08/06/10

Hoje, dia a dia, todos os dias

Uns dizem-nos que para distribuir a riqueza é preciso produzi-la e que, para a produzir eficazmente e sem crises que perturbem a eficácia produtiva, é necessário distribuí-la desigual e hierarquicamente, sob a direcção dos que já a possuem muito acima dos outros, porque são esses os mais capazes de a produzir cada vez mais.
Outros dizem-nos que para democratizar as instituições, eliminar a distinção entre governantes e governados, permitir a igualdade da participação de todos os cidadãos na deliberação das decisões e no exercício do poder político, é necessário, primeiro, educar as massas nesse sentido, prepará-las para que sejam capazes de o fazer devidamente, o que implica dirigi-las com uma autoridade forte e mão de ferro, se necessário, combatendo as falsas representações e falsas interpretações dos seus próprios interesses que se opõem ao amadurecimento, entre as mesmas massas, das condições da liberdade.
O problema desta maneira de ver as coisas é que a igualdade, a liberdade e a responsabilidade da autonomia ficam sempre para depois - ou para a prosperidade futura, ou para os amanhãs que cantam, enquanto estes, uma e outros, todos os dias matam o dia de hoje ou dia a dia nos matam. Acontece, de facto, que, nos termos em que é justificado, o adiamento é sempre justificado para sempre, é sempre eternamente justificado. Porque a riqueza produzida nunca será tanta que não possa ser maior antes de se começar a distribuí-la - do mesmo modo que as condições da democracia e a consciência das massas nunca estarão tão perfeitamente maduras que não seja possível, e por isso recomendável, torná-las mais perfeitas, melhorar a sua qualidade.
O mais razoável - e, nas condições do momento, sermos mais razoáveis é urgente se quisermos evitar o pior - será portanto deixarmos desde já de adiar a igualdade em nome da superioridade produtiva (de resto, indemonstrável) da desigualdade, e impormos desde já a extensão da participação, da responsabilidade e da organização democráticas contra a autoridade dos legítimos superiores e das direcções não mandatadas, onde quer que esta se exerça, se não queremos continuar a ser governados sem governar.

10 comentários:

Maria Augusta disse...

Pode ser que agora o entenda se explicar o seu último parágrafo.
O que significam todos os “desde já”? Quais foram as concretizações do que escreve na SUA vida ontem, 7 de Junho e hoje 8 de Junho? O que propõe para amanhã dia 9, para o mês que vem etc.? Para além de escrever neste blog e de conversar com os amigos.

Miguel Serras Pereira disse...

Maria Augsta,
o que eu digo é que devemos começar a exigir democracia e igualdade desde já, e evidentemente não digo nem sugiro que sei a maneira ou a receita de para fazermos tudo ao mesmo tempo. Mas remeto-a para a resposta ao Fernando na caixa de comentários do meu post de ontem.
Quanto às suas perguntas pessoais, onde creio adivinhar - e desculpe-me se engano - uma pitada de impertinência e dois dedos de petulância, não tenho a mais pequena obrigação de lhe responder e não sei, de resto, como, sem ter conhecimento concreto que lhe permita pronunciar-se, você parece supor à partida que, nas actividades e iniciativas políticas e associativas em que participo, não procuro actualizar as minhas ideias.
Boa noite

msp

Anónimo disse...

Caríssimo MS Pereira e todos em geral: Saúdo a tua audácia e vontade plena de galvanizar o despertar da consciência democrática de cada um. Só que, apesar de o querermos e desejarmos considerar como deve ser, o teu " optimismo histórico ", não deve apagar os traços do que, numa escrita clara e tecnicamente superlativa, Victor Serge indica como o " grande perigo interior da Revolução de Outubro ", onde prova a sua extraordinária independência e heterodoxia políticas.Ora vamos lá ver: " A realização integral do programa bolchevique conduzir-nos-à ao comunismo ibertário. O perigo do Comunismo de Estado- mesmo realizado e concebido como programa- é que o Estado pode-se obstinar a prolongar a sua existência. Se nos cingirmos ao método histórico, isso parece-nos mesmo provável. Nunca se viu uma autoridade consentir em auto-extinguir-se.
O Estado socialista - que se tornou todo poderoso pela fusão do poder político e do poder económico- servido por uma Burocracia que não hesitará a usufruir de privilégios e defendê-los, não desaparecerá por si-próprio. Os interesses agrupados em seu redor, serão muito grandes. Os próprios revolucionários terão de recorrer, para o desenraízar e destruir, a uma acção revolucionária longa e difícil.
Todo o governo revolucionário é,pela sua própria natureza, conservador e um pouco retrógrado. O poder atrai invencivelmente os oportunistas, os politiqueiros, os autoritários de instinto( variedade psicológica do explorador), os atrevidos. Esta multidão composta essencialmente de contra-revolucionários, afasta automaticamente do poder os espíritos livres, os caracteres rigorosos e simples, os homens que sofrem com a intriga e o arrivismo. Isso constitui, em suma, o grande perigo interior da Revolução ". Que metáforas prodigiosas, que feeling puro e activo a puxar para o combate! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
da tua citação de Victor Serge sublinho, sobretudo o seguinte: "Nunca se viu uma autoridade consentir em auto-extinguir-se.
O Estado socialista - que se tornou todo poderoso pela fusão do poder político e do poder económico- servido por uma Burocracia que não hesitará a usufruir de privilégios e defendê-los, não desaparecerá por si-próprio".
É por isso também que insisto no exercício democrático do poder através da auto-organização dos cidadãos. É por isso que a legitimidade democrática de um governo é proporcional ao grau em que os governados sejam ao mesmo tempo governantes, participem em pé de igualdade na sua acção.
A acção política democrática opõe-se à política profissional.

Abrç

msp

Anónimo disse...

Caro MS. Pereira e todos em geral: Sem foguetes nem bombos,tento ajudar a construir um fio vermelho de análise e interpretação para a necessidade de Revolução. Evitando com querer e vontade os erros históricos das experiências políticas anteriores e, o que me parece mais importante, combater e evitar o fenómeno de ´homogeneização total da sociedade`, que, como indica Castoriadis, constitui, de facto, o " horizonte do pensamento de Marx( e esta ideia concretizou-se, alterando-se no seu oposto, no e pelo totalitarismo estaliniano ". E ele acrescenta: " O que visamos é a igualdade efectiva sobre o plano do poder- e uma sociedade que tenha como pólo de referência essa igualdade, (...) sendo, bem evidente, que esta ideia gere uma criação histórica e uma significação histórica ". Ora, justamente, entendo que desvalorizas na tua exégese sobre a cidadania governante o papel da violência histórica de classe. Trata-se de um ponto muito importante e que importa estudar em todas as suas vertentes para evitar que se caia nos erros bernsteinianos do "amaciamento" dos antagonismos de classe, conforme Rosa Luxemburgo o indicou. E agora volto à minha leitura do momento, as obras teóricas de Victor Serge, libertário insuspeito e que morreu nas mãos dos algozes-servos de Estaline: " Nunca existiu na História, até hoje, revolução sem ditadura revolucionária. Nunca. Nunca existiu Revolução sem terror. Os Sovietes na Rússia formaram-se espontâneamente durante os primeiros dias da revolução de Fevereiro/Março(1905). Mas torna-se concreto que, desde as primeiras horas da Guerra Social, os Conselhos livremente formados pelos representantes dos trabalhadores revolucionários assumiram só eles a autoridade moral e material necessária para dirigir a produção e a responsabilidade da acção ". Portanto, meu caro,tens que fazer tua- pensando-o com todos os que o desejam e se sintam éticamente responsáveis -a ideia tão cara para Castoriadis: " Recuso absolutamente a ideia que não podem existir senão uma série de revoltas"...Salut et égalité, Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo,
a tua concepção um tanto romântica leva-te neste caso, perdoa que to diga, à beira do desvario.
Citas fragmentos de Serge, Rosa, Castoriadis, e dizes que eu subestimo a violência de classe.
A questão da violência e da legitimidade/necessidade do seu exercício, pelo menos potencial, no combate democrático foi amplamente discutida há pouco tempo neste blogue. Remeto-te para os posts publicados por altura da manifestação na Grécia e também para o meu post http://viasfacto.blogspot.com/2010/05/mais-cest-une-revolte-non-sire-cest-une.html#more então publicado. Aí verás que não subestimo tanto como julgas a questão:
"À violência regular da dominação hierárquica, a democracia substitui a palavra e o debate nas assembleias e órgãos de poder igualitariamente participado de cidadãos que sejam os seus próprios governantes. Mas a garantia última do poder político da liberdade dos cidadãos e do seu governo exige destes que sejam, de uma maneira ou de outra, "povo em armas".
Eis um exemplo a que já achei útil recorrer em mais de um debate e que transponho livremente de Castoriadis: O filósofo discute com o sofista, e este diz-lhe que, se não pode vencê-lo pela argumentação, pode sempre matá-lo e calá-lo de vez. Que garantia pode pôr-nos a salvo de um sofista assim, que se esteja nas tintas para princípios, procedimentos, constituições e declarações universais? A única resposta é o exercício, em última análise violento e empreendido como luta de morte, da legítima defesa. Convém que certos paladinos da “liberdade interior”, do “direito à diferença” e do “multiculturalismo” não o esqueçam.
Ora, na mesma ordem de ideias, as decisões da cidadania governante terão de ser protegidas pela sua força armada, pela acção de "serviços de ordem" ou "milícias" não-profissionais, rotativamente assegurados. Era o que Orwell, durante a Segunda Guerra Mundial, tinha em vista ao sustentar que, depois do fim da guerra, as armas deviam continuar nas mãos e em casa dos trabalhadores, que, enquanto cidadãos tinham sido chamados a defender o país da ameaça nazi. Orwell não defendia por certo que, uma vez de armas na mão ou em casa, cada trabalhador pudesse usar as armas ou recorrer à violência para fins privados e segundo o seu arbítrio. A existência de restrições – desejavelmente severas – ao uso da violência não significa que a sua legitimidade seja monopólio de um corpo separado e profissional. A afirmação da autonomia democrática, a acção instituinte de uma livre sociedade de iguais, não pode declarar incondicionalmente ilegítimo o recurso à violência. Mas, como já disse noutra ocasião, pode e deve opor-se ao seu culto. Pode e deve desmistificar o espírito sacerdotal nostálgico e hierático, antidemocrático e irracionalista, classista e contra-revolucionário, dos que se propõem medir pelo volume de sangue derramado o carácter revolucionário ou radical de uma luta política. Podemos e devemos saber e dizer também que o combate pela autonomia, a luta que visa a destruição do poder capitalista, não é um carnaval, que, depois de inverter durante uns dias a ordem estabelecida, dá lugar a uma sua versão revigorada ou a uma reciclagem da dominação hierárquica. Os que estão interessados numa “revolução” que pratique e se possível refine os métodos e recursos da dominação na construção da “ordem nova”, ou que advogam um “socialismo” que faça tábua rasa das liberdades e direitos democráticos, desprezando-os como superstições “humanistas”, podem odiar o capitalismo e as oligarquias liberais, mas são tanto (pelo menos) como o primeiro e as segundas inimigos mortais da liberdade enquanto condição necessária de uma sociedade de iguais".

Salut et égalté

msp

Anónimo disse...

Meu caro e todos em geral: Creio que referenciaste o tom problemático e ético da minha argumentação aberta e livre. E, por certo, não vislumbras grandes incompatibilidades entre o pensamento estratégico de Castoriadis,o de Victor Serge e mesmo o da Rosa Luxemburg do clássico - " Reforma ou Revolução? "-justamente, sobre a questão do poder e da função dos Sovietes, entre muitas outras, claro? " Uma boa parte do problema da realização de uma sociedade socialista autogestionária é o de conseguir pela primeira vez transformar o estado excepcional da Revolução numa forma instituída de funcionamento regular da sociedade. Até à data, as tentativas nesse sentido foram combatidas com sucesso pelas tendências contrárias, como na Rússia,pelas tendências virtualmente burocráticas que representava o partido bolchevique ", C. Castoriadis, in " O Conteúdo do Socialismo". Desde a " Comuna " do Blogue Cinco Dias , já lá vão cerca de 9 meses, que projectamos as formas novas da democracia, os seus impasses e limites, partindo daquele princípio básico e irrefragável: " A revolução é " um momento de improvisação genial da história ", dizia Trotski( o que é verdadeiro, mas de forma nenhuma marxista). Não se pode num futuro previsível conceber uma sociedade que viva em permanência nesse estado de incandescência. O que está em jogo, é que a primeira constituição a partir desse estado sejam formas de nstituição não-alienantes, que avancem sem parar", C. Castoriadis, idem. Niet

Anónimo disse...

Claro que subscrevo o essencial das ideias que o MSP por aqui deixando, assim como contributos afins da caixa de comentários.

Mas parece-me também que, para além das ideias, vai sendo tempo de discutir e iniciar formas de organização alternativas que lhes correspondam, naturalmente diferentes do modelo convencional de partido.

nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nelson,
tem toda a razão - e eu que bem gostava de poder contar com um contributo seu sobre o assunto. Não quer enviar-me uma reflexão por mail que eu possa publicar aqui como post, em vez de simples comentário? Nada tenho, pelo contrário, contra os comentários, diga-se de passagem, onde muitas vezes a discussão acaba por ser mais importante do que o texto de partida. Mas uma tese ou interrogação bem esgalhada pode ajudar a soltar amarras e a dar pano ao debate.

Cordial abraço incitativo

msp

Anónimo disse...

Caro Miguel

Para teses sobre a matéria, ainda que abonando a meu favor a "desprofissionalização", escasseiam-me contudo os cabedais. Mas continuarei atento e a questionar "desprofissionalmente", sempre que tal me pareça oportuno.

Forte abraço de apreço.

nelson anjos