11/03/10

Cuba Libre?


Uma vez que a questão de Cuba continua a dar que falar, e não só aqui no Vias - mas ver na prata da casa os Comentários, para quê da Joana Lopes e a intervenção do Xatoo na caixa de comentários do post O referendo islandês do Miguel Madeira -, retomo aqui uma versão um tanto modificada de um comentário que publiquei na caixa dos mesmos de um outro post de há dias, publicado no Entre as brumas da memória também pela Joana: Entretanto, no «Granma», em reino dos irmãos Castro.



Começarei por notar que a ambiguidade da terminologia usada para desqualificar os dissidentes é reveladora. A sua indignidade viria ora do facto de serem delinquentes de direito comum e não opositores políticos, ora do facto de serem "contra-revolucionários" que fazem agitação política ao serviço de interesses imperialistas. Ora são maus porque não são políticos, mas delinquentes de direito comum; ora são péssimos porque assumem posições políticas nefandas.A conclusão, escondida mas com o rabo de fora, é que a ditadura não reconhece a diferença entre a criminalidade e a oposição política. O que é motivo bastante para nos solidarizarmos com os perseguidos.


Negando ou condicionando a validade desta conclusão, alguns como o Rafael Fortes, na caixa de comentários do post da Joana sobre “o reino dos irmãos Castro”, argumentam que, apesar de tudo, Cuba é uma democracia e que está a ser alvo de uma campanha que beneficia o imperialismo norte-americano. RF escreve assim: “creio, sinceramente, que lá existe uma democracia muito diferente da nossa. Que precisará de aprofundamentos, de melhorias, de desvios, mas no essencial, na participação popular, no envolvimento dos cidadãos com os processos de decisão, uma democracia. Sem partidos, mas uma democracia” - remetendo por fim para “ uma reflexão interesante que Boaventura Sousa Santos fez sobre Cuba” numa perspectiva que não merece sempre o seu acordo, mas que lhe parece “intelectualmente honesta”  (Cf. Boaventura Sousa Santos, POR QUE É QUE CUBA SE TRANSFORMOU




Ora, é esta posição do RF sobre a democraticidade sui generis do regime cubano que julgo insustentável.
Sem dúvida, a democracia não só não implica como exclui o exercício do poder político através da representação partidária. A democracia é o exercício do poder pelos cidadãos organizados, e os cidadãos delegados para certas funções específicas são, não representantes de partidos ou de nações - são mandatados pelo conjunto dos cidadãos e responsáveis perante a sua auto-organização.
Mas em Cuba o poder político é exercido superiormente pelo Partido, por mais que este ausculte as bases e encoraje a sua participação dependente. Não é verdade que o poder político não seja exercido através de uma forma partidária. É-o, através de um partido único. E, por outro lado, o argumento da participação de massa em cerimónias, festejos, comícios, recreios e feriados oficiais, etc., ignorando a questão do exercício regular dos poderes de deliberação e decisão pelos cidadãos que constituem essas vistosas massas, é absolutamente falacioso. Ou, por exemplo, uma peregrinação a Fátima seria uma expressão de democracia avassaladora, e as massas de fiéis que se concentram no Vaticano para aclamar o Papa seriam assembleias do auto-governo popular. 

Dizer isto não basta, todavia. É preciso acrescentar que, se a democracia exclui o monopólio ou privilégio dos partidos e representantes partidários no exercício do poder, também não há democracia sem liberdade de associação política. Uma coisa é que não sejam representantes dos partidos (submetidos à disciplina destes, etc.) a exercer o poder político, pois a democracia não reconhece poderes a delegados que não sejam mandatados pelos cidadãos e responsáveis perante estes. Outra coisa é que os cidadãos não se possam associar, formar partidos se assim o entenderem, organizar-se em correntes de opinião e assim por diante. É inconcebível que sem esta liberdade de associação e de expressão não se mantenham, no fundamental, expropriados do poder de deliberar e decidir que é condição do auto-governo. E, nomeadamente na esfera da economia, onde o que devemos avaliar não é se existe ou não e em que extensão propriedade estatal, mas sim se na actividade económica os princípios de organização e funcionamento são efectivamente os de um espaço público democrático.  O monopólio ou papel estratégico supremo do Estado na economia não é garantia da sua democratização, e foi, nos países do “socialismo real”, um dispositivo usado para manter ao abrigo do exercício de uma cidadania activa o governo político – sempre político - da actividade económica



O regime cubano é um modelo de opressão e dominação hierárquicas. Apresentá-lo como uma democracia ou dizer que é como é para não deixar de ser anti.imperialista é legitimar a ordem política e económica globalmente dominante – pura, ainda que involuntária, propaganda capitalista. Nem todas as argúcias "pós-modernistas de resistência" do mais douto São Boaventura podem fazer valer o contrário.

28 comentários:

rafael disse...

Caro Miguel, tentarei responder-lhe no fim de semana, como já pensava fazê-lo na caixa de comentários do Brumas. Sinto muito nao responder, contestar de imediato, mas os minutos que tenho nao me permitem fazê-lo de forma cuidada.

Cumprimentos
Rafael

Miguel Serras Pereira disse...

Os links que queria introduzir no post não "entraram", ou não funcionam. Aqui estão, com as minhas desculpas:

Post da Joana no Brumas, Em reino dos irmãos castro: http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2010/03/entretanto-no-granma-em-reino-dos.html

Post de Miguel Madeira sobre o Referendo Islandês e comentários do Xatoo:
http://viasfacto.blogspot.com/2010/03/o-referendo-islandes.html

Rafael Fortes, ver c.c. do post da Joana no Brumas e também: http://www.blogger.com/profile/05033427201653102446

Post da Joana, Comentários para quê http://viasfacto.blogspot.com/2010/03/comentarios-para-que.html

Artigo do Professor Doutor De Sousa Santos http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Por%20que%20%C3%A9%20que%20Cuba_Oficina%20322.pdf

xatoo disse...

caro amigo MST
aconselho vivamente que releia Marx: é a natureza das estruturas económicas que em última instância sustenta toda a estrutura de organização social.
Luz acesa e segundo estas circunstâncias por onde Cuba se aflige, corrija o post naquilo que considerar errado e depois volte para podermos iniciar uma análise concreta. Isto é, sem navegações nas barcaças "Autonomia" e "Democrácia" no imenso mar ad-Nihilum.
Espero bem que os restantes autores do blogue metam também a colherada e dêem a sua contribuição... a ver se chegamos a algum porto (sem ser à Miami onde o Herman José ia aprender a plagiar sit-coms refastelado na sua gaivota de luxo)

Anónimo disse...

Caro MS Pereira: Aquela tecla da escamoteação histórica- por mim espevitada, honni soit...- não está a tirar de novo força aos teus comentários sobre a ditadura cubana? Foi o marxismo ortodoxo/soviético que inspirou Castro. Ora, como nos ensinam Bakounine, Serge, Voline ou Castoriadis, sabemos, com grande dramaticismo que essa herança marxista autoritária e rasante criou uma monstruosa ditadura burocrática sanguinária em todos os países em que conquistou o poder de Estado. Com o séquito de monopartidarismo despótico esclerosado e viciado, a censura e a polícia secreta contra os dissidentes, e o racionamento de bens e serviços essenciais. " Tiveram lugar todos esses imensos movimentos de emancipação desde há séculos. Surgiu o movimento operário, que foi mais ou menos confiscado pelo marxismo; o marxismo evoluiu ele mesmo dando origem a duas correntes opostas, a social-democracia e o bolchevismo; a primeira deu no resultado que nos sabemos, o segundo deu origem ao Goulag.No fundo, o que se pode constatar, foi que a paixão, a energia da classe operária e dos seus seguidores foram desperdiçadas ", C. Castoriadis, in " La Société à la dérive ", Edt. Seuil.France. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Xatoo,
não vou discutir o materialismo histórico, as suas descobertas e deficiências aqui.
Mas a determinação pelas relações de produção - que são relações sociais e portanto moldadas pela luta de classes - dá-me razão neste debate sobre a natureza do regime cubano, ou dos países do "socialismo real" no seu tempo.
Com efeito, a separação entre os produtores e os meios de produção mantém-se; os elementos dos aparelhos do Estado e do Partido dispõem da mais-valia, do investimento, etc., e constituem colectivamente, em termos marxistas, uma classe exploradora, embora os burocratas e gestores não sejam proprietários individuais dos meios de produção.
Para Marx, o socialismo implicava que fossem os produtores associados a deter os meios de produção, do mesmo modo que o poder efectivodos trabalhadores, exercido por estes, e não por um partido que os representasse e os comandasse invocando o seu nome (deles, trabalhadores) e o conhecimento superior dos seus verdadeiros interesses. Veja os escritos sobre a Comuna de Paris, releia a Crítica do Programa de Gotha,etc.
Você faz uma leitura do marxismo fortemente leninizada: parece que o marxismo se torna na sua leitura uma espécie de despotismo esclarecido, e o Partido um príncipe sábio acima das classes e cuja superioridade hierárquica, cujo poder, cujo lugar de comando nas relações de produção não produzissem efeitos de dominação. Idealismo voluntarista caracterizado, meu caro Xatoo.
E depois, vá lá explicar aos súbditos do Príncipe que tem de ser assim mesmo, e que quando o imperialismo for derrotado, então, sim, se se mantiverem disciplinados e reconhecerem a capacidade intelectual e política dos grandes dirigentes, os trabalhadores poderão gozar de melhores condições de trabalho e de abundância material.
Isto não é um jogo de vídeo nem sequer de xadrez. O que se joga nestas questões - acção política, revolução, democracia, capitalismo, economia, etc. - é a forma da vida quotidiana das pessoas comuns e mortais, e a questão é saber como podemos ser mais livres, individual e colectivamente, a partir de agora, ainda que abrindo caminho a coisas que só amanhã poderemos alcançar. A liberdade e a igualdade não são objectivos finais, suspensos até estarem reunidas as condições da sua realização - se for assim, essas condições nem no dia de S. Nunca estarão reunidas, nem mesmo sobre o tarde. A liberdade e igualdade que queremos alargar e potenciar ou começam têm de habitar a acção que as procura, de ser o modo de lutar por elas, de se actualizar no movimento que as visa, transformando desde já o modo de viver dos interessados.
Vá lá, um esforço mais, se quer ser democrata, para poder ser revolucionário. Apoie com o resto da malta a luta pelas liberdades democráticas em Cuba.
Saudações cordiais
msp

P.S. Eu não sou o MST…

Pedro Viana disse...

A reflexão de Boaventura Santos é muito interessante, apesar de aui e ali um pouco confusa. Destaco esta passagem:

"Levar a democracia a sério significa não só levá-la muito para além dos limites da democracia liberal, mas também criar um conceito de democracia de tipo novo: a democracia como todo o processo de transformação de relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada. Mesmo quando não anda associada à fraude, ao papel decisivo do dinheiro nas campanhas eleitorais ou à manipulação da opinião pública através do controlo dos meios de comunicação social, a democracia liberal é de baixa intensidade uma vez que se limita a criar uma ilha de relações democráticas num arquipélago de despotismos (económicos, sociais, raciais, sexuais, religiosos) que controlam efectivamente a vida dos cidadãos e das comunidades. A democracia tem de existir, muito para além do sistema político, no sistema económico, nas relações familiares, raciais, sexuais, regionais, religiosas, de vizinhança, comunitárias. Socialismo é democracia sem fim."

A última frase é certeira.

lili disse...

Na última frase do texto o Prof. Dr. de Sousa Santos diz-nos, exactamente, o que não se passa em Cuba.
Infelizmente, Cuba é uma autocracia, esperemos que tenha fim e que possa vir a ser uma democracia sem fim.

Zapata disse...

Conversa estragada é o que o Miguel aqui nos trás!!!

Verdadeiramente não o preocupa a "falta de liberdade" mas maldizer e abater um regime que se diz anti-imperialista.
Conheces a história escabrosa dos 5 cubanos presos na "pátria da liberdade"? Presos politicos, acusados de crimes de delito comum.

E se fores capaz descobre um único registo ou lista em que conste o nome de Tamayo como preso político.

Funcionar de ouvido é o não falta e continua a dar, deturpar os factos, sabe-se lá em nome de quê...
Sempre deu bons resultados, lá para o quintal.

Miguel Serras Pereira disse...

Zapata,
não divague, não baralhe, por favor.
O poder da ditadura só regista como "preso político" quem bem entende. Chama presos de direito comum aos opositores, trtata estes últimos como delinquentes, e o problema está resolvido para os fiéis. Ainda é pior assim.

Caro Pedro,
discutimos o BSS noutra altura - aqui é secundário. Faço notar apenas que a "democracia sem fim", quer dizer a multiplicação indefinida e vaga dos traços que definem a democracia, serve - sem caricatura ou quase - para, quando atacamos um regime em que as liberdades fundamentais são espezinhadas e punidas como actos de delinquência, os seus esbirros extra-fronteiras e outros admiradores nos responderem: sim, não há liberdade de imprensa, mas há "democracia" em casa de cada um e as crianças não são subservientes com os adultos; sim, não há sindicatos independentes do Partido/Estado, mas no plano da sexualidade as mulheres revelam tanta iniciativa como os camaradas tersticulados; sim, os homossexuais são perseguidos e brutalizados nas esquadras, mas o modo de vestir dos dirigentes evita a ostentação da sua condição de privilegiados; sim, as lojas para turistas que só aceitam moeda estrangeira exibem coisas a que o cidadão comum não tem acesso, mas as bandas musicais espontâneas proliferam e a camaradagem entre os seus membros e a relação delas com o público nas sessões informais teriam muito a ensinar-nos em matéria de convivialidade; etc., etc.
Se houver tempo e oportunidade, havemos de voltar a estas questões.
Abç

msp

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Caro Xatoo:

Pois foi precisamente aí que Marx errou, como erraram todos os economistas clássicos dos quais ele foi o último, e talvez o maior.

O que toda a observação empírica demonstra - e esta informação já estava disponível, ainda que muito em bruto, no tempo de Adam Smith, para já não falar no tempo de Marx - é que em todas as sociedades, sem excepção conhecida, a organização económica decorre da organização social.

O consenso em contrário é um consenso do século XIX. Hoje já não é sustentável empiricamente. Leia a este propósito The Great Transformation de Karl Polanyi.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro José Luiz Sarmento,

nem mais. E eu ando há que tempos a ver se consigo que essa obra seja traduzida cá na região.

Saudações republicanas

msp

xatoo disse...

José Luiz Sarmento
"foi aí que Marx errou"?. Não me parece. Marx não poderia conhecer nem inferir das relações sociais existentes na época do pré-industrialismo a globalização financeira que altera e distorce a compreensão da organização actual assente, não no justo valor concreto do trabalho como fonte de valor primordial, mas na pura emissão de moeda como medida de valores inexistentes.
Sobre o Polanyi, confesso que não cheguei até aí nem me interessa sobremaneira. Já Weber me parecia ter seguido uma bifurcação que se esgotou no fim das sociedades enclausuradas dentro dos nacionalismos. Fico-me pelo Kuhn e pelo Bourdieu para tentar perceber os mecanismos de organização do fazer teológico.
Se a principal critica que se produz à crescente especialização do saber cientifico aprofundado por diversos ramos dispersos (que produz "cientistas" ignorantres em tudo o mais), também não me parece que seja proveitoso o estudo de uma amálgama de sociologia/economia/antropologia tudo metido dentro de uma única vasilha como o será no caso dessa obra de Polanyi - como na construção de pirâmides em instituições dependentes dos interessas do poder imperial (as grandes universidades que formam as elites ocidentais). Nesta questão volto a citar BSS que advogou em tempo que a ciência deverá ter limites: "devemos ter um conhecimento prudente para uma vida decente", disse.

MSP
acho óptimo para a sua carreira que se interesse pela tradução de "The Great Transformation" uma obra produzida com o patrocinio de uma bolsa da Fundação Rockefeller. Estará de acordo com o espirito de classe dos revisionistas de todos os matizes, caso os angarie como clientes; espero que lucre umas lecas e para nós marxistas será sempre salutar destruir pensamentos mágicos pós-modernos.
good luck
x

Miguel Serras Pereira disse...

Xatoo,
o tom desse seu comentário era escusado.
Não me dá argumentos, não tenho outro comentário a fazer.

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Xatoo,
afinal, há o seguinte ponto do seu comentário, que merece esclarecimento:
Karl Polanyi fugiu ao nazismo, exilando-se primeiro em Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos - seria, de resto, obrigado a mudar-se para o Canadá na época da caça às bruxas.
A Grande Transformação foi publicada em 1944, nos Estados Unidos, do mesmo modo que outras obras de outros antifascistas europeus que ali viviam exilados, procurando sobreviver graças a bolsas, apoios de fundações, exercício de funções docentes nas universidades. Polanyi efectivamente beneficiou, durante a guerra, de uma bolsa Rockfeller quando leccionava em Bennington, Vermont.
Quer isso dizer que foi financiado pelo imperialismo para escrever o livro? Brecht não trabalhou em Hollywood? Quantos democratas e marxistas exilados não receberam, durante a guerra, bolsas ou apoios equivalentes de fundações ou organismos afins norte-americanos?
Portanto, veja lá, pense, reflicta: dizendo o que disse sobre Polanyi perdeu uma excelente oportunidade de estar calado. Não encontrará em todo "O Capital" uma citação que lhe diga o contrário.
Não poderá voltar a discutir com o mínimo de maneiras? Seria mais agradável para mim, mais útil para si e mais esclarecedor para todos os outros.

Sinceramente

msp

xatoo disse...

enfim, é a vida...
tb não apreciei a forma deselegante como se referiu a Carlos Vidal; porém temos que nos aguentar.

Quanto a Brecht e à comparação com os serventuários do poder, confunde o condutor permanente do autocarro com o passageiro de ocasião

Anónimo disse...

Karl Marx visto por Cornelius Castoriadis- Uma breve nota para sinalizar os imensos avanços da crítica de Karl Marx realizados por Castoriadis. Extracto retirado da Introdução à " A sociedade burocrática ", que creio ter sido traduzida pelo MS Pereira na Afrontamento.Texto datado do Outono de 1972. Se bem que desde 1964 C. Castoriadis tenha começa- do a " partir " e tentar ultrapassar Marx. " Marx não está presente na história contemporânea como um grande pensador incitando a pensar o além; mas como o fundador de uma grande religião laica-"racionalista", como o pai de um mito político de contornos científicos. É por causa disso, com efeito, que nele se fundamentam as razões essenciais de uma inacreditável esterilidade teórica do movimento operário depois da morte do seu fundador;(...)Para re-situar, se for possível, Platão, Aristóteles ou Kant, é preciso partir o conglomerado das interpretações sob os quais o correr dos séculos os embalsamaram e mantiveram em alerta. Para reencontrar Marx, é preciso " partir " Marx. Tal é a situação histórica paradoxal deste homem, que não quiz ser nem Newton nem Maomé, mas que não conseguiu evitar igualar-se com eles, de per-si;tal é o resgate do seu destino, incomparável com mais nenhum outro de Profeta Científico ". Noutra oportunidade, farei um resumo dos pontos principais da crítica do Marxismo concebidos pelo genial pensador revolucionário do séc. XX. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
não, a tradução que citas não é minha.
Abç

msp

Anónimo disse...

Meu caro MS Pereira: Este breve trecho que cito, fui eu que tive a liberdade de o traduzir. Tinha a tradução portuguesa - perdida com centenas de outros tratados importantes de Hegel, Nietzsche,Heidegger, and so on...-por isso, tive que a" arranjar" por volta da meia-noite de ontem, hora local... Aliàs, esse volume inaugural da publicação das obras totais de Castoriadis - que data de 1973 - tem imensos textos de rigor sobre a Crítica da Economia Política de Marx, e as interpretações de Lénine sobre o Capitalismo de Estado,que Castoriadis utiliza para enfrentar o "juridismo" abstracto das concepções defendidas por Trotsky e epígonos da IV Internacional para a caracterização da Burocracia Russa imlantada por Estaline, principalmente. Em dezenas de páginas excepcionais de rigor e densidade, Castoriadis insiste:" A forma da propriedade estatal não determina as relações de produção, mas sim, é determinada por elas, e pode mesmo muito bem exprimir relações de exploração ". E adianta: " A caracterização principal do poder político é um índice infalível do verdadeiro conteúdo da propriedade " nacionalizada ", mas não representa o seu verdadeiro fundamento.O que confere um carácter socialista( ou não) à propriedade " nacionalizada " é a estrutura das relações de produção. É destas de que deriva, depois da revolução,o carácter do próprio poder político- que não é o único nem mesmo o principal factor determinante ".
Eu li, há tempos , na Teoria Crítica do Adorno/ Horkheimer umas referências muito profundas sobre este ponto nuclear. Vamos ver se as consigo enumerar numa outra ronda. Salut! A Primvera aproxima-se e o Desejo espevita!Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
o problema de fundo que se levanta aqui é o das relações de poder que são socialmente instituídas em simultâneo, nas diversas esferas, em cada tipo de sociedade. Neste sentido, as relações de produção que são relações de poder não são menos políticas do que as do aparelho de governo oficial do Estado. A questão é que, se todas as sociedades instituem relações de poder, nem todas reconhecem uma esfera política explícita e/ou uma esfera económica separada, organizada pelas relações de poder. Historicamente, a maior parte das sociedades conhecidas tende a naturalizar ou sacralizar as relações de poder: estas são vistas como leis dos deuses, da natureza, da estrutura da realidade. O "político" (organização do poder) está lá sempre, tanto no plano das leis como no da economia. Mas a política nasce com o reconhecimento de que a organização do poder, do governo, da produção, etc. são uma questão social que compete à sociedade articular. E este primeiro passo faz toda a diferença. Está também implícito no que o Miguel Madeira escreveu no post -"Estruturas económicas", "organização social" e regimes politicos - aqui publicado. E no que o Miguel Madeira diz tens uma formulação justíssima da questão que te preocupa.
Abç

msp

Anónimo disse...

Meu caro MS Pereira: Duas questões. Fiquei sem saber quem tinha traduzido o livro do CC sobre " A Sociedade Burocrática "? Tentei ver no enorme catálogo da Afrontamento...Mas não fui até ao fim!
A outra questão é mais dificil: na tua argumentação a Luta de Classes parece marginalizada. Será assim? Sinto que há um cariz mecanicista de alta voltagem na tua esforçada e conciliatória argumentação. " Desde o início do séc. XIX, os operários contestam a instituição vigente - sociedade; não só a sociedade capitalista mas todas
as sociedades ditas " históricas". Não combatem somente a exploração económica, mas a dominação como tal. Querem instaurar uma nova ordem fundada sobre a igualdade, a liberdade e a cooperação. Da actividade desses homens emergem novas significações, que se incarnam em novas formas de organização e que se opõem ao mundo instituído desde há milénios: o mundo do Estado, da hierarquia, da desigualdade, da dominação.(...) A nivel mais profundo, o marxismo torna-se uma correia de transmissão dos modelos e das significações capitalistas no movimento operário( racionalismo,hierarquia,produtivismo,primado da pseudo-"teoria ", etc.( ...) A sociedade é sempre auto-constituída, mas muitas vezes o desconhece". In " Sociedade à Deriva"C.Castoriadis. A ver vamos como se fará luz! Niet

Miguel Madeira disse...

"A Sociedade Burocrática" (pelo menos o 1º volume) da Afrontamento foi traduzido por Margarida Portela e José Paulo Viana.

Posso estar enganado, mas penso que o MSP traduziu foi "A Experiência do Movimento Operário", da Regra do Jogo

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Niet e Miguel Madeira,
traduzi alguns artigos do volume que o MM refere - o primeiro vol. da Soc. Burocrtc. foi traduzido por quem dizes, sim, Miguel.
Não, não subestimo a luta de classes - quando caracterizo como "relações de poder" as relações de produção, por exemplo, essa luta está presente. Aliás, a luta de classes em torno da repartição do produto, se a levarmos a sério, é uma das coisas que arruína o determinismo económico e até a determinação em última instância pelo desenvolvimento das forças produtivas, por um lado, e manifesta o primado da instituição, tal como, por outras palavras, este transparece na argumentação do post do Miguel M.
Abçs

msp

Anónimo disse...

MS Pereira: Estamos a falar de coisas diferentes, desculpa lá. O Castoriadis já não alinha - na fase dos anos 6O- a cem por cento com as teses de Marx sobre a Critica da Economia Politica. Entendo que tu, se assim se pode descortinar, apoias mais Marx que a análise do C. Castoriadis...Com todas as minas & armadilhas que a tua decisão comporta. Sobretudo para o futuro mediato da intervenção política no espaço público.

Volto de novo a Castoriadis.O gigante "grego" é mesmo demiúrgico
no seu ataque contra o Estado e os estatistas. E sabes tão bem ou melhor do que eu, que Marx, Engels e Lénine desencadearam um processo histórico que culminou no terror de Estaline.

" Queremos a igualdade, a Liberdade e a Justiça: isso não é nem " racional " nem " irracional ",está para lá disso. Pensar que as leis da história garantem a eclosão de uma sociedade justa ( ou de uma sociedade de onde a questão da Justiça pudesse ser eliminada) é um Absurdo.

" Pensar que se pode definir para sempre o que é uma sociedade justa, e demonstrar que uma sociedade " justa " é mais "racional" que uma injusta não faz sentido( no melhor dos casos, o julgamento é circular). E pensar que uma tal " demonstração " faria avançar as coisas, é pueril. Não se refutam Auschwitz ou o Goulag, mas sim, travamos combate contra eles.

" Existe uma guerra histórica.(...)Guerra contra a subjugação a um grupo dominante, contra os mitos, contra toda a ideia simplesmente recebida; e sobretudo contra a instituição reconhecida da sociedade como instituição da heteronomia. Tanto quanto existir dividida assimétrica e antagonicamente, a sociedade, essa guerra permanecerá. Cada qual deve escolher o seu campo ".

E para terminar: " (...) O objectivo de autonomia...implica a supressão dos grupos dominantes e das instituições que incarnam e instrumentalizam essa dominação - em primeiro lugar, o Estado. Nisso se gera o verdadeiro auto-governo das colectividades, a auto-organização da sociedade. Tomada no seu pleno sentido, essa auto-instituição significa a auto-institucionalização da sociedade: porque a sociedade é sempre auto-instituída, mas desconhece que o seja ". In a " A Sociedade à deriva ". Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
a versão institucionalista da economia que expus é a que encontras no Castoriadis "maduro" (a partir de Marxismo e Teoria Revolucionária, pelo menos - ainda nos tempos de S. ou B.), e comporta uma crítica do marxismo (ainda que alguns dos que continuam a dizer-se marxistas a subscrevam no essencial).
Abç

msp

Anónimo disse...

Caríssimo: Este post- Cuba Livre?- já estabeleceu um record de audiência e participação. Pena é que não acorram mais participantes.

Porque a questão é muito complexa.E gostava de ler os pontos de vista de outros analistas do Blogue, e não só. Os que gostam de Gorz , de Badiou e Negri, por exemplo. Ou de Mário Tronti e Balso Bosteels, claro. Talvez fosse ainda mais pujante a troca de perspectivas, quem sabe!

E eu segui à letra o lado mais " autonomista " do C. Castoriadis, enquanto que tu -raposão ou lobo imponente? -te quedas por uma argumentação mais estritamente " institucional "- o termo é teu- de Marx e C.C. Eu utilizei teses do C.C. de 1977, exactamente. E tu indicas que te referes à tese ( da Instituição Imaginária da Sociedade...) que data de 1964 ! Tudo bem...só que não nos iludemos com a importância da Luta de Classes! Niet

Anónimo disse...

Um pequeno pot-pourri final: Castoriadis diz mais isto: o Karl Marx não se limitou a falar das relações de produção; escreveu mais de 3 mil páginas in " O Capital " sobre isso, a analizar esse processo!. É obra! Temos que ter muito cuidado com as pessoas e as coisas. Sobretudo, na ordem política alternativa a sensibilidade é mais livre e profunda - não há corrupção, existe só desejo de libertação! Portanto, cuidados mil para não " favorecer " heróis da 25 Hora ou integrados com barriga muito grande...Com o post sobre o BE do ZNeves, por exemplo, eu pensei dez vezes se devia comentar;fui ler uns artigos, estive à procura de coisas no Multitudes.Net; e com o máximo dos cuidados lá " botei " a minha palavrinha- um pouco à coté - mas para lhe fazer ver que sigo a coisa importante que ele sente. E que acho que é um terreno muito dinâmico a estudar e a influenciar. Niet

lili disse...

Caro Xatoo, o conselho que deu aos outros intervenientes aplica-se também a si; quantas vidas seriam precisas para estudar tão profundamente Marx? Em termos de sabedoria,disse um filósofo, devíamos nascer quando morremos.
Por acaso ando a ler o último livro da colecção ''História da Humanidade'', círculo XIX, editado pelo Círculo dos Leitores, que na pp. 78/79 se referem a Marx, depois de uma pequena introdução falando de Eugene Sue e o seus ''Mistérios de Paris'', livro que foi parar ao 'Index dos Livros Proibidos' pelo Vaticano. Esse livro, editado pelo ''Journal des Débats, em fascículos ''foi o típico romance popular, [...], problemas tragédias, puras donzelas proletárias violadas por malvados capitalistas. Problemas e tragédias sempre resolvidos por um aristicrata de nome Rudolfo.
As classes abastadas riam-se com a história, mas esta preocupava-os. O romance descrevia de forma exagerada as misérias e a pobreza do novo proletariado, mas podia despertar a consciência dessas massas oprimidas.
De facto, era o que estava a acontecer, de tal modo que o movimento operário e a sua ideologia original não foram apenas obra de líderes sindicais ou de teóricos socialistas, mas também de romances e historietas populares.
[...].
Além da condenação da Igreja Católica, houve também '' uma condenação surpreendente: Karl Marx (1818 - 1883) considerou o folhetim de Eugene Sue desviava a classe operária dos seus verdadeiros objectivos revolucionários ao fazê-la considerar a sua exploração como uma desgraça individual que se podia realizar com acções pessoais. A intervenção de Marx respondia a um novo fenómeno de importância capital da história do movimento operário. Até à década de 1840, o proletariado e as suas organizações moviam-se por impulsos do momento, mais do que de acordo com uma ideologia ou com uma estratégia previamente concebida. Isto mudou quando Karl Marx se tornou conhecido entre os dirigentes operários. A partir de meados do século XIX, sindicatos, organizações e embriões de partidos que foram assumindo a ideologia marxista.
Aceitando como ponto de partida os pressupostos filosóficos de Friedrich Hegel, Marx chegava a conclusões radicalmente distintas. Hegel, como bom romântico idealista, pensava que a evolução da história era dirigida pelo ''espírito do mundo''; Marx recusava semelhante idealismo, não acreditava em fantasmas e, como bom herdeiro do Iluminsimo, procurava no progresso histórico algo distinto da actuação de ''espíritos'': A história avançava pelo impulso das classes oprimidas em luta pela sua libertação*.
Marx estava convencido de que o seu pensamento e a sua doutrina tinham por base um método científico. Por meio do estudo da economia, da sociologia, da história e mesmo das ciências naturais, o marxismo provava que o capitalismo se encaminhava para a destruição e teria lugar uma nova estrutura económica, política e social: o socialismo. A chave da história , o mecanismo que a empurrava nessa direcção era a luta de classes, que por sua vez dependia das estruturas económicas.''.

Em Cuba morreu um operário em greve da fome, em luta pelos seus direitos, o governo ''marxista'' chama-lhe chantagem

lili disse...

O livro que citei é da autoria de :
Directores da Obra: David Solar, Javier Villaba.

Coordenação do Volume: Rafael Sánchez Mantero, Catedrático de História Contemporânea.

Colaboradores: Alfonso Lazo Diaz, Rafael Sánchez Mantero, José-Leonardo Ruiz Sánchez, María Sierra Alonso.

Coordenação Científica portuguesa:
Paulo Lopes - Instituto de Estudos Medievais Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa.

Revisão científica: José Miguel Sardica - Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.