Ontem, o João Vilaça escreveu, num comentário a este meu post, que o transformasse em comentário "na caixa do post do Renato Teixeira (…) [pois] (…) seria da maior importância que todos os que sentem esta repulsa o fizessem, desta vez para marcar definitivamente a delimitação das fronteiras entre a bestialidade ignorante e a decência". Acontece que o RT reincidiu hoje, publicando novo post e reiterando a sua "posição". O João Vilaça publicou na respectiva caixa de comentários o seguinte texto, que aqui tomo a liberdade de transcrever a seguir, porque - embora polemizar com o RT seja a última das minhas preocupações - entendo como o João que é da "maior importância" denunciar o culto da violência e a promoção da barbárie a coberto de máscaras de "esquerda" e da corrupção da linguagem da liberdade e da justiça. Acresce que o texto do João Vilaça, no registo do comentário ao correr da pena que é o seu, é, em grande medida, solidário da penetrante reflexão que, sobre o mesmo tema de fundo, o João Pedro Cachopo acaba de publicar no Vias. Haverá quem pense que o melhor seria ignorar os "delírios" e as obscenidades de textos como os dois posts assinados pelo RT. Acontece, no entanto, que esses textos são postos a circular, não são fantasias privadas, produzem efeitos políticos e não devem por isso ser excluídos da reflexão empenhada na transformação democrática da ordem globalmente instituída, ou, por outras palavras, apostada, contra a economia política da globalização dominante, na mundialização da liberdade, da igualdade e da autonomia. Com efeito, o que está aqui em jogo é o irracionalismo mortífero que uma certa apoteose da imagem – a oposição entre a imagem e a palavra, em detrimento da segunda – comporta em termos de comunicação e de elaboração política da experiência. É por isso que passo agora a palavra ao João Vilaça.
Renato Teixeira, quebrei a minha promessa de não o ler mais porque insistiu no mesmo assunto e porque me incomoda muito a sua postura nisto – e não sei o que é que é mais perturbador, se a sua ignorância e falta de inteligência ou se a sua imoralidade.
(…)
O seu primeiro equívoco é achar que as fotografias são “reprodutoras da realidade”, como se elas fossem unidimensionais e uma via de acesso directo à verdade (a mesma “verdade” com que o Renato diz estar apenas e só comprometido). Isto é falso – as fotografias são uma reprodução parcial da realidade, uma escolha, um produto de uma decisão individual (do fotógrafo) que selecciona a realidade que quer mostrar (ou esconder); uma projecção da subjectividade – que se reproduz virtualmente até ao infinito nos múltiplos contextos em que essa imagem pode ser mostrada, o discurso que a contextualiza, etc. Isto nao implica, no entanto, que as fotografias não tenham um discurso (em certas circunstâncias até um discurso autónomo e auto-poiético) sobre a realidade e aqui estamos perante uma bifurcação: ou a fotografia “diz” aquilo que o seu autor quer dizer ou é o observador que, interpretando-a, a investe de um discurso. A imagem que mostrou abaixo e a escolha selectiva da violência que faz neste post reproduzem não a realidade mas apenas e só a sua interpretação da realidade, a sua codificação prévia do mundo entre opressores e oprimidos, vítimas e carrascos. Elas projectam a sua militância e confirmam a sua agenda, são por si instrumentalizadas e manipuladas e por isso a sua publicação se torna abjecta – porque assim perdemos a capacidade de pensar sobre elas, ou [a possibilidade] de as fotografias nos pensarem a nós.
Segundo equívoco: a invocação do jornalismo. O Renato Teixeira não faz neste blog [o 5dias], há-de concordar comigo pelo menos nisto, jornalismo: faz debate e polemização política (e às vezes, muito raramente, tenta pensar qualquer coisa) – na maior parte dos casos, propaganda pura e simples. O Renato Teixeira que publica a imagem não é o fotojornalista a tentar registar (supõe-se que imparcialmente) a realidade: é um interpretante da realidade que lhe é servida pelo jornalista, é alguém a, legitimamente, tomar posição acerca da realidade (ou, na pior das hipóteses, um activista histérico a fazer evangelização). O que quer dizer que a sua utilização da morte é instrumental e não neutra axiologicamente: o senhor serve-se da morte e do sofrimento, atribui-lhe um significado privado, supostamente para ajudar um projecto de emancipação, para servir uma agenda de interesses – dos seus interesses.
Porque está muito claro que há apenas uma dimensão da barbárie e da violência que interessa ao Renato Teixeira: a que atinge os “dominados”, para usar a sua terminologia idiota. Nesta visão esquemática e maniqueista do mundo, a narrativa do sofrimento tem de passar antes pela observação de um critério exclusivo e eliminatório de “legitimidade”: e por isso o sofrimento de um israelita não é legitimo porque é um opressor (mesmo que ele não tenha margem de escolha ou decisão quanto aos termos da opressão israelita – e também por isso o seu critério é infame) e portanto irrepresentável. O Renato Teixeira não está interessado na merda da verdade: está interessado na sua versão alucinada da verdade. Não está interessado numa reflexão acerca da barbárie: está interessado na manipulação dos efeitos simbólicos dessa barbárie para servir um propósito político. A retórica subjacente a esta postura, a este regime de pensamento, é a da denúncia, e portanto, a de uma vontade de codificação da realidade e do mundo a partir das suas próprias predisposições políticas, de perpetuação do ciclo de volência até que o seu lado do conflito vença.
Há também no seu discurso pelo menos a insinuação de uma crítica - um argumento (!) - a quem, como eu, achou (e acha) abjecta a publicação daquela imagem de Gaza: a de que rejeitamos ver a violência, e [a de] que isso é recusar ver um mundo que é violento. Como é habitual, este é um argumento que pensa muito pouco sobre o que quer que seja e confunde tudo. O que detesto no seu post anterior é, como já disse, a manipulação que faz da violência da imagem, a manipulação da narrativa violenta que nela existe, e nao a violência em si. E o que distingue a imagem de Gaza das restantes imagens que mostra acima é o seu distanciamento (temporal mas não só). Para além da questão do contexto de que o Nuno Ramos de Almeida fala acima, estas fotografias não se inscrevem hoje numa retórica da denúncia ( quer denunciar retrospectivamente os nazis? ou o Vietname? ou a colonização portuguesa? isso serve os seus propósitos políticos?…) mas irrompem hoje como as ressonâncias do tempo, como documentos do mundo que pensam a condição humana, a específica natureza da violência e da abjecção. Elas não condenam ninguém nem falam em nome de ninguém em particular, de facções ou grupos políticos (nem sequer daqueles judeus que aparecem na primeira imagem): falam em nomes de todos, de uma historia que partilhamos colectivamente e que se fixa no consciente transhistórico – elas documentam uma pulsão de morte que existe, muito democraticamente, no ser hmano (e pode ser um português na guerra colonial, ou um vietnamita a soldo, é igual ao litro). Podemos, como é óbvio, e se de tal formos etica e moralmente capazes, manipulá-las, usá-las para justificar o injusíficável, para alimentar o ódio, a violência, tudo o que quiser: elas estão, como referi acima, à sua disposição para colocar nelas o que entender. Mas a distãncia que entretanto se interpôs entre nós e estas imagens conferem-lhes uma respiração distinta, e [comtudo] mesmo assim sinto-me muito relutante em considerar usá-las para qualquer propósito de reflexão. A imagem de Gaza, pelo contrário, é a carne viva, a latência do tempo: não lhe foi dado o tempo sequer para que ela adquira a sua autonomia, o espaço necessário para que a morte que ela regista possa ecoar nas nossas convicções acerca do mundo e do humano.
Não queria também deixar de dizer que toda a imagem de violência deve ser usada com a maior prudência exactamente porque os seus efeitos e consequências são imprevisíveis: como Susan Sontag escreve, no seu Regarding the Pain of Others, a proliferação de imagens de dor e sofrimento tende a gerar apatia, a banalizar o choque primordial que o embate visual com a morte produz em nós. Na pior das possibilidades, aprofundam o ódio naqueles se identificam com as vítimas (escolhaem os seus mortos, situam-nos numa escala indizível de valoração da morte), não por uma qualquer sensibilidade à comoção venturosa do sofrimento humano e uma reacção à barbárie, mas porque confirmam egoísta e solipsisticamente as razões da sua militância política, dão-lhes mais uma motivação emotiva, primária e acrítica para continuarem o seu combate. As vítimas inocentes do outro lado são indiferentes ao seu instinto de reacção pavloviana e por isso dispensáveis, insignificantes - mas [também] as do seu lado não o são, simbolicamente, menos: meros instrumentos ao serviço de uma causa, cavam trincheiras, nada mais.
A sua proclamação de fidelidade mística à “verdade” é assim tão perturbantemente irónica que se torna completamente insusceptível de ser comentada a não ser enquanto farsa.
Termino dizendo uma coisa que devia ser óbvia: que ninguém tem o monopólio nem da santidade nem da barbárie. Nesse sentido, a imagem da violência, ou uma qualquer tentativa de a pensar criticamente, de a problematizar, de a situar no quadro mental e cognitivo do nosso tempo (recomendo-lhe o Atrocity Exhibition do Ballard, deve ser violento quanto baste para si), não pode nunca passar pela retórica óptica e plástica da denúncia de ser lida em função da pulsão mortífera que nos atravessa transversalmente e que é da ordem da psicopolítica ( [porque é só depois desta que] podemos tomar as nossas posições políticas e pronunciarmo-os a favor ou contra, posicionarmo-nos num lado ou noutro), sob pena de se tornar completamente inoperativa e, no seu limite, uma abjecção, uma orgia gratuita de sangue e dor que não diz nada, não enquandra nada, não pensa nada, apenas oferece a espectacularização da morte que vampiriza o sofrimento para servir uma causa, um “interesse” – e, suspeito, um obscuro desejo de vingança.
14/06/10
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3 comentários:
Caro Miguel Serras Pereira, agradeço-lhe a publicação do meu comentário no seu blog e toda a solidariedade nesta questão. Estamos a lidar com uma questão muito sensível e importante pelo que devemos aprofundar a discussão. Sei que o meu estilo de comentário não é o mais viável nem o mais eficaz na blogosfera mas não consigo escrever de outra forma. Muitas outras coisas se poderão escrever, e de uma forma mais pertinente e e segura do que aminha. Mas está escrito e registado. Sigamos em frente. Um abraço e cumprimentos solidários.
João Vilaça:
Blá blá blá blá blá....
Ao abrigo do ponto 4 do estauto editorial deste blogue no que se refere à publicação de comentários, o "assinado" pelo Anónimo que se limita a escrever "blá-blá" poderia ser legitimamente recusaado.
Decidi, no entanto, publicá-lo porque ilustra bem o modo como os que defendem a tese da "verdade superior da imagem imediata que vale por mil palavras" são também apologistas da onomatopeia e do urro antidemocráticos.
Se a democracia reclama a abertura instituinte de uma praça da palavra substituindo à violência cega da guerra de todos contra todos e da imposição da lei pelo monopólio das autoridades hierárquicas competentes, e por isso subordina o recurso à violência legítima à supremacia da praça da palavra e das suas decisões responsável e igualitariamente deliberadas, os esbirros da violência do poder hierárquico e classista ou os candidatos ao seu exercício, degradam a palavra em instrumento de servidão e da bestialização regressiva e repressiva da linguagem, tornando a palavra de ordem sumária, a voz de comando do chefe, a propganda figuraativa e esquemática e por fim o urro pré/pós-verbal o seu método de "luta ideológica" privilegiado.
msp
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