O que se está a passar na Fundação Serralves ilustra, como poucas situações, a cara de pau com que se presenteiam trabalhadoras e trabalhadores com situações de precariedade. Descobriram agora as luminárias da Fundação as vantagens do «empreendedorismo», certamente à boleia de grandes documentos da cultura como o Código do Trabalho de Vieira da Silva (primeiro contra, depois a favor, eis um ministro que oscila como as avaliações das agências de rating) ou o Compromisso Portugal.
Como relembra Daniel Oliveira, a Fundação tem dois representantes do Estado português, juntamente com um Presidente e um vice-presidente que já ocuparam lugares em governos. Gente da mais fina estirpe considera razoável ter, na recepção de um Museu com esta dimensão, pessoas a trabalhar a recibos verdes (independentes que prestam serviços, imaginar-se-ia) mas que, estranhamente, respondem a um superior hierárquico, têm horários fixos e um posto de trabalho permanente, para além de se verem abrangidos pelos regulamentos fixados pela instituição. Pensaram os recepcionistas de Serralves que tudo isso seria considerado relevante e tomado em conta quando recusaram constituir-se em empresa autónoma, que prestaria à Fundação um serviço numa área pouco importante, como sabemos ser esta, a de servir de cara e voz de Serralves em relação aos seus visitantes.
Seria cómico se não fosse dramático e não apenas pelas vidas destas pessoas que agora se vêm no desemprego por terem recusado ser tomadas por estúpidas e ousado dizer não. É que o sentimento de impunidade dos administradores e a tranquila indiferença com que uma instituição desta natureza - virada para a cultura e proposta a reflectir acerca das grandes questões do seu tempo ("centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea", pode-se ler no seu site) - responde desta maneira à questão que lhes foi colocada, é todo um programa filosófico, estético e político.
Já conhecemos o recorrente hábito, que certas e determinadas pessoas têm de tomar tudo e todos por estúpidos, mas há limites que nem sequer Rui Pedro Soares ou Vitalino Canas (o provedor das empresas de trabalho temporário e «rei das consultorias») se atreveriam a ultrapassar. Que se revele, de maneira tão evidente, a ideia que estes administradores têm das coisas da cultura, apenas ilustra a aleatoriedade da distribuição geral de benesses e prebendas pela clientela. Esperava-se que tivessem escolhido alguém que se lembrasse e chamasse a atenção para as diferenças entre uma fundação cultural e um hipermercado. Não porque essa diferença seja algo de óbvio e inquestionável, mas porque sempre fez parte do jogo simbólico ligado às «gentes da cultura», «programadores» e «artistas» cavar um fosso entre essas duas condições e colocar a arte num lugar distinto do da mera «produção». Parece que desta vez ninguém se lembrou de o fazer e Serralves vê-se assim representada como um «Norteshopping» para gente com óculos de massa e calças de flanela.
O caso ilustra pois uma passagem decisiva e cheia de alcance para um posicionamento crítico em relação à apologia das «industrias culturais» e das «cidades criativas». De um ponto de vista de classe, como pode ser o dos «trabalhadores independentes da recepção», a «cultura» ali encenada apresenta-se como uma flor na lapela, um negócio como os outros, uma mercadoria em promoção.
Se quisermos procurar o significado mais clássico (e simultaneamente mais moderno) da palavra, algo que faça dela um ponto de resistência à normalização e um esforço para questionar o real, então só a poderemos mesmo encontrar naqueles espaços e tempos em que pessoas se juntam para lutar contra esta retorcida banalização do cinismo. Para encontrar um "centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea", só mesmo procurando entre aqueles que se organizam para planear o contra-ataque e elaborar dessa maneira uma cultura que não está à venda, porque é inseparável das suas vidas. Nos tempos que correm, a cultura é precária. Como poderia deixar de ser rebelde?
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