiana da sua lógica e princípios é condição de qualquer combate consequente por uma alternativa ao poder oligárquico e à sua consolidação antidemocrática em curso, a favor das oportunidades que a crise lhe propicia. De um modo geral, na área de influência do PCP, encontramos uma tensão variável entre um pólo radicalmente democrático de recusa e revolta perante a ordem estabelecida e um pólo que aponta exactamente no sentido oposto, nos termos que acabo de descrever. Deveríamos, pois, na interpelação das bases sob a hegemonia do PCP, não pedir-lhes que renunciem à radicalidade da transformação visada (que é o método social-democrata padrão), mas ter presente esta síntese da questão proposta por Castoriadis: o militante ou simpatizante do partido "está condenado a dizer uma coisa e a fazer o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, (…) Mas (…) aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma ''ilusão revolucionária', acreditam de um modo geral que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária. É por isso que um comunista que descobre a monstruosidade do 'comunismo realizado' pode soçobrar psiquicamente, ou tornar-se social-democrata, oiu manter um projecto de transformação social radical desembaraçado do mmessianismo marxista-bolchevique" (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva. Entrevistas e Debates, 1974-1997, Lisboa, 90 Graus, 2006, p. 300). Ora, sendo assim, o que há a fazer é opor à superstição messiânica e ao fetichismo da organização esclarecida e benemérita, as aspirações democráticas originais, explicitando as suas consequências no plano da organização e da acção.
Enquanto não soubermos desenvolver esta luta em duas frentes, é de prever que o círculo vicioso se reproduza com uns absolvendo ou desculpando as incoerências do PS em nome da necessidade de não dar armas aos defensores do modelo do "socialismo real", enquanto outros permanecem cegos perante a natureza classista, hierárquica e regressiva do mesmo modelo, para não imitarem o PS na sua adesão ao actual estado de coisas.
Um abraço
miguel sp
Caro Miguel,
Mas nunca o PS fez algo que não fosse, como afirmas a propósito da actual direcção, "(...)no sentido de reforçar a situação existente e de combater qualquer perspectiva de democratização económica e política (e uma coisa porque outra)." O PS nunca foi sequer um partido reformista, como o foram partidos históricos da social-democracia e trabalhismo europeus. O PS herdou o legado duma revolução feita à Esquerda, e desde então tem-se limitado a geri-lo, quando não o está a desbaratar. E por isso duvido que hoje alguém que pretenda mudar o actual sistema político e sócio-económico (mesmo que moderadamente) se filie ou se torne simpatizante do PS. Isto não invalida que não haja possibilidade de diálogo com tais pessoas, mas não creio que daí resulte algo de relevante. Mais importante é assegurar que quem está realmente disponível para seguir vias de transformação radical do sistema vigente, é convencido pelas nossas propostas. E não tenho grandes dúvidas que hoje a grande maioria dessas pessoas está no BE, ou gravita à sua volta. Enquanto estas pessoas, e o BE por arrasto, não se convencerem da necessidade duma mudança na ênfase que dão aos passos necessários para induzir a necessária transformação político-social, não há grande esperança que outros o façam. O nosso esforço deve por isso ser colocado aí. Só depois será possível pensar mudar as convicções politicas do resto das pessoas que se consideram de Esquerda. Chamar-lhe-ia a estratégia da mancha que se espalha :0)
Quanto ao PCP, a afirmação que mencionas de Castoriadis, "(...)aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma ''ilusão revolucionária", sintetiza o que tentei antes afirmar. As pessoas que constituem o suporte político-social do PCP já estão imbuídas duma predisposição para a necessidade de mudança radical, "bastando" demonstrar-lhes que a via para o conseguir deve ser diferente da que tem sido defendida por sucessivas direcções do partido. Em contraste com os simpatizantes e militantes do PS que nem sequer estão ainda convencidos da necessidade de mudança sistémica.
Quanto à luta, não basta chegar às pessoas e dizer-lhes que estão errados nas suas convicções políticas. É preciso dar-lhes uma alternativa. Aliás, acho que é mais profícuo afirmar ideias pela positiva, permitindo às pessoas "esquecerem-se" que já estiveram enganadas, do que como resultado do confronto, que gera resistências derivadas da dificuldade que todos nós temos de aceitar que estamos errados. Mas, falta uma alternativa radical do ponto de vista politico e sócio-económico que se afirme de modo consensual no seio de quem hoje a procura activamente... esse é o primeiro e indespensável passo para se chegar ao fim.
Um abraço,
Pedro
Sim, camarada Pedro. Vamos avançando pouco a pouco.
Do que escreves, sublinho as conclusões, quando dizes que: "Quanto à luta, não basta chegar às pessoas e dizer-lhes que estão errados nas suas convicções políticas. É preciso dar-lhes uma alternativa. Aliás, acho que é mais profícuo afirmar ideias pela positiva, permitindo às pessoas "esquecerem-se" que já estiveram enganadas, do que como resultado do confronto, que gera resistências derivadas da dificuldade que todos nós temos de aceitar que estamos errados" - e concluis que "falta uma alternativa radical do ponto de vista politico e sócio-económico" que novas forças coordenadas ou convergentes logrem afirmam em comum.
Quando falo, por outro lado, em interpelar a área do PS ou do PCP, refiro-me tanto às palavras como à acção, ou melhor e sobretudo à reflexão e debate internos à acção, veiculados por ela, dela inseparáveis.
No entanto, o problema da área do PS é mais complexo do que pareces supor. Ainda que a tua caracterização histórica do partido não fosse um pouco sumária, o que acontece é que essa área correspnde a uma vasta camada de elementos assalariados e populares sem a qual e contra a qual é impossível fazer democraticamente seja o que for. E justamente essa área terá de ser interpelada pela positiva e não intimada a abjurar das suas convicções como condição preliminar de participação na luta comum. Já hoje, não são assim tão poucos os que contestam a política do Governo alegando a fidelidade às razões que os fizeram militantes, simpatizantes ou votantes do PS.
Do mesmo modo, quanto ao double bind da áera do PCP, acho extremamente improvável que este se possa resolver na direcção que desejas sem ruptura com o partido, ou sem uma transformação interna da sua identidade radical - e, até mais ver, não menos radicalmente combatida pela hierarquia da organização.
Finalmente, se a área difusa que tem alimentado o crescimento do BE é mais aberta a uma nova maneira de fazer política, não é menos verdade que o próprio BE se tem vindo rapidamente a aproximar de um partido de competências, estrelas e políticos profissionais, que mantém com as bases e o exterior uma relação absolutamente conservadora. Pelo que a interpelação da sua área de influência terá de ser tão crítica como o que acima ficou dito a propósito das áreas do PS e do PCP.
A discussão continua.
Cordial abraço
msp
Caro Miguel, o que eu defendo é que o PS nunca será um veículo para a indução de qualquer mudança radical do sistema político e sócio-económico. Devemos interpelar, preferencialmente pela positiva, todos os que se caracterizam como sendo de Esquerda, ou seja, que assumem como um dos seus objectivos politicos centrais uma sociedade mais igualitária, independentemente das suas simpatias partidárias. Mas para induzir a mudança não basta debater, também é preciso agir. E o PS será sempre antes de mais um obstáculo às políticas necessárias para iniciar a mudança. Sim, devemos interpelar militantes e simpatizantes do PS, mas se depois de convencidos nos perguntarem e agora o que fazer, acho que a resposta deve ser: juntem-se a nós pois o PS é irreformável.
Quanto ao PCP, já houve alturas em que a renovação ideológica e programática teve sérias possibilidades de triunfar. Não aconteceu, mas é muito provável que essas tensões internas voltem a reacenderem-se. O PCP não é um partido tão monolítico do ponto de vista ideológico como por vezes quer fazer crer. Neste caso, a minha resposta a alguém na mesma situação acima descrita já não seria tão peremptória.
Sim, o BE parece estar a deixar-se levar pelo prazer da intervenção parlamentar, fechando-se num círculo que se entretem cada vez mais com a trica política em detrimento da mobilização ideológica da população. Mas é, ainda, o veículo partidário através do qual ideias como as que temos vindo aqui a debater terão maior probabilidade de ser alguma vez implementadas.
Um abraço,
Pedro
Pois é ... os cidadãos reais têm destas coisas: trabalham e por vezes não têm muito tempo; e alguns trabalham em regiões do globo onde a Internet chega ainda com muitas limitações (por exemplo Angola, onde estou); e por vezes deslocam-se a zonas onde a Internet ainda não chega (como as "chanas" do leste, onde fui).
Razões de sobra para só agora aqui vir debitar dois ou três desabafos de estado de alma.
1 - Penso que este é o debate que é necessário manter e aprofundar. De forma mais continuada e menos intermitente. Talvez se justifique até um blogue mais especializado e mais distante do fais-divers.
2 - Creio que foi o Niet que disse atrás estar empenhadíssimo a reler Rosa Luxemburgo e outros. Aí está algo - estudar e depressa - que também me parece mais importante que nunca. E para que os partidos tradicionais - talvez com excepção do PC da clandestinidade - nunca tiveram espaço ou interesse.
3 - Saber se a adesão a novos ventos será mais provável das bandas do PS, do PCP ou do BE? - aí está algo que me interessa pouco. O que me parece importante é perceber como devem ser esses novos ventos e como devem soprar. Independentemente da preocupação - o que seria já uma cedência táctica - de quem seja desejável ou previsível que venha.
Até já que ainda tenho os outros posts todos para ler.
nelson anjos
Nelson Anjos, caríssimo companheiro: Sublinha, e bem, o essencial: sem a extensão qualitativa da teoria revolucionária, não pode existir mutação que valha nas movimentações revolucionárias!Cito de cor Castoriadis, mas também me posso recorrer do admirável Pierre Kropotkine que assinalava numa das suas " Mensagens à Juventude" que, " desde que tenhamos a vontade, um momento será suficiente para que se faça Justiça ! ". Meu caro, cada noção, conceito ou palavra de ordem levanta uma interrogação teórica na interpretação política, hoje. Isso puderá porventura limitar-nos no trabalho concreto da luta e suas expressões diversificadas no terreno,concreto e real? " Fazer, fazer um livro, uma criança ,uma Revolução, fazer-tão só, é projectar-nos numa situação a devir que se abre por todos os lados em direcção do desconhecido, que não podemos possuir a priori em pensamento,mas que se deve obrigatoriamente supôr como definida para o que importa quanto às deliberações do momento ",C.Castoriadis, I.I.da Sociedade. Editions Du Seuil-Poche. Niet
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