15/03/10

Porque às vezes nos esquecemos da responsabilidade de estarmos vivos...




CARTA A MEUS FILHOS

Sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

2 comentários:

xatoo disse...

para guardar em boa memória o Jorge de Sena que já lá jaz na torre do Tombo, mailo o constructo da geração do pós-guerra
Hoje o que estará a dar é reler o "Relatório Lugano" - se confrontarmos a ficção da Susan George com a última reunião do Grupo Bilderberg antes da eleição da secretária Clinton, notar-se-ão analogias muito interessantes

Anónimo disse...

Diana Andringa- Vamos lá ver se o VDFacto se ergue também com a audácia da revelação poética e a selecta e arrojada ambição de dar a reler a melhor e mais revolucionária das experiências poéticas portuguesas( e mundiais). Jorge de Sena é um belíssimo ponto de partida. Como gosto muito da sua poesia, que reli dezenas de vezes através dos anos, e estive com ele em Paris, em 1972, numa Jornada plena de sublime diálogo e emoção, manifesto aqui alguns comentários escritos com o a voz do " sangue ".
O poema que imprime no Blogue pertence a uma recolha publicada em 1963, e está datado de 1959/ Lisboa, colectânea intitulada "Metamorfoses, Seguida
de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena ". Sena no pósfacio já escrito no exílio brasileiro alerta, por um lado, " que em última análise, a poesia pretende ser, ela mesma o lá onde se transforma o Mundo "; por outro, sublinha, " mas no que respeita ao elemmento moralístico, acrescentemos que toda a poesia é uma meditação moral. Sem dúvida que o não é ( ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins últimos do Homem". No prefácio a Poesia-II, que reune "Fidelidade ", " Metamorfoses " e " Arte de Música ",datado de 1977, J. de Sena confessa que " estes três livros encerram alguns dos mais densos e fundos poemas, senão mais belos, que escrevi; mas que isso igualmente sucede em livros ulteriores ( e "Peregrinatio ad loca infecta" é contemporâneo destes, por exemplo). A que eu junto, se me permitem, os poemas de " Conheço o Sal..."( 1974), com o ditirâmbico poema " À memória de Adolfo Casais Monteiro ", seu compadre e émulo de uma vida de combate e ética invulgares. Niet