18/04/10

Bento XVI não será Gorbatchev

Gorby e João Paulo
Todas as Igrejas falam em nome da História, mas na maioria das vezes fundam a sua intervenção terrena na luta contra ela. Constituem-se a partir de um gesto de rebelião – combatendo determinadas formas de poder, outras modalidades de fé ou uma ordem moral e social que os seus adeptos rejeitam – mas rapidamente se institucionalizam, contrariando a insubordinação fundadora e reproduzindo novos modos de opressão. Assentes no rito e no dogma, preservam-se por isso das heresias ou das práticas que possam abrir o caminho a rupturas, dúvidas e sedições. Ao mesmo tempo, organizam sempre que podem sistemas teocráticos, com os seus rígidos estatutos, as suas castas dirigentes, os seus mecanismos disciplinares, que para cumprirem o seu papel devem fundar-se na lei e na obediência. Assim acontece desde há dois mil anos com a Igreja romana, e assim continuará a acontecer com ela, por muito que os fundamentos nos quais se apoia sejam contestados por aqueles que a combatem, ou, numa escala diferente, pelos que, a partir de dentro ou das suas margens, a desejam reformada.

No Público de hoje, Vasco Pulido Valente, numa daquelas diatribes quebradiças e caturras com as quais intervala análises brilhantes e preclaras, levanta a questão da forma errada. Afirma ali o óbvio, que é a impossibilidade absoluta da Igreja católica promover reformas profundas sem se descaracterizar e perder a identidade – deixando-se assim arrastar para o abismo da sua própria destruição –, mas olha de maneira superficial o que é verdadeiramente essencial, que é o facto de um certo combate anticlerical, que ele ali trata de forma trocista, não visar a destruição dessa mesma Igreja, mas apenas um seu upgrade. Este é, aliás, um dos paradoxos nos quais incorre desde há muito uma esquerda que se reconhece como parte da Igreja, ou que, proclamando-se ateia ou agnóstica, encara muitos dos fiéis católicos como presumíveis «companheiros de jornada»: esperam por uma renovação, sem cuidar que ela jamais surgirá espontaneamente e, a ocorrer, conduzirá de maneira inexorável ao fim daquilo que pretendem renovar.

Para não continuarem a cair no mesmo erro no qual laboram desde os tempos do «catolicismo social» de Lamennais, deviam estes «bem-intencionados» sectores reflectir sobre as implicações reais de textos como aquele que Hans Küng acaba de publicar no Irish Times, sob a forma de carta aberta aos bispos dessa mesma Igreja na qual, tantos anos depois do desassossego que protagonizou durante o Concílio Vaticano II, se continua a considerar como parte. Nela, considera o teólogo suíço que a Igreja católica vive actualmente a maior crise desde os tempos da Reforma protestante – e não por causa dos casos recentemente mediatizados, que não passam de epifenómenos –, entendendo que existe um dever, por parte dos próprios responsáveis católicos, de promoverem grandes e urgentes reformas. Mas reconhece implicitamente que estas terão de contornar o imobilismo atávico da hierarquia. Sugere, assim, não propriamente uma correcção ou um aggiornamento, mas antes um reequilíbrio, talvez uma refundação. O que significaria a criação, a partir de dentro e com a intervenção dos próprios hierarcas, de uma outra Igreja. A ideia será simpática, evidentemente, para quem todos os dias observa, a partir de fora, a inadequação de Roma aos tempos que correm e à revalorização de um humano cada vez mais livre e plural. Só que ela é impossível de praticar a partir de dentro, uma vez que – e isso papa e Santa Cúria Apostólica vêem com clareza – tal conduziria à implosão dessa instituição, com vinte séculos de prestação de serviços e património acumulado, da qual constituem, actualmente, os corpos gerentes em exercício. O Vaticano jamais verá uma glasnost e Bento XVI não será Gorbatchev.

Publicado também em A Terceira Noite

7 comentários:

henedina disse...

"os seus rígidos estatutos, as suas castas dirigentes, os seus mecanismos disciplinares, que para cumprirem o seu papel devem fundar-se na lei e na obediência."
Rui Bebiano não será pratica em quase todas as organizações? Não aceito isso bem, há em mim um gene que em vez de egoísta é anarquista que me impede de obedecer. Obedecer é para mim a conquista total só obedeço a quem me conquista pelo intelecto e mesmo assim, esbracejo um bocadinho :).
Tirando do contexto não acha que se aplica a quase todas as organizações?

Ricardo Alves disse...

B16 será, quando muito, Brejnev.

(Mas o paralelo nem é muito bom.)

O facto é que Ratzinger reconduziu à «comunhão» os integristas católicos da Fraternidade São Pio X: quatro bispos fundamentalistas que rejeitam o essencial do Concílio Vaticano 2, que são anti-semitas, defendem a Inquisição, um deles nega o Holocausto, etc. É destes fascistas católicos que Ratzinger tem aproximado a ICAR. Portanto, a tal «esquerda» que acredita regenerar a ICAR a partir das margens está muito, mesmo muito equivocada.

Maria Antónia disse...

Cheguei ao fim sem perceber a sua posição. Se a Igreja não se “reforma” por dentro, em termos civilizacionais quem está de fora deve assistir passivamente ou combatê-la como organização nociva que está a ser para o progresso da humanidade?

CN disse...

" combatê-la como organização nociva que está a ser para o progresso da humanidade?"

Isto é muito cómico.

Joana Lopes disse...

Pegando neste último comentário da Maria Antónia, Rui: como sabes, penso há muito que a igreja travou as consequências do Concílio porque se apercebeu do perigo de implosão e que não se «refundará» coisíssima nenhuma - como o dizes.

Manter-se-á profundamente conservadora e, nesse sentido, é «maligna» para os homens (no campo moral e não só), independentemente dos epifenómenos em cena agora. Nessa medida, e porque a sua influência ainda é grande, deve ser activamente «combatida», tal como o sistema comunista dos irmãos Castro e não apenas os seus actos.
Estás de acordo com isto?

Cardeal Bertone disse...

Corja de incréus malignos! Ainda acabam excomungados como o Afonso Henriques, o Afonso II, os Sanchos, etc.

paulo almeida disse...

Ainda ontem revi o filme "Anjos e Demónios" que trata de uma forma pouco abonatória o culto dos "Illuminati". Talvez fosse bom o Cardeal ver ou rever. Por esses e outros retratos, talvez a corja seja outra! Ainda mais nesta altura tão crítica para a sua Igreja!