15/03/10

MOULOUDJI

Já que a Joana tanto neste blogue como no Brumas tem vindo a relembrar - como quem procura nos caminhos da memória a promessa que não coube na morte do tempo perdido - a música francesa dos anos 50, 60 e 70 do século passado, e já que a Diana hoje lhe seguiu aqui avisadamente o exemplo, quero também eu à minha maneira celebrar esse género e nele aquele que considero um dos seus génios mais injustamente ignorados.

Sim, malgré les grands yeux du néant  - c'est pour mieux te manger, enfant (apesar dos grandes olhos do nada - são pra te comer melhor, camarada), faut vivre - é preciso viver - como cantava Mouloudji.  E a verdade é que eu teria vivido e viveria daqui em diante muito menos e muito mais estupidamente sem a sua voz, as suas interpretações de Jacques Prévert (apesar de Montand, acho que nunca Prévert encontrou outro cantor assim), das suas próprias paroles ou das canções de muitos outros (do repertório festivo e revolucionário do povo de Paris a criações de Trenet, Vian, Brassens ou Barbara, passando pelas valses musette e pelas javas).

Como não sei copiar canções do YouTube, além de que este é parco no que se refere a Mouloudji - lá aparecem Le Déserteur, que lhe valeria dez anos de censura na rádio, Un jour tu verras e pouco mais -, desafio-vos a procurarem começar a ouvi-lo - ou recomeçar, se forem como eu da primeira metade do século passado e tiverem sido marcados pela chanson - e limito-me a deixar aqui a versão que me atrevi a fazer de uma das suas composições mais desconcertantes, Le chasseur français, que creio poder ser lida como o verdadeiro poema que é (apesar de transposto aqui para outra língua).

A Voz do Caçador

(Le chasseur français)

Às vezes lembro-me ainda do tempo em que te amava
O caçador não sabe em que bosque está só
nem eu se ardia em febre ou esperava as tuas cartas
e a voz desconhecida que pus na tua voz

O meu nome de guerra foi lobo à tua espera
o teu rola que assombra o bosque com o seu choro
Era ingénuo era estúpido como foi conhecermo-nos
pelas páginas de anúncios d’A Voz do Caçador

A tua letra enorme ressumava loucura
com vírgulas e pontos tão sem eira nem beira
que para te responder eu plagiava a literatura
que dispensa o tinteiro e se escreve a vermelho

Inventei o teu corpo o teu rosto o teu riso
e a vida verdadeira ao longe onde moravas
do outro lado dos riscos e das trocas de sílabas
ou da fúria à deriva com que dizias amar-me

Mas que vias tu em mim que só fui afinal
um poeta de domingo sem ousar a aventura
de não contar o tempo ou de voar mais alto
fugindo às armadilhas que os dias nos urdem?

De manhã acordava e olhava para a porta
à procura no chão da bomba dos teus beijos
quando a não tinhas posto suicidava-me à hora
ou passava o dia todo a namorar o carteiro

Mas as paixões contidas são dédalos errantes
e romeu e julieta por uma vez razoáveis
morrem a lume brando nessas postas restantes
onde as cartas de amor já não salvam nem matam

Muitas vezes contudo ao acaso de um livro
uma súbita frase devolve a meio da página
ao fim da minha vida todo o tempo perdido
da tua luz de outrora na luz da paisagem


14 comentários:

Joana Lopes disse...

Bem-vindo ao clube, Miguel, que isto de francofonia anda mesmo muito por baixo na blogosfera...

Jorge Conceição disse...

Assinalo que o meu primeiro contacto com "Le Desérteur" de Boris Vian gravado em disco, foi através dum 45 rotações de Mouloudji (que já nem sei onde tenho). E a verdade é que escandalizei muita gente cantando essa versão em vez da de Boris Vian, também cantada por Serge Regianni. Na versão destes (a original) o desertor fala sempre na primeira pessoa, enquanto a de Mouloudji pretendeu ser mais abrangente falando sempre em "nós", o que não deixa de ser (mais?) interessante...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Jorge Conceição,
há tantas versões e variantes da canção que não pretendo conhecê-las todas. Mas não me lembro de nenhuma que não use o "eu" (o "je"). Será ignorância minha ou distracção sua? Acabo de verificar uma das interpretações que Mouloudji fez das paroles de Vian e o "je vous fais une lettre" lá está. Veja, por favor: http://www.youtube.com/watch?v=DIwuaLs1OPg

Cordialmente

msp

Joana Lopes disse...

Também fiquei admirada, Jorge: nunca ouvi com «nous».

Diana Andringa disse...

Miguel, penso que a questão não é o "Je" inicial, mas "ma mère" , em vez de "les mères", etc..
Quanto à francofonia... quem seria eu sem o Camus, o Malraux, Semprun (sim, eu sei que é espanhol..), o Vailland, o Prévert, o Brel, o Brassens, a Magny, a Barbara, o Yves Montand, o Ferrat, o Ferré...
Ouvir Le déserteur na Sonora de Medicina, o Potemkine na Rádio portuguesa nos anos 60, ouvir a Magny - Choisis ton opium... Dieu est subtil, mais pas malicieux - em Caxias, é inesquecivel.

Jorge Conceição disse...

Tem razão, Miguel. Na verdade eu queria referir-me ao "vós" e não ao "nós". Em vez de Monsieur le Président, por exemplo, ele dizia Messsieurs qu'on nomme Grands. E na verdade também fala no "nós" quando diz "on a des ainnées mortes", por exemplo. Tende a ser mais abrangente, de qualquer maneira, quanto a mim.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Jorge,
você também tem razão - é um facto que a versão Mouloudji é mais "abrangente"
Abç

msp

Jorge Conceição disse...

Amigos, aqui vos deixo a versão de Mouloudji, para verificarem:
http://www.youtube.com/watch?v=DIwuaLs1OPg

Não diz, por exemplo Je mendirai ma vie sur les routes de France, mas sim pelo mundo. Não diz que aquela guerra é, mas que todas as guerras "les guerres sont des bétises", etc.

Jorge Conceição disse...

Desculpem-me o abuso, mas já agora alguém me pode ajudar a recordar uma canção que ouvi inúmeras vezes a bordo do Niassa a caminho da Guerra em Moçambique, mas cuja autoria ou interpretação não me recordo. Suponho que a canção se chamava Jonhie, ou um derivado. E lembro-me de alguns versos:

"Tu est parti là bas
sans savoir pourquoi
Je crois pas
que tu cherce y la gloire"

e mais à frente:

"On t'a dit que la bàs
la cause ètait juste
qu'il fallait vaincre à tous prix"

Esta canção estava inserida num LP (de Le Chant du Monde?) que se chamava Le Déserteur et (?) autres chansons pacifistes.

Procuro a sua identificação há tempos sem o conseguir. Obrigado.

Anónimo disse...

Vi-os ao vivo várias vezes em Paris e conhecei alguns no Maio de 68 em que participei activamente. Eu era exilado político em Paris, onde conheci o Zé Mario Branco, Sérgio Godinho, Luis Cília, Palma Inácio, Helder Costa, etc., etc.
Foi nesta cidade maravilhosa que me formei em cidadania activa. E os enormes cantores franceses dessa época foram os meus
professores. Que saudades!!!

José Casimiro

Anónimo disse...

José Casimiro: E os círculos espessos e nebulosos dos cafés Maheu e Luxembourg,na confluência da Soufflot com o Boul´Mich, onde os ideólogos rivais da extrema-esquerda portuguesa se digladiavam e injuriavam? Eu tinha 18 anitos e andava na fase das paixões reichianas, e não gostava muito de cafés nem de cerveja. Mas, sei de histórias deliciosas...porque o Ayala( antigo secretário do Humberto Delgado),que trabalhou no Foyer das Estudantas(sim, discrimadas depois de Mai 68...), nunca deixou de as narrar ao sabor das intermináveis partidas de xadrez até à madrugada do 25 de Abril...Niet

Anónimo disse...

E quanto ao final preferis
Prevenez vos gendarmes / Que je serai sans armes / Et qu'ils pourront tirer

ou Et que je sais tirer?

Vlad

Anónimo disse...

http://www.antiwarsongs.org/canzone.php?lang=it&id=1

http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_D%C3%A9serteur_(chanson)

cumprimentos, J.P. Cardoso da Costa

Jorge Conceição disse...

O texto da Wilkipedia aqui trazido por J. P. Cardoso da Costa ilustra bem a versão Mouloudji e ilucida-me hoje porque é que me criticaram no final dos anos sessenta por eu cantar a versão que eu conhecia desde o início dessa década. Obrigado!