Acho que os argumentos do Bruno sobre o futebol estão claramente fora de jogo, sem ser necessário o recurso à repetição em câmara lenta para o demonstrar. É que a competição está tão presente no futebol como, digamos, no xadrez, onde também existem três resultados possíveis e os jogadores procuram superar o adversário. E a palavra-chave talvez seja precisamente essa: superação.
É que - e não é preciso saber como funcionam os treinos do Mourinho para ter a consciência disto - o esférico (de couro, borracha ou bexiga de suíno) tem a mágica propriedade de nos levar a correr, saltar, parar e arrancar a uma velocidade e intensidade que seriam impossíveis e impensáveis sem ele. É certo que esta diabólica invenção da jabulani - a estúpida bola que não se entrega ao seu utilizador mas antes lhe impõe as suas próprias leis da física - reforçou a aleatoridade e fisicalidade do jogo, mas o controlo sobre um objecto geometricamente instável , sem recurso aos elementos do corpo que tradicionalmente se encarregam desse tipo de tarefas, é um desafio à destreza e à inteligência, que convida à superação.
Pergunta o Bruno o que há ainda no futebol? É a bola estúpido! A bola e o prazer que advém da capacidade de lhe imprimir rumo, ritmo, peso e velocidade.
Depois há o resto - a baliza adversária, o golo, o resultado, a táctica. Mas tudo isso são variáveis do mesmo problema fundamental, que é a bola. Qualquer um pode correr muito rápido ou saltar muito alto (bom, não qualquer um, mas vocês entendem o que eu estou a dizer). Basta a massa muscular certa no sítio certo e muito treino. Mas tudo isso junto não permitiu ao Cristiano Ronaldo (que por sinal faz os mínimos olímpicos para correr os 100 metros) fazer mais do que um mundial sofrível. Faltou-lhe tudo o resto que torna o jogo bonito. Faltou-lhe a relação de paixão com a bola.
Por outro lado, há onze contra onze, é certo. Mas o pormenor significativo é que há onze. Não se joga sozinho, mas em equipa. E por isso o jogo assenta tanto na competição com o outro como na cooperação com os outros. A tarefa emancipatória e comunista seria por isso que essa cooperação dispensasse uma figura de autoridade, como é a do treinador, sem que o jogo colectivo (outra palavra importante) perdesse efectividade (uma palavra que nos faz falta utilizar mais vezes). Para isso, seria necessário acabar com a divisão social do trabalho no interior da equipa e fazer de cada jogador uma célula desse organismo vivo, um pouco como o partido leninista mas sem o secretariado. Uma célula que transporta em si toda a informação necessária para lidar com a complexidade do jogo, ou seja, cada jogador tendo na cabeça, em cada um dos seus gestos, movimentos e escolhas, o conjunto da equipa e do campo.
Visto daí, talvez o jogo encerre em si mais questões políticas do que os jogadores que o Porto tem a rodar pelas equipas da primeira divisão (perdão, da liga zon-sagres). Insisto: como o xadrez.
7 comentários:
Post perfeito, camarada Ricardo. Só com um senão (a menos que se trate do ensaio de um dribble): onde é que foste buscar o raio dessa mão de deus de Maradona do partido leninista sem secretariado que é assim mais ou menos como quem diz o capitalismo sem exploração ??????
Vamos ter de voltar a bater-nos? No intrevalo do jogo ou lá mais para o fim do prolongamento?
Abraço, hombre!
miguel sp
P.S. Quanto ao treinador, parece-me que se fosse qualquer coisa como eleito e revogável pelo colectivo não estaria mal. Sempre seria uma hipótese dos ex-jogadores chegados à minha idade ou de outros aficionados da bola menos dotados poderem participar num plano não inferior aos restantes. Mas tenho de ir consultar uns camaradas da CNT sobre o assunto.
Ricardo, às vezes pergunto-me: com as centenas, não, os milhares de bloguistas na blogosfera nacional, há mais alguém a quem gostes de chamar, repetidamente estúpido? Ou é só a mim?
Quanto ao resto, estamos entendidos quanto à hipótese de um futebol emancipatório, depois de lermos o teu penúltimo parágrafo: é um futebol que não é futebol, que é qualquer coisa, não sei bem o quê, um partido leninista, talvez, mas não é futebol.
E que de facto não poderia ser o futebol, porque o futebol não é a luta de classes, nem a luta política. E porquê? Porque a luta de classes tem como objectivo acabar com o recorte do real que divide os humanos em classes. Seria um jogo para acabar com os pressupostos do jogo, com as divisões que fazem com que, em primeiro lugar haja um jogo.
É que no fundo a política não é jogo, e não tem nada a ver com o prazer da bola nem com a paixão do jogo. É um jogo detestável porque detestável é a dominação que faz com que o jogo seja preciso.
De resto, acredito que as pessoas têm o potencial de correr, de saltar, de se superarem, sem ser pelo móbil do jogo e da competição. E que há mais colectivo para além do futebol.
fica com um abraço de estupidez.
Bruno,
há toda a diferença entre jogo e jogo. A democracia não acaba com o jogo: é um jogo cujas regras são decididas entre iguais por jogadores que sabem que o fazem e que não confundem essas regras com leis naturais ou divinas. Por isso, essas regras não são indiscutíveis, mas podem ser objecto de debate, deliberação, propostas e contra-propostas, argumento e contra-argumento. Fazem continuar a história e o jogo: não lhe põem fim. A fantasia de acabar com o jogo furtando a regra à vontade e à deliberação dos jogadores e à indeterminação fundamental de onde emergiu a sua criação é sempre uma expressão daquilo a que Jacques Rancière chama o ódio à democracia.
Abraço
msp
A jabulani pode ser uma bola diferente da convencional. Mas uma bola convencional, apesar de responder de uma forma diferente aos pontapés, também impõe leis da física, determinadas pela forma como é pontapeada e pelo material de que é feita.
Este tipo de raciocínio faz-me lembrar aqueles que dizem que as trivelas do Quaresma "desafiam" ou mesmo "violam" (!) as leis da Física. Não desafiam e muito menos violam seja o que for.
o seu post ao contrário do post do Bruno é bastante bom.
"Para isso, seria necessário acabar com a divisão social do trabalho no interior da equipa e fazer de cada jogador uma célula desse organismo vivo, um pouco como o partido leninista mas sem o secretariado." O «futebol total» holandês, inventado pelo Jack Reynolds e desenvolvido pelo Rinus Michels, treinadores holandeses do Ajax e o último tb da laranja mecânica, e que teve no Johan Cruyff o maior expoente no papel de jogador, foi a experiência mais próxima desse partido leninista sem secretariado.
Bruno, faz um esforço. Um futebol que não é futebol a partir do momento em que começamos a equacionar hipóteses emancipatórias para transformar a forma como se joga? Estás a ser quadrado, o que não se adapta nem ao tema nem ao teu perfil (estúpido e gordo no espaço de poucas horas, estou-me a tornar no campeão mundial do insulto óbvio).
A luta de classes não tem objectivos, mas é antes o terreno onde se confrontam objectivos antagónicos.
Dizes tu que a política não tem nada a ver com o prazer da bola nem com a paixão do jogo e eu respondo-te que essa política de que estás a falar não tem a ver com nada e apenas se propõe travar combates conceptuais.
Estás a ver apenas moinhos de vento onde efectivamente existem gigantes assustadores. O futebol é um documento da vida e do nosso tempo, um fenómeno cultural e social que exprime muitas das linhas de força da sociedade em que vivemos e do modo de produção que a faz funcionar. Enquanto tal, e uma vez que nada do que é humano nos é estranho, trata-se de um terreno de intervenção e transformação tão digno de atenção e empenho como outro qualquer. Não é a dominação que faz com que o jogo seja preciso. Pelo contrário, a dominação está no facto de o jogo ser transformado em entretenimento e produzir formas de identidade perniciosas. A parte boa é que, apesar de tudo isso, o jogo sobrevive.
Caro Miguel, o partido leninista sem o secretariado é uma imagem como outra qualquer. Um leitor anónimo não teve dificuldades em reconhecer o «futebol total» enquanto expressão paradigmática. Era mais ou menos daquilo que eu estava a falar.
Filipe, falava da jabulani porque me parece que é particularmente imprevisível em termos de movimentos e curvaturas, relativamente a outras bolas. Ora essa imprevisibilidade prejudica o jogo que mais me atrai, que é feito de cálculo, tempo e inteligência, mais do que de frenéticas correrias. De acordo quanto ao Quaresma, mas continua a ser um combate interessante com as leis da física (metaforicamente falando) usar a parte de fora do pé para cruzar e rematar com aquela precisão. É que se trata de uma superfície curva que incide sobre a bola e fazê-lo daquela maneira, e em velocidade, exige uma capacidade de equilíbrio e controlo motor muito impressionante.
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